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#nalinhadefrente - Vicente Vaz

"A vida de ninguém será mais a mesma"

Publicado em: 18/04/2020 08:38 | Atualizado em: 18/04/2020 08:46

 

 

Um dos mais experientes infectologistas de Pernambuco, o médico Vicente Luiz Vaz da Costa soma 34 anos de profissão. Na sua trajetória, já enfrentou epidemias como da influenza, dengue, HIV/Aids e cólera, e agora está diante da Covid-19. É médico do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Universitário Oswaldo Cruz e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco. Neste depoimento para o Diario de Pernambuco, Vicente Vaz vai além das teorias e projeções. Aqui, no primeiro testemunho publicado pelo projeto #nalinhadefrente, o especialista fala da rotina que vive hoje no enfrentamento do coronavírus em Pernambuco, do que mudou e dos medos enfrentados.


 (Ines Campelo/DP/D.A Press)
Ines Campelo/DP/D.A Press

“Minha rotina de trabalho hoje é quase que totalmente voltada para a epidemia de coronavírus. Seja trabalhando ou estudando sobre o assunto. Vou ao Hospital Universitário Oswaldo Cruz todos os dias pela manhã e vejo os pacientes internados com suspeita da Covid-19 ou já confirmados. Eventualmente vejo a enfermaria dos pacientes regulares de doenças infecciosas, que continua funcionando. Temos um programa de residência médica que forma especialistas na área e que está funcionando muito como apoio ao atendimento dos pacientes da pandemia também. Há escalas em funcionamento para que os profissionais de saúde não se exponham demasiadamente ao risco biológico que o atendimento aos pacientes com coronavírus representa. Então evitamos entrar nas áreas críticas todos os dias, para minimizar os riscos de contaminação. Mas os casos vêm aumentando em número e gravidade e não sei se poderemos manter esse distanciamento relativo por muito tempo. A tendência é de aumentar a exposição.

DESPERSONALIZAÇÃO
A rotina é mais intensa que a vida normal no que se refere a uma nova curva de aprendizado com desafios enormes, levando em conta que temos de nos paramentar para atender os pacientes, o que gera um certo distanciamento e despersonalização da relação profissional de saúde e pacientes, afinal estamos todos mais ou menos iguais e com o rosto coberto de máscaras. Acho que isso afeta negativamente a interação com os doentes. Mesmo que cheguemos a nos identificar para os pacientes, o que fazemos, ainda assim é muito diferente do contato normal e da prática médica com que estamos habituados. O que não muda é o olho no olho, a despeito dos óculos, escudos faciais de proteção. Espero que os pacientes sintam que estamos interessados em ajudar, apesar da aparência impessoal.

Frequentemente fica difícil até mesmo reconhecer os colegas que cruzam conosco nos corredores do hospital. Pessoas que conhecemos há anos. Outras pessoas estamos conhecendo apenas agora e raramente as vemos sem máscaras. Acho que vou ter de ser reapresentado a muita gente quando tudo isso acabar. A rotina de trabalho é intensa e desgastante, mas as relações profissionais se estreitam nesse momento. Sabemos, mais do que nunca, que precisamos atuar com unidade e apoio mútuo. E isso tem acontecido.

Uma das vantagens da minha profissão é que eu não preciso ficar de quarentena. Eu posso trabalhar e ajudar alguém. A medicina funciona bem e até melhor em cenários desfavoráveis para as outras profissões, no sentido de ser essencial. Funciona bem em quase qualquer cenário.

Meu pensamento mais presente ao longo de minha jornada é o de sempre: como prestar um bom atendimento aos pacientes que nos procuram, sem expor demais minha equipe e eu mesmo e sem deixar desassistido o doente que é a razão da nossa profissão. Nesse momento com características únicas pelo fato da possibilidade de contaminação estar sempre presente.

ESCOLHAS
Os momentos mais difíceis são quando esbarramos nas dificuldades de trabalho, que infelizmente fazem parte da realidade cotidiana dos hospitais públicos do Brasil, sobretudo do Nordeste do Brasil. Há muitos bons profissionais e gestores. Mas sem dinheiro nada funciona direito. Então somos obrigados a fazer escolhas muito cruéis que envolvem quem vai disputar um leito de UTI por exemplo. Não que isso seja um fato novo devido à pandemia. Faz parte de nossa rotina trabalhar com poucos recursos. Mas sempre é chocante.

O serviço de doenças infecciosas do HUOC tem o nome de ISOLAMENTO ADULTO. Há poucos dias me dei conta do quanto essa denominação era antiga e obsoleta e ao mesmo tempo absolutamente atual. Foi difícil assimilar que todos os pacientes seriam atendidos sob regime de isolamento de contato e também respiratório.

Quando entrei pela primeira vez para atender os pacientes totalmente paramentado e tendo que prestar atenção e assimilar uma rotina de cuidados que eu só praticava eventualmente, me dei conta de que ia ser muito difícil. Mas a realidade bateu forte quando a doença alcançou a Itália. Se um país de primeiro mundo estava enfrentando enormes dificuldades para lidar com essa situação, entendi que seria um desafio gigantesco para o mundo inteiro. Uma frase do meu colega e chefe Dr. Demétrius Montenegro eu lembro bem, durante uma das reuniões de preparação para o enfrentamento da epidemia. Alguém perguntava como iríamos enfrentar a pandemia. E ele respondia pragmaticamente: “Da maneira que pudermos enfrentar. Com o que temos”. E temos muito, em termos de material humano.

Precisamos e vamos precisar de muitos recursos, equipamentos de proteção individual e insumos hospitalares. Mas descobrimos que temos uma massa crítica de material humano de ótima qualidade que estava latente esperando para ser acionada. Falo de médicos, enfermeiros, técnicos, pessoal da limpeza, os gestores, enfim, uma multidão de gente disposta a trabalhar pelo bem comum. Lamentavelmente há os que não se engajam, mas os que se dispuseram a enfrentar têm uma grandeza e uma coragem muito maior.

MEDOS
Os infectologistas, quando fazem dessa especialidade uma opção, aprendem a lidar com riscos biológicos e os medos. Somos treinados a lidar com isso e o melhor exemplo é o trabalho diário com pacientes com tuberculose, pacientes com HIV, hepatites, etc. Então há um treinamento e uma consciência dos limites e de como se proteger. As outras especialidades também convivem com esse mesmo risco em menor escala. Acho que o medo é saudável e nos garante que não vamos nos arriscar impensadamente e irresponsavelmente. Mas não podemos nos deixar dominar por ele. Vejo meus residentes, muito jovens, encarando as precauções e os riscos com responsabilidade e coragem. Acho que isso é fruto do treinamento que recebem. Para isso o conhecimento é fundamental. Estudar sempre, saber seus limites e prestar a melhor assistência possível sem se contaminar. Eventualmente alguns profissionais de saúde serão contaminados. É um risco inerente à profissão.

Mas existe entre os médicos um medo que não passa nunca. O medo de errar. Eu me formei em 1986 e continuo com ele. São tantas variáveis e muitas decisões vitais que temos de tomar que é impossível não errar. Estudamos e trabalhamos para errar pouco, errar menos, mas não será possível acertar sempre.

Difícil dizer hoje quando podemos nos sentir mais aliviados. Acho que nossa vida não será mais a mesma após tudo isso. A minha não será. Acho que a de ninguém. Essas crises terminam por nos transformar e enxergar outras coisas que não víamos antes. A sensação é de que ainda estamos no começo aqui no Brasil. Levará meses para que essa onda passe. Até lá é trabalhar e fazer o melhor com o que temos.”

 

O PROJETO

O projeto #nalinhadefrente iniciado nesta edição pelo Diario de Pernambuco traz relatos daqueles que estão no combate direto ao coronavírus, como os profissionais de saúde.

Com estes testemunhos, feitos a partir de entrevistas, queremos reportar ao leitor o ambiente em que estas pessoas trabalham, mostrar como enfrentam seus próprios temores, administram a rotina pessoal e o distanciamento dos filhos - nuances que nem sempre estão nas matérias jornalísticas, mas que personalizam estas pessoas. Muitas das quais despersonalizadas por máscaras e roupas especiais de proteção.

O projeto  #nalinhadefrente é uma forma de humanizar ainda mais nossa cobertura jornalística, mostrando a guerra travada por profissionais que estão exercendo funções tidas como essenciais para que a maior parte da população possa ficar em casa, protegida em isolamento social e preventivo.

Além dos convites feitos pela reportagem, contamos com você, leitor (a), para ampliar o projeto e ouvir outros trabalhadores do front. Se você tem sugestão de profissional para ser ouvido, entre em contato com a reportagem. Mande uma sugestão para o email silvia.bessa@diariodepernambuco.com.br ou entre em contato pelas redes sociais do jornal.

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