Diario de Pernambuco
Busca

URBANISMO

Cidades pós-pandemia: tornar a relação com o ambiente urbano mais humana poderá ser a saída

Publicado em: 11/07/2020 08:20 | Atualizado em: 11/07/2020 13:30


Papel da bicicleta ganha cada vez mais importância, assim como espaços para modal (Foto: Bruna Costa/Esp.DP FOTO)
Papel da bicicleta ganha cada vez mais importância, assim como espaços para modal (Foto: Bruna Costa/Esp.DP FOTO)


Andar nas ruas talvez tenha um novo significado para a população no pós-pandemia. Essa é a aposta de urbanistas brasileiros para o período que se seguirá à maior crise sanitária global das últimas décadas, provocada pelo novo coronavírus. Ainda em curso, a convivência com a doença tem influenciado diariamente o comportamento das pessoas e pode vir a impactar a infraestrutura urbana das cidades, transformando a forma como as pessoas se relacionam com o espaço público. Com o rápido avanço do vírus no país, as grandes cidades foram diretamente afetadas pela concentração de pessoas vivendo, circulando e desenvolvendo as mais diversas atividades, o que favorecia a contaminação e o rápido crescimento do número de casos. E a saída foi o isolamento social e, em casos mais extremos, as quarentenas ou lockdown.

Em um primeiro momento, a mudança já foi percebida dentro das casas e apartamentos, local onde as pessoas passaram a ficar a maior parte do tempo. Aulas à distância e home office reforçaram a necessidade de uma busca por conforto, melhor aproveitamento do espaço e da iluminação natural, e ainda locais destinados à higienização dos alimentos e calçados. Houve também uma maior adesão ao cultivo de plantas nos cômodos internos. Os reflexos nas vias, praças e parques passam a ser notados, aos poucos, no cotidiano dos municípios.

'Na rua aprendemos a conviver com pessoas diferentes, nos deparamos com paisagens e situações diversas e espontâneas', pontua Clarissa Duarte (Foto: Divulgação)
'Na rua aprendemos a conviver com pessoas diferentes, nos deparamos com paisagens e situações diversas e espontâneas', pontua Clarissa Duarte (Foto: Divulgação)


Para a arquiteta e urbanista Clarissa Duarte, que coordena a pós-graduação em Tecnologias do Design na Unicap, a pandemia já começou a mudar a forma com que as pessoas enxergam a cidade, mesmo que a rotina ainda não tenha sido retomada em massa. "Ainda é cedo para avaliar o quanto as trocas e dinâmicas urbanas foram afetadas, mas quanto ao modo de ver a cidade, acredito que há duas visões opostas: de um lado, a exacerbação e intensificação do individualismo, do confinamento e do medo, que ratifica a segregação social histórica da cidade e do país e de outro lado, vejo um 'acordar coletivo' para a importância da vida ao ar livre, da coexistência humana em espaços públicos cada vez mais vivos e verdes”, destaca Clarissa.

De acordo com arquiteta, isso também influencia o crescente apelo mundial pelas infraestruturas de mobilidade ativa. "Caminhar e pedalar com segurança e conforto nunca foram ações tão importantes quanto agora, para todas as gerações, gêneros e rendas. Caminhar agora é remédio para todas e todos e a bicicleta virou transporte de massa".

O novo olhar atribuído à cidade pode ser uma boa oportunidade para qualificar ruas e demais espaços públicos, ampliando as diversas áreas de convivência e de passagem dos modos ativos de deslocamento. A rotina saudável e a proteção da saúde população está relacionada a uma maior distribuição dos espaços e vias públicas, e pluralidade nos modais.

"Alargar calçadas e promover travessias seguras não é mais uma exigência apenas relacionada ao conforto do pedestre, mas, principalmente, à segurança e à saúde cidadã. Do mesmo modo, implementar ciclovias e ciclofaixas nas principais rotas de deslocamento é importantíssimo neste momento, em uma tentativa de transferir o transporte público, usado por boa parte da população, para um modal mais saudável, barato e sustentável a médias distâncias", completa a urbanista.

A arquiteta teme, entretanto, que o cenário ao final da pandemia, o novo normal, seja pior do que o anterior. "Se o poder público não trabalhar urgentemente em ampliar as possibilidades no espaço urbano, anteriormente infelizmente o novo normal será pior do que antes. Mas, ao contrário, se acordar para o fato de que as principais necessidades urbanas de mobilidade e saneamento são passíveis de serem atendidas de modo rápido e econômico, podemos sonhar com um futuro até melhor e mais saudável", explica, destacando os estudos do Plano Centro Cidadão, o Projeto Parque Capibaribe, o Plano Diretor Cicloviário e os Planos de Saneamento e Drenagem Municipais, documentos enviados à Prefeitura do Recife que apresentam propostas capazes de qualificar o espaço urbano da cidade.

Segundo Clarissa, as expressões "menino de rua", "no olho da rua", "mulher de rua", sempre usadas de forma negativa, precisam ser revisitadas. "No Brasil, sempre enxergamos as ruas como lugares apenas para 'circular' e muito raramente como lugares para parar, se encontrar, contemplar o movimento urbano e humano. Rua não é resto. Rua não é necessariamente suja. Rua é vida urbana.", salienta.

Carro começa a sair de cena

Parques podem ganhar novos atrativos de lazer (Foto: Paulo Paiva/DP FOTO)
Parques podem ganhar novos atrativos de lazer (Foto: Paulo Paiva/DP FOTO)


O arquiteto e urbanista Zeca Brandão tem desenvolvido projetos e estudos com ênfase em planejamento e projeto do espaço urbano. Ele destaca o papel das chamadas cidades compactas, fruto do "novo urbanismo", que já vem sendo projetado nos últimos anos por profissionais da área, em valorizar uma interação maior entre a população e o espaço urbano, através do investimento em transporte público, condições para caminhadas e, cada vez mais, dispensando o uso de carros.

"É um conceito quase consensual na atualidade, que revisa aquela ideia anterior de grandes equipamentos urbanos que desqualificam o espaço público, como os shopping centers", explica. Todas as quartas-feiras, sempre às 16h, ele recebe especialistas para discutir o impacto da pandemia no espaço urbano no canal A Cidade Pós Pandemia, no YouTube.

Nas cidades compactas, o espaço público é um elemento central e, no momento da pandemia, tem sido muito abalado. Por isso, é preciso fortalecê-lo, oferecer coisas interessantes, criar boas praças, repensar o saneamento básico e o design dos equipamentos públicos a fim de convocar novamente as pessoas para as ruas com a proteção necessária."É preciso resgatar as pessoas para as ruas. Para isso, os equipamentos precisam ser pensados. Dentro dos parques, melhorar a infraestrutura de lazer, valorizar a divisão de áreas para fins individuais, como leitura, e promover um distanciamento nos espaços destinados às práticas de atividades esportivas."

Zeca acredita que as mudanças, a longo prazo, deverão atingir drasticamente as grandes estruturas arquitetônicas como os shoppings.  "Acho muito difícil um shopping voltar a ser o que era. As estruturas não vão ser derrubadas, mas vai ter que ser reprogramadas. Agora, quem tinha medo teve que fazer compras urgentes online e percebeu que talvez seja mais perigoso sair na rua do que comprar na internet."

'As pessoas foram obrigadas a se adaptar ao home office e as empresas passaram a ver que era possível', analisa Zeca Brandão (Foto: Divulgação)
'As pessoas foram obrigadas a se adaptar ao home office e as empresas passaram a ver que era possível', analisa Zeca Brandão (Foto: Divulgação)


Na visão dele, os edifícios-escritórios devem praticamente desaparecer. "As pessoas foram obrigadas a se adaptar ao home office e as empresas passaram a ver que era possível. Os empregados vão perceber que podem gastar menos trabalhando em casa", pontua. De acordo com o arquiteto, algumas atividades vão desaparecer ou diminuir e muitos edifícios serão abandonados ou subutilizados. "Então surgirá a necessidade do arquiteto aprender a reprogramar um equipamento de alto investimento já pronto que não está mais funcionando", prevê.

De acordo com Zeca, o pós-pandemia promove, ainda, uma preocupação a nível social. "Está começando a surgir uma narrativa higienista. Atribuir às favelas o status de epicentro da pandemia, pela precária infraestrutura, é um discurso perigoso. Remete à mudança no fim do século 19, quando outras epidemias se alastraram por grandes cidades, o que provocou a derrubada de vários cortiços. Abriram avenidas, derrubaram várias casas e a população mais vulnerável não conseguiu se manter e muitos optaram por ficar no entorno e assim nasceram muitas favelas", destaca o pesquisador. "Se a mesma coisa acontecer e quiserem acabar com as favelas será um retrocesso enorme nas políticas públicas de habitação social. O ideal é mantê-los nas estruturas que já fizeram e melhorá-las."

Como a Covid-19 está mudando a sua relação com a cidade

 (Arte: DP)
Arte: DP


Diante das diferentes dimensões do impacto desta pandemia, a Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo realizou a pesquisa virtual "Como a Covid-19 está mudando a sua relação com a cidade?", para entender as novas relações com os espaços públicos e os padrões de deslocamento das pessoas em diferentes cidades do país. O objetivo é identificar as transformações comportamentais e de infraestruturas urbanas necessárias para que a sociedades possa encontrar modelos de regeneração ecologicamente viáveis e socialmente justos.

Foram 2,7 mil respostas espalhadas por todos os estados do Brasil e a pesquisa se encerrou recentemente. "Ainda estamos na fase de análise de dados, mas algumas coisas já conseguimos observar nos resultados parciais como, por exemplo, a diminuição significativa do uso do transporte público, que foi substituído principalmente pelo deslocamento a pé e pelo uso dos veículos próprios, embora os transportes públicos fossem, pelas respostas, o principal modal antes da pandemia", explica a arquiteta e urbanista pernambucana Marina Mergulhão, integrante da Rede.

Segundo a urbanista, outra problemática evidenciada pela pesquisa foi um despreparo total das nossas cidades em prover esse transporte público sem aglomeração. "Essa possibilidade de substituição do transporte público ao uso de veículos próprios se limitam ao recorte de classe, a quem pode andar de carro. Então como é que a gente garante deslocamento seguro e de qualidade para todas as pessoas que vivem nas cidades?", questiona. Ao final da análise de dados, a Rede buscará novas estratégias de ação entre suas organizações locais, visando principalmente fornecer dados para implementação de políticas públicas que atendam o contexto das cidades no pós-pandemia.

A Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo é fruto de uma articulação entre grupos em todas as regiões do país que trabalham para construção de cidades saudáveis e mais vivas, com o intuito de potencializar iniciativas locais de urbanismo colaborativo. "Acreditamos que compartilhando aprendizados, projetos e desafios do urbanismo ao redor do país seja o caminho para garantirmos uma melhor qualidade de vida nas nossas cidades", destaca Marina. Para conferir os primeiros resultados da pesquisa, clique aqui

5 ideias para colocar em prática durante a pandemia

Clarissa Duarte

1. FAIXAS DE PEDESTRES e PLACAS em todas as esquinas e principais travessias

2. FAIXAS VERDES demarcando o alargamento de calçadas onde estas não permitem a mobilidade segura e acessível para todas as pessoas a pés (inclusive cadeirantes)
Observação: "faixas verdes" não são faixas vegetadas (são faixas pintadas de verde no asfalto, simbolizando o alargamento de calçadas que amplia a circulação de pedestres

3. SINALIZAÇÃO DE ZONA 30 em praticamente todas as ruas da cidade! (Apenas em poucos eixos urbanos, quando apresentarem ciclofaixa ou ciclovia, as velocidades máximas de 40km/h ou 50km/h devem ser, respectivamente, admitidas)

4. SÍMBOLO DA BICICLETA PINTADO NO ASFALTO: Com grande parte das vias sinalizadas a 30km/h e com o símbolo da bicicleta pintado nos asfaltos ganhamos automaticamente CICLORROTAS e oferecemos aos ciclistas muito mais segurança e quase a mesma liberdade que têm os pedestres para escolherem seus caminhos, ainda que com muito mais fluidez

5. PRECISAMOS CAMINHAR e PEDALAR MUITO MAIS DO QUE NUNCA! E, quando necessário, conduzir veículos motorizados a uma velocidade máxima de 30km/h, em perímetro urbano, para continuarmos nossas atividades assegurando a nossa vida, a vida das pessoas à nossa volta e a do meio ambiente
Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL