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Contato com a natureza e cuidados com a alimentação são essenciais na primeira infância

Publicado em: 24/05/2019 06:30 | Atualizado em: 27/05/2019 20:26

Daniele mudou a alimentação por causa da filha. Foto: Leandro de Santana/Esp.DP.
A técnica de enfermagem Daniele Lima, 37 anos, descobriu que estava grávida depois de uma década de tentativas, quando já havia desistido de ser mãe. A surpresa veio acompanhada de uma reorganização. Pensando desde cedo no futuro da filha, Manuelle, hoje com 5 meses, Daniele mudou a própria alimentação. Cortou frituras e industrializados. A mudança tem correlação com o histórico de hipertensão na família. Mesmo se não houvesse esse medo pregresso, ela faria o recomendado. O desenvolvimento de uma criança começa no momento da concepção e vai muito além da genética. Estudos científicos mostram que o ambiente e os acontecimentos com a mãe também podem atuar programando o corpo do bebê para se proteger ou não de doenças no futuro.

O cuidado com a saúde da criança deve começar logo que a gravidez é descoberta e se estender a uma mudança de hábitos de toda a família. Isso porque, ainda na fase de embrião, começam a ser formadas células nervosas que geram a estrutura básica do sistema nervoso do feto. É como se fossem formados alicerces para um prédio que será construído. Crianças submetidas a violências e negligências podem desenvolver um tipo de desregulação no sistema neuroendócrino conhecida como “estresse tóxico”.

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O estresse tóxico eleva a frequência cardíaca e a pressão arterial. Em consequência, há o risco aumentado para infecções, doenças cardíacas e psiquiátricas na criança. De acordo com um estudo realizado nos Estados Unidos, transtornos na infância podem elevar também índices de depressão, suicídio e abuso de drogas no futuro. “Há estudos sobre a origem fetal das doenças crônicas no adulto, mostrando que a forma de se alimentar na gestação, o cuidado ou falta de cuidado e a exposição a infecções podem programar o corpo da criança. Não é um determinismo total, mas ocorre uma influência”, explica o secretário de Saúde do Recife, Jailson Correia.

O impacto também pode ser gerado na autonomia para realizar as atividades futuras. “A programação biológica inclui o que chamamos de funções executivas (capacidade de organização, planejamento e replanejamento). Aspectos que, às vezes, a criança nem precisa tanto naquela idade, mas que vai assegurar um adulto autônomo”, ressalta a enfermeira, doutora em saúde pública e professora da Universidade de São Paulo (USP) Anna Maria Chiesa. Crianças que sofreram traumas na infância têm risco quatro vezes maior de contrair infecções sexualmente transmissíveis e até 16 vezes maior de ter obesidade mórbida, estimam estudos científicos realizados nos Estados Unidos.

Alimentação

A obesidade é atualmente, inclusive, um dos temas mais preocupantes quando se fala em saúde infantil. No Brasil, 15% das crianças estão com obesidade ou sobrepeso, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Em todo o mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) quantifica 41 milhões de crianças com menos de 5 anos acima do peso. Daniele se privou ao longo da gestação inteira de doces e refrigerantes. Quando a filha, Manuelle, nasceu, começou a amamentá-la. “Voltei a trabalhar e ficou muito difícil continuar a amamentar, então comecei a introduzir frutas e verduras. Mas minha preocupação continua, não vou dar para ela nem açúcar nem sal até pelo menos os dois anos”, diz, reproduzindo o que aprendeu com médicos e nutricionistas.

Desafios

O início precoce do atendimento em saúde, no pré-natal, se torna, nesse contexto, determinante para que as famílias adquiram a mesma consciência de Daniele. Em busca de atrair as mulheres grávidas cada vez mais cedo ao serviço de saúde, o Recife está universalizando o acesso ao teste rápido de gravidez na rede municipal. O desafio da cidade, ainda, fidelizar o acompanhamento, para que as famílias continuem frequentando a unidade de saúde e o cuidado permaneça durante toda a primeira infância. “Ainda há uma negligência com o acompanhamento da criança após o primeiro ano de vida. Isso se reflete, por exemplo, em baixas de cobertura vacinal. É um desafio da cidade criar estratégias para atrair essas famílias. Outro desafio é enfrentar as determinantes sociais no contexto de crise econômica”, afirma o secretário de Saúde do Recife.

Contato com a natureza é fundamental
Márcia Ribeiro, 35, faz questão de estimular o contato do filho, Teo Ribeiro, 3, com a natureza. Foto: Peu Ricardo/DP.

O tempo de brincadeiras ao ar livre diminuiu consideravelmente nas últimas décadas. As consequências do confinamento das crianças e a falta de contato delas com a natureza são perigosas. Tem repercussão na saúde, no desenvolvimento e na socialização delas. Insegurança, falta de áreas verdes, crescimento da urbanização e migração das populações para as grandes cidades são alguns fatores que ajudam a explicar o fenômeno e precisam ser enfrentados. Deixar as crianças em contato com a terra, folhas, água, pedras e flores desde a primeira infância pode trazer benefícios físicos, mentais e emocionais.

Diversas pesquisas relacionam o contato com a natureza a questões como autonomia, saúde, bem-estar e redução da obesidade infantil. “A gente vem acompanhando a questão da infância e percebe que de uns 20 anos para cá, existe uma tendência grande de a criança permanecer cada vez mais presos. Na verdade, todos estão mais presos, mas a criança sente mais. Na idade adulta, temos mais resiliência e somos mais capazes de lidar com a questão do emparedamento”, afirma a pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana, Maria Isabel de Barros.

O “emparedamento” da população, segundo a pesquisadora, está relacionado a aspectos como segurança, urbanismo e também porque as famílias, cada vez menores, estão vivendo também em espaços mais apertados. “Com isso, perdem-se oportunidades valiosas de brincar só ao ar livre, a céu aberto e em contato com a natureza”, pontua. O pesquisador e cofundador do movimento Children & Nature Network, Richard Louv, usa o termo “Transtorno do Déficit de Natureza” para se referir às consequências negativas que a falta do contato com o mundo externo pode causar na vida das crianças. “Nossa atração e necessidade por ambientes naturais e o contato com outras espécies são fundamentais para nossa saúde, nossa sobrevivência e nosso espírito. Essa conexão é parte da nossa humanidade”, enfatiza o norte-americano.

Mesmo vivendo em uma cidade altamente urbanizada como o Recife, a fisioterapeuta Márcia Ribeiro, 35, faz questão de estimular o contato do filho, Teo Ribeiro, 3, com a natureza. Ele tem transtorno do espectro autista e faz exercícios funcionais no Parque da Jaqueira. Quando começou a fazer as atividades, em julho do ano passado, tinha medo de colocar o pé no chão. Quase um ano depois, gosta de andar descalço na areia e pegar nas plantas. “Acho importante esse contato com o ar livre. Moramos em prédio, lá não tem tantas crianças e acho importante ele ter esse contato, até pela sociedade que o espera no futuro. No parque, percebo também que ele aprende sobre limites, até onde pode ir, onde é perigoso”, conta a mãe.

5 formas de o poder público ajudar na interação das crianças com a natureza

Escutando as crianças
As crianças, desde as mais novas idades, são capazes de contribuir com ideias que podem surpreender os pais, professores e gestores públicos pela simplicidade e efetividade.

Incentivando o uso de áreas públicas
As pessoas tendem a se sentir inseguras em parques e praças vazios. Por isso, pensar políticas públicas para ocupar esses espaços é tão importante quanto criá-los. 

Interligando a cidade
A oferta de transporte público de qualidade que conecte as diversas partes do município e permita o acesso das pessoas que moram distantes a áreas naturais é fundamental.

Promovendo a inclusão de áreas verdes em obras novas
O poder de dar o aval à execução de obras pode se transformar em prerrogativa para garantir que novas construções tenham sempre uma porcentagem mínima de área verde.

Arborizando os bairros
Nem todos os bairros têm espaços para abrigar parques e praças com grandes áreas verdes. Nesses casos, a arborização é uma forma de democratizar o acesso à natureza, especialmente na periferia.

Fontes: Secretaria Executiva da Rede Nacional Primeira Infância; Rede Nacional Primeira Infância; Saúde Brasil - Ministério da Saúde
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