PANDEMIA

Sem dinheiro e longe do Carnaval, escolas de samba do Recife correm risco de desaparecer

Publicado em: 05/02/2021 20:02 | Atualizado em: 05/02/2021 20:27

Para o mestre de bateria, Damião Gomes, restou a saudade do passado (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)
Para o mestre de bateria, Damião Gomes, restou a saudade do passado (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)

A uma semana do Carnaval, o silêncio nas ruas de bairros tradicionais, na Zona Norte do Recife, sinaliza que o reinado da folia este ano não terá vez. Em meio à pandemia gerada pelo novo coronavírus, com o cancelamento da festa de Momo em todo o país, as principais escolas de samba de Pernambuco, Gigantes do Samba, na Bomba de Hemetério; e Galeria do Ritmo, sediada no Morro da Conceição, ainda vivem da incerteza. O barulho dos ensaios da bateria e a alegria dos passistas deu lugar ao vazio, com barracões completamente fechados e instrumentos que já não produzem som. O compasso agitado da produção das fantasias e carros alegóricos foi interrompido. Juntas, elas somam cerca de 3 mil integrantes, onde restou o desemprego e a completa escassez de recursos. Com estruturas físicas também se deteriorando, o medo agora é de o brilho das agremiações chegar ao fim, tornando-se apenas uma memória do passado.

A agonia das escolas, que não é diferente nos demais clubes, troças, blocos e maracatus do estado, diz respeito ao básico: falta dinheiro para os gastos essenciais de manutenção, assim como alimentação, água, energia elétrica e demais impostos. Na esteira ainda figura o pagamento dos músicos, carnavalescos, cenógrafos, costureiras e todo o grupo de trabalho responsável pelos desfiles. “Estamos vivendo uma situação de dificuldades jamais vista, seguimos estagnados e sem nenhuma perspectiva de melhoria”, revela Aldo Alexandre, presidente da Gigantes do Samba, agremiação com 79 anos de história e campeã na Capital por 12 anos consecutivos. Segundo ele, apenas uma pequena parte dos integrantes conseguiu ser beneficiada com o Auxílio Emergencial, do Governo Federal. Contudo, o valor de R$ 600 mensal, hoje suspenso, foi encarado como insuficiente

O salão vazio, sem música e a alegria do público provoca tristeza (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)
O salão vazio, sem música e a alegria do público provoca tristeza (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)


Desde março de 2020, com o aporte da doença, e consequentemente com o endurecimento das medidas de isolamento, nos meses seguintes, a realidade do local mudou bastante. Sem as conhecidas festas nas quadras, que quase sempre registravam superlotação, com consumo no bar e venda de ingressos, não restou qualquer geração de renda. As dívidas foram acumulando e, de acordo com Aldo, cerca de R$ 200 mil seriam necessários para ressurgir. “Nos vimos pressionados a cumprir os protocolos de saúde, que eu reconheço que devem ser respeitados. Porém, também fomos obrigados a deixar de honrar nossos compromissos com fornecedores e com as pessoas da nossa comunidade, aqueles que tanto nos ajudam e que amam o Carnaval”, lamentou.

A harmonia do surdo, do repique e da cuíca também ficou no esquecimento, segundo conta o mestre de bateria, José Damião Gomes, 48, que há quase duas décadas se dedica a este trabalho. Na vida dele, a paixão pela música veio de berço, começando pelo pai e seguindo pelos irmãos mais velhos. “Este barracão sempre animado é uma parte que não se desliga da minha vida”, afirma ao lado da esposa, que também faz parte da diretoria da escola. Segundo o líder de cerca de 150 percussionistas, a rotina na sede seria bem diferente, caso o fantasma da Covid-19 não tivesse aparecido. “Nossos ensaios tinham início seis meses antes da folia, com 70% dos integrantes sendo moradores do entorno da escola. Olhar tudo isto parado é de fazer chorar”, diz, com a voz embargada.

Sem recursos, pátio de alegorias está tomado pela vegetação (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)
Sem recursos, pátio de alegorias está tomado pela vegetação (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)


O que se vê é um pátio e camarotes vazios e tomados pela poeira. As alegorias dos anos anteriores estão paradas e o mato já dá o sinal dos tempos amargos. Por lá, as atividades desenvolvidas com a comunidade, como aulas de musica e dança, além de cursos de aperfeiçoamento também ficaram pelo meio do caminho. “Para a gente que vive da música, não restou alternativas”, ressalta, lembrando que, pela primeira vez, não foi possível montar um samba-enredo. A rotina de sossego forçado também desagrada aqueles que não enxergam o Carnaval apenas em fevereiro, mas o ano inteiro. A dona de casa, Aparecida Melo, 52, moradora da Rua das Crianças, sede da escola, enxerga com pesar a paralisação. “Tudo ficou sem alegria. A gente gostava de ir aos bailes nos fins de semana, e também reunir a família para comemorar as muitas vitórias”, relembra com saudade.

Passando para o Morro da Conceição, conhecido por lotações em festas religiosas, o Carnaval também tem um cantinho especial no coração dos moradores. De portões cerrados, a sede da Galeria do Ritmo, com 59 anos, atual campeã do desfile do Recife, hoje serve apenas como um ponto de encontro para os jovens e o pessoal da terceira idade. “Passamos a viver na escuridão, sem qualquer resposta ou sinal de ajuda do poder público. Parecem que deram as costas para nós”, diz o presidente Mizael de Souza. Segundo ele, a agremiação buscou alternativas para promover alguma tipo de movimentação financeira, mas não teria obtido êxito. “Elaboramos um projeto para a realização de lives, com nossos músicos, baianas e passistas. Seria uma forma de celebrar o samba em qualquer lugar. Porém, até hoje não recebemos interesse de patrocínio” diz, lembrando que teve que empenhar o próprio carro quando viu as dívidas se transformarem em um “bola de neve”.

Sede da Galeria do Ritmo não movimenta mais a comunidade do Morro (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)
Sede da Galeria do Ritmo não movimenta mais a comunidade do Morro (Foto: Arnaldo Sete/Esp. DP)


Souza lembra que quase não teve chance de comemorar o último título, já que a pandemia chegou logo em seguida. “Ficamos em uma situação de desespero, agora já há quase um ano parados. Dependemos de doações”, diz. A interrupção das escolas também impulsionou o desemprego mesmo para quem não estava diretamente ligado a atividade cultural. O auxiliar de manutenção, Antônio Fernando, 43, atuava na conservação do espaço, na Rua Belarmino Henrique. “Não tive mais como receber pelos reparos e alguns passei até a fazer de graça, por amor a escola, para não ver o prédio se acabar”, revela. No salão superior, os troféus trazem nostalgia, com um passado de glória que vai ficando cada vez mais distante. “A nossa esperança é que esta fase difícil venha passar e possamos estar juntos, colocando a nossa escola para brilhar na avenida outra vez”, diz.

Procurada pelo Diario, a Secretaria de Cultura do Recife informou que, em breve, novas medidas serão anunciadas, buscando um apoio a esta área. Segundo o órgão, o assunto tem sido discutido como pauta prioritária, com o objetivo de garantir algum amparo à extensa cadeia produtiva do ciclo carnavalesco. A prefeitura disse, ainda, que estuda os caminhos possíveis para minimizar as perdas, inevitáveis diante do impacto da pandemia.

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