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A história da professora que escolheu o Coque como sala de aula

Publicado em: 15/10/2019 15:43

Foto: divulgação
O 5º ano C nunca tinha visto nada parecido entre as quatro paredes daquela escola. A professora novata acabara de rasgar todos os desenhos preparados pelos alunos em folhas de papel branquinhas entregues por ela, momentos antes. Naqueles traços estava a representação das coisas mais amadas, mais importantes na vida deles, conforme a “tia” tinha acabado de pedir para a turma fazer. Se ela mesma passou a tarefa, porque rasgou em seguida?, questionavam. Era exatamente essa a pergunta mais desejada pela professora Lucélia Albuquerque, 37 anos, naquele dia. A resposta tornou-se um divisor de águas na relação entre a novata e os meninos e meninas da Escola Municipal Professor José da Costa Porto, no Coque, no Centro do Recife.

Dias antes desse episódio, Lucélia deixou a escola chorando. Enquanto escrevia no quadro da sala, os estudantes gritavam, corriam, subiam nas mesas. Naquele momento, a professora não encontrou outra saída, a não ser ir embora da  escola, em silêncio. “No meu coração eu estava tentando fazer o bem. E eles estavam desprezando. Me senti muito mal. Quando, dias depois, rasguei um por um os desenhos, expliquei que eles fizeram a mesma coisa comigo. Vim dar aula com o mesmo amor que vocês fizeram o desenho e vocês rasgaram o meu amor, falei na época. Quis mostrar o quanto é ruim você querer fazer algo bom para o outro e ser desrespeitado.” Isso foi em 2011, logo que a professora de artes assumiu seu lugar na escola através de concurso público promovido pela Prefeitura do Recife. O tema da aula era: o que é arte?

Desde então, a professora vem compreendendo sua função social junto aos alunos e famílias do Coque. Desconstruiu teorias aprendidas no curso de educação artística da Universidade Federal de Pernambuco, misturou práticas e encontrou o caminho do respeito na comunidade escolar. Acompanhou um tanto de professores deixando a escola e até pedindo exoneração do emprego. Ela não. Poderia ter escolhido outro bairro para trabalhar. Mas escolheu o Coque. Iria até o fim.  

“No começo, foi bem complicado. Ao mesmo tempo que os meninos e meninas da periferia têm garra, força, uma arte, um corpo e uma forma de se expressar somente deles, também repelem muito quem chega. Primeiro, testam a gente. Vão fazer tudo para a gente desistir. Se você passar por tudo que impuserem, desde ameaças, xingamentos e bagunças, você conquista o coração deles. É quando começa nossa primeira batalha. Nesse momento, a gente se encanta ou se decepciona e desiste da educação. Eu gosto de desafios”, reflete Lucélia.

A professora decidiu entender o porquê da violência e desestímulo entre os estudantes para, a partir daí, aplicar uma didática diferenciada nas aulas de arte.”É mais fácil para a gente julgar e dizer que eles não servem para nada e por isso não faremos qualquer ação para mudar o cenário. Mais difícil é procurar entender o porquê da situação. Busquei autores e inspirações de pessoas que buscam trabalhar a humanidade na educação antes de ensinar a técnica, que primeiro enxergam o humano, antes de querer colocar goela abaixo assuntos que não interessam.”

Quando a professora Lucélia compreendeu quais músicas, desenhos e danças os estudantes mais gostavam, desenvolveu uma didática de aproximação entre percepções diversas de arte. “Não há ser humano que não goste de arte. Ao fazer o movimento de me aproximar, eles me mostraram interesse e começamos a ter vínculos afetivos antes mesmo de me reconhecerem como professora. Não interessa falar na Monalisa se o que eles conhecem e querem é dançar o passinho. Dentro do passinho, o que posso trabalhar com eles? Esse é o desafio diário, refletir sobre nossa prática de professores e não levar o conhecimento pronto. Falo, por exemplo, que o movimento do passinho tem no frevo, falo então da relação da capoeira com o frevo, de como surgiu, quem são os mestres. Tento estabelecer um vínculo entre o conhecimento acadêmico e a prática deles”, pontua.

Quando Lucélia pensou em ser professora no Coque, não imaginou o tanto de via de mão dupla vivenciado nesse caminho. “Os alunos me ensinaram que professor não é o dono da verdade. Ensinaram que ser professor é dialogar, buscar essa troca.” Desde fevereiro, a professora de arte está afastada da escola por problemas de saúde. Pretende voltar o mais breve possível ao Coque. Os alunos da Escola Costa Porto, conta a professora, são criativos e fortes, mas extremamente carentes de afeto. “Eles têm um brilho no olhar de quem consegue enxergar na escola um ambiente de acolhimento. A gente não pode ser só professora. Tem que ser mãe, pai, psicólogo, assistente social.” Os meninos e meninas do Coque devem estar com saudades da professora Lucélia.

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