Investir no bem-estar da criança, na primeira infância, é "janela de oportunidades" para seu futuro

Entrevista Mariana luz / CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal

Publicado em: 12/04/2019 18:54

Colocar a primeira infância no patamar de prioridade absoluta não apenas das famílias, como também dos governos e da sociedade como um todo é fundamental para garantir às crianças um desenvolvimento saudável no desenvolvimento de suas potencialidades. Dentro desse contexto, atua a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que tem como principal prioridade o aprimoramento de políticas públicas voltadas à primeira infância. Nesta entrevista ao Diario de Pernambuco, a CEO da entidade, Mariana Luz, explica por que é tão fundamental dedicar tempo e dinheiro para investir nesta fase da criança. Confira!

Diario de Pernambuco - Por qual motivo a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal elegeu a primeira infância como causa? 
Mariana Luz - Vou responder a sua pergunta usando uma frase do documentário O Começo da Vida que gosto muito e acho que sintetiza a importância da primeira infância na vida de uma pessoa: “Se mudarmos o começo da história, mudamos a história toda”*. Há décadas, a ciência vem mostrando que, se melhorarmos as condições de vida das crianças mais vulneráveis agora, garantindo a elas saúde, afeto, nutrição, segurança e educação de qualidade, aumentamos muito as possibilidades de que tenham um futuro melhor. E quanto antes essas intervenções acontecerem, mais chances dessas crianças alcançarem seu máximo potencial. Além de estar comprovado que há um retorno a longo prazo do investimento na primeira infância, é um dever constitucional do Estado, mas também de toda a sociedade, garantir o bem-estar das crianças pequenas e de suas famílias. 
*Raffi Cavoukian, fundador do Centre for Child Honouring

DP - No intervalo entre o nascimento e os três anos de idade ocorrem à formação e o amadurecimento das conexões entre neurônios. Como a interação com familiares pode favorecer o neurodesenvolvimento?
ML - Nos primeiros anos de vida, o relacionamento e as interações com os adultos são a base para o desenvolvimento das crianças. Hoje, já sabemos que é por meio de um jogo de ação e reação que novas conexões são formadas no cérebro dos bebês. A simples resposta de um adulto a um gesto ou expressão facial do bebê é suficiente para gerar ações importantes no cérebro em desenvolvimento. Por isso, defendemos políticas que priorizem às famílias, fortaleçam os ambientes e possibilitem a construção de relações positivas com as crianças. Nesse tipo de prática, os adultos responsáveis pela criança são estimulados a brincar, a cantar, a conversar com os bebês. Essas interações ajudam a criar vínculos e, consequentemente, estimula o desenvolvimento. Vale ressaltar que experiências de vínculos afetivos frágeis na infância e situações de maus tratos podem resultar em estresse nocivo para a criança e comprometer a sua saúde, incluindo sua integridade física, seu desempenho acadêmico e competências socioemocionais no decorrer da sua vida. 

DP - Podemos falar que a primeira infância é a Base de sustentação para uma vida inteira e por quê?
ML - Sim, mas devemos evitar um discurso determinista. Ou seja, qualquer indivíduo que tenha recebido uma maior atenção na primeira infância terá maiores chances de desenvolver bases sólidas para o futuro. No entanto, sempre é tempo para investir no ser humano. Nosso cérebro é plástico o suficiente para possibilitar o aprendizado até o fim da vida. O que as evidências científicas apontam é que o ritmo de apreensão de conteúdos diminui ao longo de tempo. Diversos estudos sobre neurociência mostram que a evolução do cérebro no início da vida acontece a uma velocidade incrível e é muito sensível aos cuidados e estímulos ambientais. É nessa fase que se formam as bases de aprendizado que serão utilizadas ao longo de toda a vida. Costumamos, inclusive, chamar esse período de “janela de oportunidades”, porque nele a aprendizagem de habilidades e o desenvolvimento de aptidões e competências acontecem com maior facilidade.

DP - Como tem sido a aceitação das novas políticas públicas referentes à primeira infância pelos Estados do Brasil?
ML - Os gestores públicos estão mais conscientes sobre a importância do investimento na primeira infância. Diversos estados e municípios possuem iniciativas voltadas ao bem-estar da criança na primeira infância e de suas famílias. Um destaque recente foi o pacto firmado mês passado em Brasília, durante o Seminário Internacional da Primeira Infância, pela continuidade e o avanço do Programa Criança Feliz. Assinaram o documento representantes de 24 estados e o Distrito Federal. Ao aderir ao pacto, os governadores assumiram o compromisso de expandir e qualificar a iniciativa.  

DP - Quais são atualmente as principais políticas voltadas para a primeira infância?
ML - Ainda temos um longo caminho pela frente, sobretudo, no que diz respeito à intersetorialidade dessas políticas. A educação infantil, apesar de ser uma política pública robusta, precisa avançar com relação à qualidade.  Ao mesmo tempo, estamos vendo uma série de evidências científicas internacionais comprovando a efetividade de programas de apoio às famílias com o objetivo de promover o desenvolvimento infantil. Seja por meio de meio de visitas domiciliares, reuniões de grupos ou ainda por outras modalidades, acreditamos que investir nessas políticas, especialmente com crianças em situação de vulnerabilidade, atende aos direitos de cada cidadão e pode transformar positivamente a sociedade. Em diferentes regiões do País, Assistência Social e Saúde têm atuado nessa perspectiva. Em âmbito federal, o Programa Criança Feliz compõe a lista, prevendo a atenção às famílias e crianças com foco na criação de vínculo por meio de visitas domiciliares. O Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), do Ministério da Cidadania, acaba de reformular suas orientações técnicas para também atender crianças até os 6 anos, com objetivos semelhantes, por meio do encontro de grupos de famílias vulneráveis nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).Tanto em âmbito estadual quanto municipal, existem também iniciativas inspiradoras nesse sentido. Em Boa Vista, por exemplo, o programa Família que Acolhe adotou modelo de intervenção baseado em evidências para fortalecer o atendimento nos grupos de família na região. Além disso, as visitas domiciliares tiveram início, também dentro do mesmo modelo, em parceria com o Criança Feliz.

DP - A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal atua a favor do desenvolvimento integral da criança, o que a sociedade tem a ganhar com isso? 
ML - Acreditamos que investir na primeira infância seja o melhor caminho para diminuirmos as desigualdades sociais e interrompermos o ciclo de pobreza das famílias brasileiras. Isso é bom para a criança hoje, para a família dela e para toda a sociedade no futuro. Crianças que recebem estímulos apropriados durante a primeira fase da vida têm um desenvolvimento emocional e cognitivo mais saudável, que se reflete nas realizações na fase adulta. Segundo o economista americano James Heckman, prêmio Nobel de Economia de 2000, cada dólar investido nessa fase da vida traz até sete dólares de retorno da sociedade. 

DP - Um dos maiores avanços da neurociência é ter descoberto que os bebês são muito mais do que uma carga genética. O desenvolvimento de todos os seres humanos encontra-se na combinação da genética com a qualidade das relações que desenvolvemos e do ambiente em que estamos inseridos. O documentário O Começo da Vida é um grande sucesso, como essa tese induz de mudança na preocupação e abordagem nos cuidados com a primeira infância? 
ML - Crescer em um ambiente acolhedor, harmonioso e rico em relacionamentos positivos é fundamental para o bem-estar da criança hoje e para que ela tenha um futuro com mais possibilidades. Esse tipo de experiências é capaz de mitigar o efeito negativo de crescer na vulnerabilidade, ou seja, em meio à violência, pobreza, abuso ou negligência. A existência de evidências científicas como as citadas acima é fundamental para conscientizar a população da importância dessa fase da vida e, inclusive, pode ajudar os gestores públicos a justificarem o investimento na primeira infância. Uma das estratégias possíveis é a de levar mais informação para os pais e adultos próximos à criança, por meio de programas e serviços que valorizem o estímulo, a interação e o vínculo.Outra estratégia para garantir que as crianças tenham boas experiências no começo da vida e isso se reflita em um futuro melhor, é a priorização do investimento em educação infantil de qualidade. Sabemos que o acesso a uma educação infantil de qualidade, com bons profissionais, ambientes e materiais apropriados, propicia experiências positivas para a construção de uma base sólida, que preparará a criança para a aprendizagem ao longo da vida.

DP - Quais têm sido as principais dificuldades em colocar na pratica as novas habilidades e competências da Base Nacional do Currículo Comum (BNCC) no que diz respeito à primeira infância nas creches?
ML - A Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil representa uma base estruturada, com diretrizes concretas sobre quais experiências são importantes para o desenvolvimento da criança. Isso ajuda a garantir a qualidade do serviço.  Entretanto, sabemos que a implementação da base em um país com a extensão e as complexidades do Brasil é um processo longo e que exige envolvimento de todos: governo federal, secretarias de educação, universidades, escolas e toda a comunidade, incluindo os próprios alunos. Um ponto importante é que alguns dos conceitos que estão da BNCCEI, como a centralidade da criança no processo e a importância do brincar com intencionalidade pedagógica, apesar de já estarem presentes em documentos nacionais anteriores, não são fáceis de serem colocados em prática. Isso se deve ao fato de que nem sempre o profissional que atua na educação infantil teve uma formação que contemple as especificidades dessa fase. Daí a importância do envolvimento, da capacitação continuada e do monitoramento para se garantir a implementação da base.

DP - As mulheres estão cada vez mais no mercado de trabalho, e seus filhos estão sendo terceirizados para babás, avós e escolas, principalmente na primeira infância. Quais os impactos na vida da criança quando esses profissionais não estão bem preparados?
ML - As experiências vividas na primeira infância, sejam positivas ou negativas, serão levadas para a vida toda. Portanto, as crianças não podem ficar em qualquer lugar, com qualquer profissional. Uma das prioridades da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal é aprimorar a política de creches e pré-escolas no Brasil. O acesso a uma educação infantil de qualidade, com bons profissionais, ambientes e materiais apropriados, é fundamental para a construção de uma base sólida, que preparará a criança para a aprendizagem ao longo da vida. Não há dúvidas de que acesso à creche é um fator importante na inserção e permanência da mulher no mercado de trabalho. Mas esses locais precisam ser vistos pelas famílias e pelos governos fundamentalmente como um ambiente de aprendizado que propicia o desenvolvimento infantil. 

DP - É preciso avançar ainda mais na multidisciplinaridade de iniciativas governamentais, como podemos unir forças?
ML - Uma das principais características do Marco Legal da Primeira Infância, aprovado em 2016, é seu caráter intersetorial. Ele cria diretrizes para a formulação e implementação de políticas públicas especificamente voltadas à primeira infância, estimulando a articulação dos diferentes setores e esferas dos governos para que tenham uma ação conjunta. Não é fácil conseguir tal articulação num país como o Brasil, mas precisamos seguir priorizando a integração entre os diferentes atores e ter sempre o Marco Legal como fio condutor das nossas ações para que as políticas públicas para a primeira infância sejam pautadas por uma visão abrangente de todos os direitos da criança. Por fim, há um papel a ser cumprido também pelos setores social e privado. É a união de todas essas forças que colocará a primeira infância no patamar de prioridade absoluta em âmbito nacional.

Sobre a entrevistada
Mariana Luz tem mais de 15 anos de experiência profissional, atuando nas áreas de desenvolvimento social, relações governamentais, sustentabilidade, comunicação corporativa, política comercial e formulação de políticas públicas. Em 2015, foi nomeada Young Global Líder, pelo Fórum Econômico Mundial; em 2014 foi nomeada Young Leader dos Programas Internacionais dos Estados Unidos e da Itália; e em 2011 fez parte do Programa de Liderança de Visitantes Internacionais, promovido pelo Departamento de Estado dos EUA. Na última década, tem atuado em diversos conselhos sem fins lucrativos e atualmente integra os conselhos da Junior Achievement de São Paulo; United Way Brasil; e do Centro de Excelência e Inovação em Política (CEIPE), da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Iniciou sua carreira no Centro Brasileiro de Relações Internacionais, o principal think tank de política externa no Brasil, onde atuou como Diretora Institucional entre os anos de 2003 e 2011. Posteriormente, atuou como diretora de sustentabilidade e relações institucionais da Embraer, diretora superintendente do Instituto Embraer e presidente da Fundação Embraer nos EUA. Em paralelo, manteve carreira acadêmica e foi professora de Relações Internacionais da graduação e pós-graduação de universidades como FAAP, Cândido Mendes e Universidade da Cidade. É formada em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá, com pós-graduação e mestrado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), além de ter especializações nas universidades de Oxford e Harvard Kennedy School of Government.

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