Dia das mães

Doulas: a união de mulheres em prol do nascimento humanizado

Publicado em: 12/05/2019 09:30 | Atualizado em: 12/05/2019 01:50

Doula foi determinante para a dentista Hellen Gonçalves vencer o medo durante as 32 horas de parto. Crédito: Deborah Ghelman

Foram 32 horas em trabalho de parto. Do momento em que deu entrada no hospital até o nascimento de Betina, a dentista Hellen Gonçalves, 32 anos, passou 24 horas em esforço contínuo para receber a segunda filha. Ao longo desse tempo, a ansiedade pela chegada se misturou, várias vezes, ao medo de não conseguir. Houve momentos em que o abalo físico e psicológico tomaram conta. Nessas horas, uma voz ao lado incentivava e motivava Hellen. Dava forças para ela não desistir. Enxugava as lágrimas e amenizava a dor. Era Mariana Bahia, a doula.

Do grego “mulher que serve”, a doula é a responsável por oferecer conforto físico e psicológico para a grávida, desde o momento da descoberta da gestação até depois do nascimento do bebê. Em ascensão no Brasil, a reboque da ampliação da luta pela humanização do parto, a “doulagem” tem sido cada vez mais requisitada pelas famílias, assim como tem sido uma busca profissional de muitas mulheres. É o resgate de uma função que se perdeu com a hospitalização do nascimento, no século XX, que está atrelada à epidemia de cesáreas e aos casos de violência obstétrica. “Antigamente, as mulheres pariam em casa, sempre tinha outra mulher próxima ou da família em volta. A doula é a retomada dessa prática”, explica Mariana Bahia. “A doula vem para fazer esse resgate, só que agora baseada em evidências científicas”, complementa a doula Nanda Barradas.

O trabalho de uma doula começa ainda na gestação, repassando informações para que a mulher possa escolher, de forma consciente, como deseja ter o bebê. Isso significa encontros e trocas de mensagens com sugestões de livros e artigos científicos, mostrando quais são as vias de parto, quando cada uma é necessária, como serão as mudanças no corpo, o que acontece nos primeiros meses de puerpério e como lidar com a amamentação. A doula também orienta a grávida no preenchimento de um plano de  parto, uma espécie de documento de registro de como ela planeja viver o momento, o que autoriza ou não que seja feito pela equipe.

No dia do parto, a doula costuma ser a primeira a chegar e a última a sair. Ela está lá para cuidar da mulher em tempo integral e não pode realizar nenhuma intervenção clínica. “A doula não faz atos médicos e assistenciais. Ela não pode tocar, avaliar contrações. As pessoas ficam achando que a doula veio assumir a função do médico ou da enfermagem, mas ela está ali para servir a mulher em outro contexto”, explica a diretora do Hospital da Mulher do Recife (HMR), Isabel Coutinho. A doula presta acompanhamento emocional e dá suporte com métodos não farmacológicos para redução da dor, como massagens, banhos ou encontro da posição ideal para parir. Muitas vezes ela é importante como intermediária entre a equipe de saúde e a família, na questão levar as informações de forma acessível”, acrescenta Isabela Coutinho.

Estima-se que no Brasil existam mais de 500 doulas. Em 2017, o Ministério da Saúde havia publicado diretrizes para o parto normal e humanizado, válidas para todas as maternidades, casas e centros de parto, que estabeleciam a incorporação da presença das doulas nesses locais. O acompanhamento da doula, de acordo com estudos realizados desde a década de 1990, é relacionado a uma redução de 50% nos índices de cesariana, 25% no tempo de trabalho de parto e 60% nos pedidos de analgesia. Além disso, mulheres acompanhadas pela doula têm mais sucesso na amamentação, reduzem chances de depressão pós-parto e relatam mais satisfação com a experiência de parto, afirmam os especialistas. “É importante lembrar, contudo, que o protagonismo é 100% da mulher. Estamos lá para dar suporte e respeitar todas as decisões dela”, ressalta Mariana Bahia.

Hellen diz, com segurança, que sem a doula não teria conseguido aguentar as 32 horas. “Se Mari não estivesse lá, certeza que eu não teria conseguido. É um momento surreal, muita dor, pressão psicológica. Eu estava chorando horrores, sem entender por que o parto não evoluía, e ela segurando a minha mão. Se você pega as minhas fotos, em 90% ela está ao meu lado. Foi essencial para chegar ao meu objetivo final”, conta ela, que também foi acompanhada pelo marido. Hellen teve a primeira filha de cesárea. Confessa que tinha preconceito com a humanização, achava até feio, antes de pesquisar e decidir pela experiência. “Eu renasci, literalmente, no segundo parto. Como mãe, mulher e esposa. Pude ser dona de mim naquele momento.” 
 
Transformar a experiência de parto é um dos motivos que levam mulheres à doulagem 
Profissionais de várias áreas têm trocado a profissão pela doulagem, caso do grupo Namp. Crédito: Tarciso Augusto/Esp. DP Foto

A história de maternidade de Amanda Goiana, 29 anos, tem um precedente de incertezas e frustrações. Foram seis anos tentando ter um filho, com duas interrupções de gravidez nesse período. A primeira delas por um aborto espontâneo, a segunda, depois de um acidente de trânsito. Quando chegou a terceira e aguardada gestação, Amanda foi colocada em uma encruzilhada na 39ª semana. O profissional médico escolhido retrocedeu e induziu uma cesárea. Meses depois, já com o filho Antônio nos braços, escrevendo na internet para outras mães, ele percebeu a sequência de violências que sofreu e decidiu lutar de forma ativa pelo protagonismo da mulher no parto.

O caminho encontrado para isso foi se transformar em doula. Até aquele momento, Amanda era uma professora de biologia realizada. A maternidade e os percalços desse caminho, contudo, transformaram a vida profissional dela. “Conheci o trabalho das doulas por meio dessas conversas no blog e percebi que poderia fazer algo para que outras mães não passassem pelo que passei. Uma mulher que tem apoio e informação tem mais chances de chegar ao fim da gestação com uma experiência positiva”, diz. Amanda fez um curso de doula em 2018 e largou as salas de aula.

A história dela se repete cada vez mais. Tem crescido o número de mulheres que, diante de uma experiência de parto traumática e violenta, escolhem a doulagem como forma de doar conhecimento a outras futuras mães. Nos últimos cinco anos, o número de mulheres que têm buscado a formação na área cresceu. De acordo com a doula Mariana Bahia, que ministra com outros profissionais o curso Partejar no Recife, mais de 70% das pessoas que buscam a formação se encaixam nesse perfil de engajamento “pós-trauma”. Também complementam a lista de motivos para o incremento de doulas no país o filme “O renascimento do parto” e as próprias experiências positivas com outras doulas.

Amanda faz parte do Núcleo de Apoio à Mãe e ao Parto (Namp), do qual também é integrante a advogada Priscila Maia, 31. Desde pequena, ela ouvia da mãe sobre os benefícios de um parto normal Em 2016, quando engravidou, já sabia como queria ter o filho e foi em busca de informação. Descobriu que mais importante que a via de parto é a humanização do momento. Isto é, que o processo de gestar e parir um bebê seja protagonizado por ela, com suas vontades respeitadas do começo ao fim. “Tive duas doulas, que mandavam muito material para eu ler. Me informei muito, então o parto foi um sonho. O dia mais marcante da minha vida. E percebi que poderia contribuir para outras mães viverem a mesma sensação”, descreveu. 
 
O encontro entre famílias e doulas
A veterinária Marina Duarte decidiu pela doula depois de pesquisar muito sobre parto humanizado. Crédito: Bruna Costa/Esp. DP Foto

A escolha da doula passa pela criação de um vínculo entre duas mulheres. De um lado, está alguém que vai ser observada de perto num momento de extrema intimidade. Do outro, alguém que precisa abrir mão de horários fixos de trabalho, feriados, de consumir álcool no encontro de amigos e estar presente nas festas de família. É um laço construído a partir das descobertas da gestação e que dificilmente é cortado de forma brusca, mesmo depois que termina o acompanhamento do puerpério. É um vínculo criado, no fim, com toda a família que envolve a criança que nasceu.

A presença da doula na vida da psicóloga Katarina Arcoverde, 32, não aconteceu por acaso. Foi ela que identificou em Nanda Barradas o dom de cuidar e sugeriu que a amiga fizesse o curso de doula. Nesse intervalo de tempo, Katarina engravidou de trigêmeos. Era a segunda gestação. “Existia um pouco de ansiedade pela perda anterior, então ela trabalhou essa questão de ficar tranquila. Também foi fundamental para me orientar sobre a gravidez múltipla, mesmo que eu soubesse que não poderia ter um parto normal. Precisava de alguém para me trazer conhecimento sobre a logística, sobre a vivência pós-parto”, lembra Katarina. Com pré-eclâmpsia, ela teve os filhos prematuros. Os bebês foram para a UTI. “A gente oscila muito de humor, de sensações, pensamento. E a doula me acolheu nas minhas ansiedades e medos.”

No caso da veterinária Marina Duarte, 33, a doula veio de um processo de busca de informações sobre o parto. “Comecei a fazer pilates e conheci minha doula lá. Por volta das 30 semanas, decidi ter o serviço. Escolhi ter uma doula pela preocupação que ela iria ter comigo, já que o bebê estaria em boas mãos com a equipe”, conta. Marina diz que o principal benefício de ter a doula foi o suporte psicológico. “Por mais que o marido esteja ali, ele também está parindo. A doula faz o momento ficar mais confortável. A sensação de que você vai dar conta é a doula que dá”, diz.

A fisioterapeuta Marina Lira, 31, foi a responsável por acompanhar Marina Duarte. “Uma das funções da doula é também dar suporte ao acompanhante”, pontua. Para o marido de Marina Duarte, o gerente de projeto Pedro Cavalcanti, 38, isso significou desmistificar o parto. “Desmistifica a experiência como algo intimidador, transforma em algo natural a se curtido. Estar tranquilo sobre cada etapa é superimportante para curtir toda a jornada” conta. Marina Lira defende a doulagem como um processo de dedicação e emoção. Mariana Bahia concorda. “É um trabalho desafiante, pois você lida com mulheres em diferentes contextos de vulnerabilidade. Você cresce aprendendo que a mulher é o sexo frágil, mas na verdade não. Virei uma mulher mais empática com as outras. A dor do parto me ensinou que só quem pode falar da própria dor é cada um.”

Hospital da Mulher do Recife lançará seleção para doulas voluntárias 

O acompanhamento de uma doula, no imaginário coletivo, está associado ao pagamento e suporte de uma equipe multidisciplinar de apoio ao parto humanizado. Uma doula custa, em média, R$ 800 a R$ 2 mil. Popularizar a prática e estendê-la às mulheres em situação de vulnerabilidade e baixa renda ainda é um desafio. Desde o começo deste ano, o Hospital da Mulher do Recife (HMR) começou um projeto-piloto que visa complementar a formação prática de doulas que realizam cursos no Recife. Cerca de 20 mulheres atuaram como voluntárias, até este mês, na unidade e estiveram presentes em 146 partos. O projeto irá se transformar em uma ação permanente. Na próxima semana, o hospital divulgará um edital de seleção para doulas voluntárias.

Desde a inauguração, há três anos, o HMR permitia a presença das doulas nos partos, desde que chegassem por demanda externa da gestante. “Tudo é uma construção. Como a gente não tinha condições de estruturar esse voluntariado, permitíamos que a mulher desse entrada com a doula, desde que certificada. Mas ficava a angústia de oferecer o serviço a mulheres que não podiam pagar”, explicou a diretora do hospital, Isabela Coutinho. O projeto-piloto surgiu depois que facilitadoras de cursos no Recife buscaram a unidade como campo de prática.

Serão selecionadas 14 doulas, e possivelmente haverá cadastro de reserva, para atuarem em regime de 12 horas de plantão. Para participar da seleção, será preciso ter mais de 18 anos, nível médio e curso para o ciclo gravítico puerperal (pré, parto e pós-parto). O trabalho inicial seria no centro de parto normal, com possibilidade futura de atuação também no pós-parto. A expectativa é que as doulas comecem a atuar no HMR no fim de junho. O edital será publicado no site da unidade, vinculado ao site do Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP).
Mariana Bahia trocou o direto pela doulagem, há cinco anos, e dá cursos de formação para novas doulas. Crédito: Bruna Costa/Esp. DP Foto

A presença das doulas durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais, maternidades, casas de parto e estabelecimentos similares da rede pública e privada de saúde é permitida por lei em Pernambuco. A lei estadual 15880/16 determina que as doulas podem estar presentes sempre que solicitadas pela gestante, sem ônus e vínculo empregatício com os estabelecimentos. Para tanto, as doulas precisam de uma carta de apresentação contendo dados pessoais e resumo dos cursos e capacitações realizadas, assim como de um termo de autorização assinado pela gestante.

De acordo com a legislação estadual, são considerados instrumentos da doula materiais como bola de exercício físico construído com material elástico macio e outras bolas de borracha; bolsa de água quente; óleos para massagens; banqueta auxiliar para parto; e equipamentos sonoros. Às doulas, é vedada a realização de qualquer procedimento médico ou clínico, como também procedimentos de enfermagem e enfermaria obstetrícia. Caso as unidades de saúde se recusem a deixar a profissional acompanhar a gestante, poderão estar sujeitos a multas que vão de R$ 1 mil a R$ 5 mil.

Na rede de saúde pública do Recife, também existe o programa Doula Voluntária. Funcionando em três maternidades municipais -  Bandeira Filho, Arnaldo Marques e Barros Lima –, ele prevê que as doulas auxiliem gestantes antes, durante e após o trabalho de parto de forma voluntária e em esquema de plantão. Atualmente, o município conta com 48 doulas que passaram por um curso de formação oferecido pela Secretaria de Saúde (Sesau). O programa existe desde 2004. As mulheres que dão entrada nos hospitais para terem bebê recebem o acompanhamento das doulas imediatamente para se prepararem física e emocionalmente para o parto. Até o momento da alta médica, as pacientes recebem visitas das doulas no alojamento e recebem orientações especialmente em relação à amamentação e cuidados com o bebê.

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