![Cileide Cristina é a primeira mulher a utilizar a Lei Maria da Penha. (Francisco Silva/DP Foto) Cileide Cristina é a primeira mulher a utilizar a Lei Maria da Penha. (Francisco Silva/DP Foto)]() |
Cileide Cristina é a primeira mulher a utilizar a Lei Maria da Penha. (Francisco Silva/DP Foto) |
Duas mulheres estavam a frente de Cileide Cristina na fila de um supermercado no Cabo de Santo Agostinho, no Grande Recife, e ela não pôde deixar de ouvir a conversa.
"O que foi aquilo com teu marido?", indagou uma delas. A outra respondeu: "Tudo aquilo só porque eu fui à casa de mainha. Mas eu acho isso tão fofo". A amiga acrescentou: "Eu também, viu? Isso é cuidado".
Cileide não se conteve. "É não, minha filha. Isso é domínio. Isso é fazer de você propriedade dele", disse.
A mulher se aborreceu e deixou o estabelecimento sem passar as compras, mas Cileide não poderia ficar calada. Ela esteve naquele mesmo lugar. E em outros piores.
Após décadas das mais diversas violências e torturas cometidas pelo então companheiro, que começaram em pequenos gestos como proibi-la de ver a mãe, ela conseguiu deixar aquele ciclo de dor. Hoje com 55 anos, Cileide é considerada a primeira mulher do Brasil a utilizar a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para prevenir e coibir violência doméstica e familiar.
"Quando a gente lembra das histórias que vivi, a gente diz que é como uma noite de terror que durou 20 anos”, diz ela. Neste Dia Internacional da Mulher, o Diario de Pernambuco traz a história de Cileide Cristina, que se tornou uma importante voz na luta contra violência de gênero e hoje busca ajudar outras mulheres a saírem de relacionamentos semelhantes ao seu.
20 anos de pesadelo
Nas palavras de Cileide, Francisco de Assis Oliveira apareceu como um príncipe que vem em um cavalo branco. "Tudo de bom o homem tinha. Ele me dizia que ia me dar uma casa, roupas e que eu ia ter o que comer. Falava que ia mudar minha vida". Francisco tinha 26 anos, e ela, que vivia em situação de grande vulnerabilidade social, 15.
Quando veio a primeira gravidez, entretanto, ele mudou completamente. "Depois disso, começaram os gritos, os empurrões e a desmoralização na frente das pessoas. Eu não tomei atitude nenhuma porque eu o via como um pai, como um salvador." Após cometer a violência, ele fazia algum agrado à companheira, atitude que hoje ela interpreta como uma chantagem emocional.
"Eu olhava para trás e via a vida que vivia antes. A esperança era que aquilo iria melhorar. E isso foi me iludindo".
Francisco começou a afastar a mulher da família e das amigas. Também foi nesse período que veio o primeiro tapa.
Cileide era proibida de visitar a mãe sem estar acompanhada do marido, sob alegação de que a genitora poderia mandar algum recado de algum outro namorado. A mãe de Cileide também não podia mais visitar a filha. "Se sua mãe vier aqui e eu souber, apanha você e ela", teria dito ele em uma das ocasiões.
A mulher precisou dizer à mãe que não queria mais a presença dela em casa, escondendo a proibição imposta por Francisco. "Eu não queria que minha mãe soubesse que eu apanhava e nem que ela apanhasse dele também. Então, isso foi virando uma bola de neve enorme, só crescendo e piorando cada dia mais. E se passaram 20 anos, vieram quatro filhos. Depois que chegaram os filhos, eu me senti colada àquele lugar".
Os episódios de agressão, tanto física quanto psicológica, são muitos. E, mesmo quando parecem ter alcançado o ápice, Cileide consegue mencionar uma situação ainda pior. As violências também eram praticadas contra as crianças, que muitas vezes eram agredidas apenas como forma de atingir a mãe.
Após o nascimento do quarto filho, "o hospital quase em peso" precisou mentir para o marido para que a laqueadura fosse realizada.
"A equipe tentou convencer o médico a fazer minha cirurgia, mas ele só fazia se pagasse, e eu não tinha dinheiro. E ele [Francisco] dizia que mulher que fazia cirurgia para não ter mais filhos era para botar gaia no marido."
Ela passou seis dias no hospital até as enfermeiras convencerem o médico a realizar o procedimento. "Eu fui para casa e não podia dizer que estava operada. Passei por um momento difícil, porque, como ele não sabia e não respeitava o resguardo, a hora que ele quisesse sexo tinha que ter."
Além disso, ela lembra que, no mesmo dia em que chegou da maternidade, o marido exigiu que fosse ao tanque lavar calças dele. Uma recuperação que deveria durar 15 dias, prolongou-se por meses. "E ele ainda batia em mim, porque achava que eu não queria fazer as coisas por preguiça".
Em 2003, Cileide resolveu dar um basta e procurou a delegacia da cidade. Nada saiu como imaginava.
“Quem me atendeu foi um policial, não sei se era comissário ou escrivão. Contei que meu marido agredia a mim e aos meus filhos."
O policial então respondeu: "A senhora já parou para pensar que ele é o pai de seus filhos? Já pensou em que qualidade de mulher a senhora está sendo vindo à delegacia prestar uma queixa contra seu marido?"
A mulher insistiu que as agressões eram frequentes. "Isso é coisa de marido e mulher. Isso é de nossos antepassados já, vem lá de trás. Você é evangélica?" Ela respondeu afirmativamente.
"Não parece, porque uma mulher evangélica não vem em uma delegacia prestar queixa contra o marido", rebateu o policial.
Cileide poucas vezes se sentiu tão só. Já costumava ouvir da mãe que "ruim com ele, pior sem ele". Uma vez ouviu uma vizinha criticar a filha por esta reclamar do marido agredi-la e traí-la. "Ela dizia que pelo menos esse marido fazia a feira. Quer dizer, é como se a filha fosse uma privilegiada, que apanhava, era traída, mas tinha o que comer."
11.340/2006
Em 2006, após uma das filhas sair escondida para ir ao salão de beleza, já que Francisco não permitia que esposa e filhas usassem qualquer cosmético ou procurassem esse tipo de serviço - elas usavam limão e óleo de cozinha como desodorante e creme para cabelo -, a jovem foi informada sobre o Centro de Mulheres do Cabo, organização feminista que funciona desde 1984 na cidade.
A família já sabia da existência da organização, mas não podia ter qualquer aproximação. Quando integrantes do Centro realizavam alguma ação nas ruas, a família de Cileide não podia colocar nem a cabeça na porta e as crianças deixavam de ir à escola. "Elas podem ajudar tua mãe, converse com ela", disse uma mulher no salão para a jovem.
Mãe e filha, então, combinaram de ir ao Centro durante o trajeto de levar as crianças à escola. "Eu estava com medo porque a gente morava no engenho e ele só me dava 15 minutos para ir e voltar. Eu andava correndo feito louca no meio da rua, puxando os meninos, porque se eu chegasse em casa um minuto atrasada tinha que dizer com quem estava e onde", lembra.
"Quando a gente chegou lá, para minha surpresa, eu fui tão bem acolhida, tão bem recebida, que parecia que fazia 100 anos que eu conhecia aquelas mulheres", diz ela, desacostumada ao afeto.
"Elas não me perguntaram o que foi que fiz, por que provoquei ele, se eu disse alguma coisa chata, não perguntaram nada. Só me abraçaram e disseram que eu não estava só".
Ao sair do local, Cileide recebeu um panfleto sobre a implementação da Lei Maria da Penha, que, após ser sancionada em 7 de agosto de 2006, entrava em vigor naquela exata sexta-feira, 22 de setembro.
A comerciante também recebeu um gravador, o qual deveria esconder no ambiente da casa em que mais costumava ser agredida a fim de conseguir coletar alguma prova.
O objeto não foi usado.
Quando Cileide chegou em casa, Francisco já havia ido à escola e descoberto que a filha estava ausente. A mulher escondeu o panfleto sob um pano em cima da geladeira.
Segundo Cileide, Francisco disse que iria em um bar próximo e depois voltaria para agredi-la e tirar dela a informação de onde esteve. Quando ele estava saindo, um vento levantou o pano, derrubando o panfleto aos pés dele.
O homem picotou o papel e forçou a esposa a engolir os pedaços, ela lembra. Com dificuldade de mastigar aquilo, Cileide recebeu um bofetão. A filha, então, interveio. "A partir de hoje você não bate mais na minha mãe. A gente não está mais só", disse.
Colérico, Francisco teria segurado a filha pelo pescoço. "Eu nunca esqueço. Ele pegou com as unhas e saiu batendo a cabeça dela em todo canto". A jovem foi jogada contra um espelho e sofreu corte nas costas.
Diante daquele cenário de horror, Cileide correu para o orelhão, telefonou ao Centro das Mulheres e para a polícia.
Enquanto a filha foi encaminhada ao hospital, Cileide seguiu com a polícia para procurar o marido, que havia deixado a casa nesse ínterim.
Francisco foi encontrado na barraca que tinha com Cileide, sentado em uma cadeira, com os pés repousados em outra e os braços apoiados na nuca. "Como se nada tivesse acontecido, num dia normal", recorda-se a mulher, que viu aquela cena estupefata.
"Eu sou um cidadão de bem e essa mulher é uma analfabeta, não sabe de nada", teria retrucado ele, enquanto era colocado na viatura.
Na delegacia, integrantes do Centro de Mulheres destacaram que a Lei Maria da Penha entrava em vigor naquela data. O delegado e os demais policiais desconheciam a informação e tentaram convencer de que a medida ainda não vigorava.
"Todo mundo estava despreparado e foi para calculadora confirmar se já havia passado os 40 dias entre a sanção e a aplicação da lei. O delegado dizia que a medida não existia ainda, que havia sido aprovada, mas ninguém sabia quado começava. Aí Lucidalva disse 'Não, começa hoje'."
Lucidalva Nascimento era a advogada que integrava o Centro de Mulheres e que levou a lei impressa à delegacia para mostrar que já vigorava. Por conseguinte, ela é considerada a primeira advogada do Brasil a requerer a aplicação da Lei 11.340/2006, a Maria da Penha.
"O delegado queria encaminhar o caso para o juizado de pequenas causas, mas eu disse que já podia enquadrar na Maria da Penha", lembra a advogada ao Diario de Pernambuco. "A gente chegou à delegacia às 16h e ficou resolvendo isso até as 4h do dia seguinte".
Cileide estava confiante, mas voltou a sentir medo quando uma comissária se aproximou. "Com essa lei ou sem essa lei, tu vai voltar para casa com ele", disse a policial. "Isso é confusão do povo. Não existe lei que vai impedir o cara de bater na mulher. Isso acontece toda hora". A advogada de Cileide interrompeu aquele discurso: "A lei existe sim e vai ser cumprida".
Quando já era noite, o delegado finalmente se convenceu de que a advogada estava certa e zombou de Francisco. "Tu vai inaugurar uma lei, e uma que vai te botar na cadeira. O negócio esquentou para o teu lado." Francisco ficou preso quatro meses e 13 dias.
Mesmo com Francisco detido, Cileide ainda não conseguia relaxar. Qualquer barulho que ouvia causava um susto, acreditando que ele tentava entrar em sua casa.
Após deixar a prisão, Francisco tentou por algumas vezes se encontrar com Cileide e pedir para voltar, mesmo proibido de se aproximar. Após, em uma audiência, ter sido alertado da possibilidade de ser preso novamente, ele deixou finalmente de persegui-la.
Cileide nasceu de novo
"Eu vivo tão feliz, tão bem, mesmo não tendo nada de valioso. E sabe por quê? Porque eu estou vivendo. Dos meus 15 anos até os meus 36, eu não vivi", diz Cileide.
A mulher brinca que nasceu de novo com a Lei Maria da Penha. "Quando a lei completa ano, eu completo também. Tenho dois aniversários agora."
"Quando a lei fez 14 anos, eu também me senti uma adolescente de 14 anos, desabrochando para a vida, vendo tudo que a vida tem para oferecer", completa.
Ela foi pela primeira vez ao cinema aos 42 anos. Na tela, A Era do Gelo 4. A mulher nem conseguiu prestar muita atenção ao filme, pois estava encantada de visitar um cinema.
Depois do fim daquele casamento, já cortou o cabelo duas vezes. Antes não podia. Sentiu-se tomada de liberdade ao se ver de corte novo no espelho.
Apesar dos apertos financeiros, está conseguindo finalmente passar creme no cabelo e comprar perfumes. Usa Lily, Her Code, Egeo. "Eu me sinto bem de me ver. Hoje eu consigo ter dois perfumes abertos e um fechado, coisa que antes eu não podia ter um", comenta.
"Desde que eu descobri que a mulher podia se dominar, podia decidir por ela mesma, eu vivo em paz. Eu não tinha essa liberdade de viver, de conhecer a vida, os meus direitos, saber que tua vida é tua e a minha é minha."
Ela passou a sorrir genuinamente também. "Minha menina diz que eu saio dando bom dia do gari ao doutor. Quem passar por mim vai ser contagiado com a minha alegria, porque eu sou de bem com a vida. Eu sou feliz, estou vivendo." Atualmente, a mulher é convidada para dar palestras em escolas, quando destaca às crianças que o machismo começa de pequeno. Também já foi homenageada pela Cátedra Dom Hélder Câmara de Direitos Humanos, grupo de pesquisa da Unicap com parceria com a Unesco.
Hoje, cada morte de mulher que ela vê na televisão causa uma angústia que dura dias. O Centro de Mulheres do Cabo, com base em dados da Secretaria de Defesa Social (SDS), contabiliza 61 assassinatos de mulheres na cidade entre 2020 e 2024. Em 2024, segundo a organização, ocorreram sete casos configurados como feminicídio. Em 2025, foram quarto assassinatos de mulheres, com dois tendo fortes indícios de feminicídio, de acordo com a organização.
"O pensamento é sempre o mesmo, poderia ter sido eu”, diz Cileide. “Então, enquanto eu puder abrir a boca e mostrar a cara, eu vou fazer, porque a minha experiência vai chegar em uma mulher distante, na zona rural, na periferia. Ela vai ver em algum lugar e vai denunciar também".