'Desde a triagem, a enfermagem fica 24h com o paciente'
Publicado: 22/04/2020 às 09:50

/Arquivo pessoal/Cortesia
Enfermeira e professora de uma instituição de ensino, Fernanda Lira é profissional graduada há 15 anos. Plantonista na emergência do Hospital Correia Picanço, uma referência em tratamento da Covid-19, especialmente para atendimento pediátrico, Fernanda destaca o papel da enfermagem desde a acolhida ao paciente até os exames, medicamentos e cuidados de higiene. Aqui, neste relato para a série #nalinhadefrente, ela conta como é ver o dilema da escolha dos pacientes que iriam para a UTI no primeiro plantão após o anúncio do isolamento social no Recife, em meados de março. E fala sobre o que mais preocupa os profissionais de saúde hoje: o futuro.
“Era meu plantão quando aconteceram os primeiros internamentos. Me vi rodeada por ambulâncias e não sabia para onde ia, o que fazer primeiro. Foi o meu primeiro grande impacto. Nesta data, começava o isolamento social, acho que era dia 16 de março quando escolas e faculdades foram fechadas.
Eu e a médica saímos do hospital e vimos os pacientes dentro das ambulâncias. Já tinha sido separada uma caixa para pacientes suspeitos da Covid-19 para atendimento de urgência. Como nossa referência era para paciente pediátrico, nossos pacientes começaram a chegar - nossa UTI é pequena, tem cinco leitos. Chegou o primeiro, segundo, terceiro e mais três ambulâncias e aí começou cada médico dizendo ‘Meu paciente veio de tal lugar’, ‘Meu paciente veio de uma viagem…”. Pensei: ‘Gente, vamos ter de escolher quem vai entrar’, e foi isso que foi feito.
A médica decidiu pela história, de um paciente que veio do exterior, outro que veio de interior, de um lugar mais distante... E aquilo foi acontecendo um atrás do outro. Quando a nossa UTI lotou, precisamos devolver os outros pacientes. Para mim, isso foi péssimo. A gente via a ambulância vindo com outros profissionais, famílias dentro com olhar de desespero. Tipo pedindo ‘faz alguma coisa’ e isso não era algo que acontecia com frequência.
Nossa UTI pediátrica sempre ficou com um ou dois leitos vazios. Só temos UTI lotada em épocas de surtos sazonais, como o da meningite, porque somos hospital de referência. Geralmente, isso acontece no meio do ano porque é inverno e as pessoas tendem a se aglomerar mais, e no final do ano, porque é férias. Como não estamos em época de surto, nossa UTI tinha realmente vaga. Tínhamos vagas, ainda bem, porque a gente acolheu quem precisava naquele momento e os outros que não tivemos como acolher, tivemos de devolver. Devolver significa que o paciente vai voltar para o serviço de origem dele. Por exemplo: teve um que veio do Imip. Então, não tínhamos como admitir, internar e aí vai para o Imip novamente pela Central de Regulação para tentar outra vaga.
Um dos pacientes entrou para a UTI. A colega da UTI já estava em atendimento e ela se paramentou toda para entrar no atendimento ao paciente. Eu não poderia deixar ela lá e simplesmente sair, tive de ajudar. O paciente que eu levei precisava de cuidados e fiquei com este paciente. Eu em um box; minha colega em outro. Chegou um novo paciente, aí foi chamado mais um colega para ajudar. Ficaram três enfermeiros, cada um num box atendendo. Ali, para mim, foi o mais chocante e difícil. Antes, nunca precisei entrar na UTI para ajudar porque estava muito pesado, puxado. Sempre levava pacientes da emergência para UTI e saia. Mantínhamos uma rotina com tranquilidade. Agora, tudo mudou.
Esse primeiro dia dos internamentos foi muito difícil. Nunca passei por isso em 15 anos de formada e 13 anos em que estou lá neste hospital. Uma situação dessas em que a gente recebe um paciente um atrás do outro e de repente, acabou e não tem mais como fazer. Vão embora. Fiquei pensando: se este é o primeiro dia e aconteceu isso, e agora? Alguns exames começaram a dar negativos e acho que começaram a perceber que nossa unidade sozinha não iria acomodar esse público, até porque as pessoas pensavam que as crianças não seriam tão atingidas. Que ia ser mais com adultos e idosos. E a gente viu que isso não foi a realidade; também estava atingindo crianças. Todos os pacientes agora estamos tratando como suspeitos - se for para meningite, a gente já sabe. Mas, se não for, tratamos como suspeito.
Eu soube do caso do bebê que morreu por um boletim da televisão. Era do hospital onde trabalho. É muito triste. E a relação de interação com o paciente mudou muito também. A gente não consegue conversar com as crianças porque estamos de máscara. As que nos veem, que não estão graves, intubados ou sedados, veem apenas nossos olhos. Tentamos passar a mensagem de tranquilidade pelo nosso gestual e com o corpo mesmo. Acalmar, mostrar que tudo vai passar e tal, mas não dá para conversar mesmo. Antes, às vezes com o paciente pediátrico, a gente levava no colo dependendo da idade e ia com a mãe junto. O paciente adulto, quando chegava no setor, aperta a mão, bota pelo ombro e isso não está acontecendo.
Mesmo tendo um suporte do Conselho de Enfermagem e do nosso sindicato, canais de denúncias para nossa condição de trabalho, e a gente tem esse suporte, mesmo assim a gente não deixa de ter o medo. E, mesmo que a gente tenha os equipamentos de proteção, dá medo. Surgem dúvidas: ‘Será que me paramentei corretamente, tirei a roupa certo?’ ‘Será que cocei meu olho sem querer, será que não me contaminei?”
Os outros profissionais de saúde estão como eu. Acho que as pessoas estão mais preocupadas com o futuro. Em ‘como será agora?’, porque está naquela coisa todo mundo pensando: ‘Ah, vai piorar’. Com relação à equipe de saúde, a gente vê os casos cada vez mais mais frequentes. Então, a gente pensa: “será que serei o próximo?”.
É a gente que presta os cuidados de enfermagem, que faz medicações, exames, cuidados de higiene, que faz cuidados burocráticos e administrativos. Está 24 horas com este paciente. A enfermagem está desde a ponta, na triagem da emergência, quando ela recebe este paciente quando dá entrada. A enfermagem é quem faz esse acolhimento. Se este paciente precisar ser internado, continua com a enfermagem porque vai entrar numa UTI e será recebido também por profissionais de enfermagem. A gente está literalmente na linha de frente. Com certeza, esta crise do coronavírus é meu maior desafio profissional”.
O PROJETO NA LINHA DE FRENTE
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