Vida Urbana
ALTERNATIVA
Mesmo com isolamento social, jovens da periferia ainda buscam Marco Zero para banho de rio
Publicado: 27/04/2020 às 09:31

/Foto: Leandro de Santana/ DP FOTO

Com avanço do novo coronavírus no país, a principal recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é ficar em casa. Contudo, para quem não dispõe de uma casa espaçosa, um potente smartphone ou videogame última geração, manter-se em casa é uma tarefa mais difícil. Quando se trata do público infantojuvenil, ficar em isolamento pode ser um desafio ainda maior. A reportagem conversou com um grupo de jovens da Ilha de Joaneiro, localizada no bairro de Campo Grande, para entender melhor como está sendo a realidade das opções de lazer, em meio a pandemia, para a juventude periférica local.
O grupo, composto por crianças - a mais nova tem oito anos - até jovem de 21 anos, foi encontrado no cartão postal da capital pernambucana, o Marco Zero do Recife. Contudo, O local que há tempos não vê mais os turistas, estava tomado por risos e sons de splash nas águas do rio Capibaribe produzido pelo grupo, em uma mistura de diversão e competitividade.

Ainda em meio ao cenário de pandemia, os meninos estão lá a postos para realizar o próximo pulo, rumo às águas escuras do rio. Como em um salto olímpico eles se preparam. Concentram como se mais nada houvesse no mundo e pronto. Mira, estica e pula. O salto, para os olhos de quem não está acostumado a ver saiu perfeito. Mas para eles, a exigência é maior. Mesmo com o frenesi do momento, os jovens de Campo Grande conseguem manter uma distância maior entre eles no rio do que na própria casa ou na comunidade, a Ilha de Joaneiro.
A turma, composta por rapazes, se organizam através de um grupo em uma plataforma de conversas online. Intitulado de GDT - que significa Galera do Terreno -, o grupo surgiu porque os jovens se reuniam em um terreno abandonado para jogar bola. Como a prática do futebol está proibida por ser um esporte de contato, os rapazes utilizam o grupo para marcar os mergulhos e banhos de rio no Marco Zero do Recife.
Com regras internas de comportamento, os jovens de Campo Grande tentam se blindar do preconceito por virem da favela, como também tentar evitar a forte coerção policial. As regras de convivência são seriamente respeitadas no grupo. Maycon Cosmo Barbosa, 21 anos, faz parte do GDT e fala que baderna e mau comportamento não é aceito entre eles. “Quem fica com perturbação ou maloqueiragem é ‘cobrado’ pela galera”, isso significa que a pessoa é punida pelo grupo e pode ser barrado dos próximos encontros. Essa é uma forma deles se protegerem da ações mais truculenta dos agentes de segurança.

Maycon conta que atualmente atua como Salva Vidas e que estava fazendo o curso de Bombeiro Civil antes da pandemia da Covid-19. Parte do desejo em utilizar as habilidades de natação para realizar resgates surgiu nos passeios até o rio com o grupo de crianças, jovens e adolescentes. Respeitado por todos, os meninos são enfáticos quando se referem a Maycon. “Esse é o Maycon ‘Felps’. Quem atravessa com ele tá com Deus”, relata um jovem, se referindo a travessia à nado até o parque das esculturas, que só é realizada pelos mais velhos, tendo em vista o grau de dificuldade e a correnteza presente no rio.
Em relação às outras opções de lazer, o grupo relata que está sendo difícil ficar em casa porque muitos não possuem celular ou videogame e, antes do novo coronavírus, eles ficavam na rua jogando bola e conversando com os amigos, o que não pode mais ser feito.
Davidson farias, 17 anos, faz parte do grupo e está no segundo ano do ensino médio. O jovem conta que atualmente complementa a renda atuando como barbeiro. “Estou aqui com meus amigos, mas minha mãe não pode saber que estou pulando no rio. Ela tem medo que eu venha para cá, mas em casa eu corto o cabelo dos amigos, ajudo ela nas coisas de casa e depois não tem mais nada para fazer, então venho para cá”, contou.

A psicóloga Carla Amorim estuda Terapia Cognitiva Comportamental e relata que as consequências do isolamento social causam um grande impacto na população em geral. Todavia, quando se trata de jovens, as consequências são agravadas. “Observamos que os adolescentes, em geral, possuem mais dificuldade de diálogo e comunicação. Os jovens, em sua maioria, preferem manter contato mais próximo com os amigos, quando se trata de conversa, se sentem mais abertos. Impossibilitados de fazerem isso, se fecham. Muitos possuem dificuldade de ter um relacionamento interpessoal em casa, com seus familiares”, destacou.
Ao falar sobre a quebra de rotina do público infantojuvenil, a psicóloga fala que qualquer mudança brusca no ritmo de vida pode interferir nas crianças, jovens e adolescentes, podendo ser potencializado pelo ambiente familiar sem diálogo. “A mudança de rotina traz com ela o aumento dos níveis de ansiedade, juntamente com sentimentos e comportamentos depressivos, podendo acontecer mais raramente, pensamentos suicidas. Esse último ponto, com menos frequência.”
Partindo para o campo da pesquisa e da promoção dos direitos da criança, adolescente e jovem, Humberto Miranda professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador das Escolas de Conselhos de Pernambuco destaca que o contexto da pandemia acentua a desigualdade pré-existentes, atingindo em cheio os mais vulneráveis.
O professor universitário ressalta que em tempos do novo coronavírus, devemos ser mais compreensivos para entender melhor as dificuldades do outro enfrentar o isolamento social. “É difícil para um jovem de classe média, que mesmo no isolamento, possui internet, televisão por assinatura, informações adequadas de como se alimentar e exercitar; vamos avaliar a dificuldade do jovem da periferia que vive em condições de moradia precarizada, muitas vezes sem comida, não dispondo de estrutura material para vivenciar o distanciamento social dignamente. É fundamental o exercício da empatia, percebendo que são condições diferentes”, pontuou.
Quando destacamos as diferentes formas de lazer, Humberto enfatiza ainda que a cultura infantojuvenil periférica possui referenciais de pontos de diversão mais diversificado, saindo do senso comum. As ruas, pontes e rios possuem outro sentido. “Precisamos respeitar as diferentes formas de sociabilidade vivenciadas por eles, uma vez que são produções culturais, manifestações de arte, de lazer e de esporte, que nesse período de pandemia também estão comprometidas. São nesses espaços que eles aprendem, produzem cultura e se manifestam politicamente.”

Para que o impacto do isolamento seja minimizado, meios alternativos de lazer são essenciais para que jovens periféricos enfrentem a pandemia com a mente saudável. Através da improvisação, esse público tenta se distrair para ir além do medo da contaminação que permeia a mente de boa parte da população. Sem deixar de dar importância ao isolamento social, é preciso ter um olhar empático para compreender a importância da sociabilidade das crianças, jovens e adolescentes para que tenham alternativas seguras de distração.
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