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Formatura, adoção e políticas públicas: vitórias de pessoas trans em Pernambuco
Para celebrar o Dia da Visibilidade Trans, comemorado nessa quarta-feira (30), o Diario de Pernambuco traz nesta reportagem, as vitórias e os sonhos de quatro pessoas trans, moradoras do Grande Recife
Publicado: 29/01/2025 às 23:01

/Foto: Bruna Costa/DP Arquivo

Todos temos sonhos e todos temos vitórias pessoais. Um jornalista recém-formado disse que sua vitória foi ter conseguido terminar sua graduação. Já uma ativista afirmou que sua vitória era poder usar ambulatórios especializados em atendimento a pessoas transexuais no Recife. Outra pessoa contou que a sua era poder ter seu nome na certidão de nascimento do filho adotivo.
Essas vitórias são histórias reais de pessoas transsexuais, mas nem todas conseguem alcançar vitórias assim. Segundo o Dossiê de Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2024, divulgado nesta semana pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 122 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil em 2024. Em Pernambuco, foram oito.
[SAIBAMAIS]
Em comparação com 2023, quando o Dossiê apontou que 145 pessoas trans foram mortas naquele ano, houve uma queda de 16%. Mas não é suficiente para tirar o Brasil do topo da lista, pelo 16º ano consecutivo, como o país que mais assassina pessoas trans no mundo.
Apesar de tudo, a comunidade trans persiste, resiste e continua a existir. Para celebrá-la, o Diario de Pernambuco ouviu quatro pessoas trans moradoras do Grande Recife, de idades e vidas distintas, e trouxe, nesta reportagem, as vitórias e os sonhos de cada uma delas.
Rael Teixeira

Rael Teixeira não hesitou em nenhum momento ao ser questionado sobre qual era sua maior vitória. Assim que a reportagem terminou de falar, Rael disse, firme e confiante, que, no auge de seus 27 anos, sua vitória era ter se formado. Ele é jornalista, formado em 2024 pela Universidade Católica de Pernambuco.
“Isso é uma conquista, posso dizer, a maior delas para mim, enquanto uma pessoa trans. Principalmente porque, se você parar para analisar os dados de pessoas trans na universidade hoje, o número é de 0,3%”, afirmou. O número que Rael trouxe foi levantado pela ANTRA em setembro de 2024, no documento Políticas de Ações Afirmativas para Pessoas Trans e Travestis.
Ele celebrou a conquista, afirmando que quebra essa estatística, exerce a profissão, atua em uma organização de São Paulo e trilha seus passos. Para o próximo passo, ele contou que continuará a exercer seu direito à educação, se aprofundando em um mestrado que envolve cinema, sua paixão, e pessoas trans, quem ele é. “Seria essa pauta dentro do meu mestrado e em alguma especialização, para que essas pessoas continuem sendo inseridas nos espaços que são delas por direito”, disse.
A reportagem aproveitou a deixa do cinema e pessoas trans para perguntar se Rael se sente representado por Karla Sofía Gascón, a atriz trans espanhola indicada ao Oscar de Melhor Atriz. “Independentemente do roteiro e de como a personagem foi construída, só o fato de ela conseguir chegar ali é um caminho e uma porta [que ela abre] para desconstruir determinadas narrativas e realidades, entre muitas aspas, que são construídas com base na nossa vida”.
“Enquanto pessoa trans, acho que a segunda maior conquista que poderia alcançar seria a minha mastectomia”, confessou Rael. Ele contou que, no ano passado, iniciou uma campanha de arrecadação online para juntar doações e realizar o sonho de retirar as mamas. “Minha família e minha namorada me estimularam a lançar a vaquinha. Eles sabem como essa mastectomia é um dos meus maiores sonhos para eu me sentir realizado, não só fisicamente, mas psicologicamente, porque a falta dela também afeta a minha saúde mental”.
A vaquinha de Rael está ativa. Até o momento, ele arrecadou R$ 3.845 dos R$ 14 mil necessários para a operação. “Ela pode ser encontrada em meu perfil no Instagram @iraeltx. Toda ajuda é muito bem-vinda”, concluiu.
Amanda Monteiro

Amanda Monteiro, de 31 anos, compartilha com Rael a vitória de ter conseguido se formar em uma universidade, mas essa não é sua única conquista: “Dessa vez, eu não quero falar de coisas profissionais e acadêmicas, mas eu acho que a melhor coisa que eu tenho na minha vida é uma família linda que eu construí”.
Feliz, Amanda contou que, no final do ano passado, terminou de adotar, oficialmente, o filho, em um processo descrito por ela mesma como “muito bacana”. No documento do menino, que ela pediu para não ser identificado, consta o nome da mãe, de Amanda e do genitor. Todo o processo foi feito a partir da multiparentalidade.
A lei que permite múltiplos pais no registro da criança foi criada para atender famílias cisgêneras (aqueles que se identificam com o gênero que lhes foi designado), mas Amanda conseguiu utilizá-la para garantir que seu nome estivesse na certidão do filho adotivo. “Acaba que os nossos direitos geralmente são feitos para pessoas cis e conseguimos usá-los para ter direitos similares”.
“O processo começou oficialmente quando ele fez a primeira identidade dele. Ele me mostrou e disse que estava errado porque meu nome não estava lá. Então, eu disse a ele que a gente poderia consertar e perguntei se ele queria. Ele quis”, contou.
Ela é uma pessoa trans não binária, isto é, não se identifica com o gênero designado em seu nascimento, como uma pessoa transsexual, e está fora das idealizações de gênero masculino e feminino.
“Não é necessário fazer nenhum tipo de modificação corporal para ser uma pessoa trans, mas eu optei por fazer, e o meu filho participou de todos esses momentos. Ele e minha esposa me apoiaram muito”, relembrou.
Ela relatou que, ao longo do processo de masculinização, seu filho, de nove anos, a questionava sobre o porquê das cirurgias e como ela se sentia. “Então, a minha construção de transição, apesar de ser pessoal, teve muito da minha esposa e do meu filho ali comigo”.
O apoio que Amanda recebeu – e ainda recebe – não se limitou à esposa e ao filho. Com orgulho, ela contou que toda a sua família e amigos a abraçaram durante sua transição. “Uma pessoa incrível chegou para mim e disse: ‘Olha, eu tenho essas condições, e eu quero te ajudar nessa mastectomia’”, contou. “Eu disse: ‘Poxa, eu não vou ter como pagar isso para você’. E a resposta dela foi mais incrível ainda. Ela disse: ‘Se algum dia você puder pagar, você escolhe outra pessoa para fazer isso, mesmo que eu esteja fazendo com você’”.
Chopelly Santos

Enquanto Amanda celebra sua família e sua transição, Chopelly Santos dedica sua vida ao ativismo e à luta por políticas públicas. Nascida em Limoeiro, no Agreste, em 2022, a ativista e técnica em enfermagem Chopelly foi a primeira mulher trans a receber o título de Cidadã do Recife.
Atualmente, ela é vice-presidenta da ANTRA, mas, antes disso, foi presidenta da Amotrans, a primeira instituição em Pernambuco a desenvolver políticas específicas para travestis e transexuais, promovendo diálogos com o governo e facilitando a inserção de pessoas trans no mercado de trabalho.
Chopelly afirmou que “os ambulatórios para pessoas transexuais e LGBTs, que são instituídos com o nome de pessoas transexuais, no Recife e em várias cidades da Região Metropolitana e no interior do estado, que cuidam especificamente da saúde da população LGBT com foco em trans, temos o programa de retificação de nomes da Amotrans em parceria com a Defensoria Pública. Temos muitas vitórias para a população”.
“Os avanços da política pública, da aceitação de pessoas trans e elas estarem, cada vez mais, em locais de poder. Isso é uma vitória, até pessoal, para mim”, declarou.
Robeyoncé Lima

Ex-deputada estadual, primeira advogada transexual do Estado e vice-presidenta da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB de Pernambuco, Robeyoncé, assim como Chopelly, é ativista.
Ao Diario, ela afirmou que enxerga como uma grande vitória para sua vida e para toda a comunidade, “o enfrentamento da transfobia pelos meios jurídicos legais, no sentido de que a pessoa que cometeu qualquer transfobia ou LGBTQIA%2bfobia será responsabilizada do mesmo jeito que a pessoa que comete racismo”.
No entanto, ela alerta que não será apenas o crime da transfobia que irá resolver os problemas da comunidade. “O fato de ter uma pessoa trans na OAB ou em uma faculdade são uma exceção à regra. Quando, na verdade, deveria ser normal em nosso cotidiano pessoas transexuais habitarem esses espaços”, disse.
Robeyoncé foi coodeputada do Coletivo Juntas em 2018. Em 2022, se candidatou a deputada federal e obteve cerca de 80 mil votos, mas não foi eleita em razão do quociente eleitoral. Ao ser questionada qual era sua vitória pessoal, ela explicou que a violência transfóbica foi uma de suas razões de não ter continuado na política.
“É importante um espaço de militância seguro e, na política institucional, no contexto de violências, do cotidiano e das ameaças, eu optei pela minha preservação”, contou. Por conta disso, ela voltou a advogar e se dedica a isso.
“Porque a gente sabe que tem transfobia em diversos lugares. Mas é menos difícil de administrar, digamos assim, dentro do mundo jurídico do que no meio político propriamente”.
A advogada acredita que é necessário um trabalho de sensibilização e educação em relação à diversidade de gênero para que as pessoas entendam e compreendam a respeito da diversidade. “Porque a gente tem esse Dia da Visibilidade Trans, que é um dia que está em alta essa questão de gênero, de sexualidade, tudo, mas quando for amanhã, será um outro dia, como se nada tivesse acontecido. É importante que haja uma continuidade desses debates e dessas discussões. Essa pauta é um debate que fala sobre vidas”, finalizou.