#NALINHADEFRENTE - MANUELLA MUNIZ

'Recebo cartinhas dos meus pequenos debaixo da porta', diz médica do Samu infectada

Publicado em: 20/04/2020 09:22 | Atualizado em: 20/04/2020 13:41

Médica intensivista da equipe do Samu do Recife e cirurgiã-cardiovascular atuante em unidades de saúde de Pernambuco, Manuella Muniz está confinada em casa há mais de uma semana, após testar positivo para o coronavírus. Formada pela Universidade de Pernambuco em 2009, ela conta neste relato para o projeto #nalinhadefrente como é desafiador o dia a dia dos profissionais que atuam na busca ativa de casos dos Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Também narra como é ser profissional de saúde e ficar isolada, presa em um quarto, recebendo alimentação pela porta, enquanto os filhos, o marido e a sogra buscam manter a rotina familiar. Neste testemunho, feito a partir de entrevista para a reportagem, Manuella Muniz fala do amor à profissão e, mesmo combalida pelos sintomas da doença, diz que se vê retornando para o front deste combate.

 

 (Arquivo pessoal/ Cortesia)
Arquivo pessoal/ Cortesia

  
“Minha rotina como médica do Samu durante esta pandemia é bem difícil. Nos dividimos entre o atendimento dos telefones e as saídas. Ambos estão ocorrendo numa frequência bem maior do que a normal. As ligações não param, desde pessoas com sintomas realmente suspeitos até aquelas que estão aperreadas, ansiosas a ponto de precisarem ligar. Durante a saída, temos que ficar atentos se corresponde a um caso suspeito, pois muitas vezes o solicitante não informa precisamente e a equipe, ao chegar ao local, se não tiver paramentada para tal, se põe em risco. Quando os atendimentos já são classificados como suspeitos, existe todo um protocolo de paramentação, atendimento, desparamentação dos equipamentos de proteção (EPIs) para diminuir o risco de contágio. Não são atendimentos fáceis. A atenção da equipe é extrema. Além disso, as roupas são desconfortáveis, quentes, e não é incomum os profissionais sentirem-se mal quando paramentados.

O plantão do Samu é um desafio. Nem todo profissional é habituado a trabalhar na rua. Quando estamos no hospital tudo é, de alguma forma, mais controlado. É um orgulho pra mim fazer parte do Samu Recife. Nesse período, quando vou trabalhar, penso muito em fazer o melhor e manter a atenção, com todos os cuidados, para proteger minha família. Em um plantão, não temos controle. Pode estar tudo estável e de repente uma série de coisas acontecem, necessitando de solução rápida. Hoje em dia, com toda aquela paramentação que é sufocante, muitas vezes precisamos entrar em fila de ambulâncias para deixar algum paciente em algum hospital de referência no tratamento.

Infelizmente, estamos diante de uma situação em que a todo momento acompanhamos cenas horríveis. Nos morros, em lares de idosos, colegas internados em UTI... Neste período em que estamos enfrentando a pandemia, ouvi uma situação que me marcou, porque nos deixou ainda mais próximos da realidade: uma amiga, depois que retornou de um plantão desgastante emocional e fisicamente, ao chegar em casa, nos escreve dizendo que sua filhinha de 3 anos estava taquipneica (respiração acelerada), bastante cansada e com muita febre. É muito complicado.

TESTE POSITIVO

Apesar de sabermos que existe uma possibilidade muito real de positivar, por conta de nosso trabalho, receber o resultado do teste confirmando que você tem a doença é sempre um susto. Também sentimos medo e ansiedade. Nesse momento, o fato de ser médica não colabora, pois temos em mente todas as consequências da doença. Recebi o diagnóstico positivo para Covid em um domingo, dia 12 de abril. Mas eu já estava isolada antes disso. Graças a Deus, tive sintomas leves. Muita tosse, perdi o olfato e isso é muito marcante. Não é comum em outras viroses. Tive dois dias de febre no início, mialgia, que são as dores no corpo e musculares. Mas tive muito medo de dispneia (falta de ar). Tenho oxímetro para avaliar a oxigenação do sangue e o aparelho está comigo direto. Sabemos como a doença é traiçoeira. Fico atenta a cada detalhe, a cada sintoma.

A rotina familiar tem sido difícil. Desde o resultado do exame, estou trancada no quarto na minha própria casa. Meu marido deixa as coisas na porta. Meus filhos estão na mesma casa e eu falo e vejo as minhas crianças pelo facetime. A mais velha tem 7 aninhos e entende, mas me diz direto que está com saudades, mesmo estando perto. O mais novo tem 4 anos e não entende. Demos férias à secretária. Meu marido e minha sogra estão cuidando deles. Têm feito de tudo. Agradeço demais a ambos. Até porque meu marido está tendo que conciliar todo esse cuidado e trabalhar em home office também.

SAUDADE
Recebo cartinhas dos meus pequenos debaixo da porta. Recebo vídeos. Já ouvi muitas perguntinhas como ‘Por que você escolheu ser médica? Por que não escolheu ser advogada, como o papai?”. Mas é muito difícil não vê-los. Tenho medo do contato e de os deixar expostos. Digo a eles que já já irei abraçá-los muito. Que estou bem. E que estou com muitas saudades.

Estou me tratando na minha casa, mas me vejo, sim, voltando para linha de frente da assistência quando cumprir a quarentena e estiver liberada. Aí estarei me sentindo um pouco mais segura, torcendo para ter adquirido imunidade pós doença. Amo minha profissão. Estamos no mundo para servir.”

 

O PROJETO #NALINHADEFRENTE
Este depoimento faz parte do projeto #nalinhadefrente do Diario de Pernambuco. O #nalinhadefrente traz relatos em primeira pessoa de profissionais, sobretudo os da área médica, que têm maior exposição ao vírus e correm mais riscos ao lidar com quem se contaminou pela Covid-19. Se você quiser contribuir com o projeto, mande um e-mail para silvia.bessa@diariodepernambuco.com.br se dispondo a conceder a entrevista. Ou, se tiver indicação de algum profissional de quem queira ouvir o relato, indique ainda por meio de comentários nas redes sociais  do Diario ou inbox.

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