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Carnaval

As matriarcas da alegria no Recife

À frente de agremiações centenárias, Sevy, Marivalda e Iaci dão continuidade à herança de Badia e Dona Santa

Publicado em: 23/02/2019 13:49

Vinda do Agreste, Sevy aprendeu os segredos do carnaval no bairro de São José. Foto: Bruna Costa / Esp. DP
Infância

Maria de Lourdes Silva, Badia, a grande dama do carnaval, e Maria Júlia do Nascimento, Dona Santa, a rainha do Maracatu Elefante. Na história da folia recifense, cada uma ao seu modo exerceu papéis de incentivadoras e de liderança. Características que ditam a história de outras mulheres – damas ou matriarcas ou as duas coisas juntas, dependendo do ângulo que escolhermos – ligadas ao carnaval da cidade. É assim com Marivalda Maria dos Santos, 65 anos, a rainha do Maracatu Estrela Brilhante do Recife, de 1906. Para ser rainha tem que ser mulher, define. Para ser liderança, completa, tem que se viver. A experiência é um dos alimentos desta rainha, também presidente da agremiação carnavalesca, e de Sevy Caminha, 82, e Iaci Silva, 47. Iaci vive à frente do caboclinho Tribo Canindé do Recife, de 1897. O comando da tribo fluiu naturalmente, com as mortes da madrinha, Lucila Simões, e da filha da madrinha, Juraci Simões, ambas presidentes da grupo. “Não escolhi onde estou hoje. Fui escolhida”, sentencia. A certeza, desconfia Iaci, é uma construção. Sevy, fundadora do Bloco Pierrot de São José, de 1978, e presidente de honra da Troça Verdureiras de São José, de 1884, tem certeza. Esta senhora da Rua dos Ramos construiu sua história agarrando-se às oportunidades. Aprendeu a costurar e “a imaginar” as fantasias cedo, ainda na infância. Aprofundou-se no ofício. Costurou para tantos blocos que perdeu a conta. Repassou o conhecimento para os filhos, os netos, os bisnetos e as sobrinhas. Aos filhos coube à “missão” de prosseguir colocando o carnaval na rua.

Marivalda recebeu a coroa do Estrela Brilhante nos anos 1990. Foto: Bruna Costa / Esp. DP
Mais do que líder, ela é uma rainha

Marivalda recebeu a coroa do Estrela Brilhante nos anos 1990 Do meio da escadaria da Rua Tuina, na Mangabeira, podia se avistar no topo a figura da mulher de lenço branco e mãos carregadas de sacolas. Corpo ereto. Olhar altivo. Sim, era Marivalda Maria dos Santos, 65, presidente e rainha do Maracatu Estrela Brilhante do Recife: “Mãe de três filhos, dona de casa, mãe de santo, mas, acima de tudo, mulher”. A definição de quem era ela estava completa. Marivalda entra na casa 15, sua residência e ao mesmo tempo sede do Estrela Brilhante. No imóvel, um entra e sai de gente. Quase 20 pessoas finalizando fantasias e adereços para o desfile de carnaval ou acompanhando de perto, uma vez que a maioria era integrante da agremiação, o trabalho aparentemente sem fim para se colocar o maracatu na rua. “São muitos os filhos do Estrela Brilhante”, frisou ela.

A relação de Marivalda com a agremiação vem dos anos 1990. Depois de ter participado da Escola de Samba Gigante do Samba e do Maracatu Leão Coroado foi convocada por um carnavalesco para resgatar o Estrela Brilhante. “Eu, pobre de Jó, não sabia como fazer. Mas decidi tentar”, relembra. Tentou e deu certo. O ano era 1993 e Marivalda já começou coroada no maracatu. Tornou-se rainha. Ter uma coroa sobre a cabeça, segundo Marivalda, era algo impensado para ela antes da passagem pelo Leão Coroado. No entanto, do ponto de vista religioso, a então mãe de santo tinha a convicção de ter nascido espiritualmente coroada. “Sou filha de Xangô”, o orixá da justiça, dos raios, dos trovões e do fogo. A simbologia de ser rainha coincide com a compreensão de Marivalda sobre o papel da soberana negra no maracatu. “Quem tem que tomar conta do maracatu é a mulher, pois a rainha é quem manda”, explica. Basta ver os desfiles dos maracatus de baque virado. A figura central do cortejo é a soberana, símbolo do poder. Com tal consciência, a rainha prevê vida longa para a agremiação. “O Estrela só vai acabar quando o carnaval de Pernambuco acabar”, afirma. Que se cumpra.

Comandar o Canindé do Recife se tornou missão para Iaci. Foto: Bruna Costa / Esp. DP
Uma caboclinha que se tornou presidente

Comandar o Canindé do Recife se tornou missão para Iaci A ligação de Iaci Silva, 47, com a Tribo Canindé do Recife está além da fisionomia. De traços indígenas, a presidente do caboclinho da Bomba do Hemetério se uniu à agremiação ainda menina. Chegou ao grupo pelas mãos da madrinha, Lucila Simões. A ela foram ensinados os passos, o cuidado com as fantasias e, acima de tudo, a noção de que se encontrava em uma família. A família Canindé. A princípio, enquanto Lucila guiava a tribo, Iaci dividia o tempo em dançar, auxiliar na cozinha e servir lanches nos ensaios e apresentações. Entre um e outro afazer, o olhar atento e a sentença, repetida frequentemente pela madrinha, de que no futuro a Iaci caberia o comando da agremiação. Lucila morreu e Juraci, sua filha, herdou o comando. Ao adoecer, Juraci dividiu as tarefas com Iaci, a qual foi atribuída a função de levar o grupo aos locais de apresentação.

O destino de presidente nunca pareceu estranho para Iaci, mas ela esperava que viesse mais tarde. Veio em 2016, com a morte de Juraci. E titubear frente ao desafio poderia ser a derrocada de uma agremiação centenária. Iaci agarrou- -se “ao destino”. Faz isso “mais ouvindo do que decidindo sozinha” e “antenada” ao que acontece no caboclinho. “Cuido de cada um como se fosse um filho”, revela.

Filhos biológicos, Iaci não teve. Mas a prole carnavalesca é grande. São mais de 20 garotos e garotas da cepa dos Simões e da vizinhança dos Simões, cuja moradia principal, também sede do caboclinho, fica na Rua Bomba do Hemetério. “O menino que levo de sua casa, de ônibus, é o menino que tenho a responsabilidade de entregar aos pais quando voltamos dos desfiles”, assegura. Do que fala, Iaci conhece bem.Dançou por mais de 30 anos em ruas e palcos do Recife. Os pés ficaram feridos. Calejaram. “Parei quando me senti coroa”, justifica. Quanto à presidência, ela não cogita aposentadoria. Entende que há muito a servir, graças à experiência e à missão que lhe foi atribuída, ao grupo que adotou como filho. Afinal, coloca, o destino cabe a Deus.

O poder que vem da linha e da agulha

Dos cômodos da casa 60 da Rua dos Ramos, em São José, somente o quarto de Sevy Caminha, 82, não está ocupado por tecidos, alegorias, fantasias e adereços. O restante, mais de uma dezena, abriga peças antigas, novas ou a serem finalizadas. Respira-se carnaval. “O carnaval é tudo na minha vida”, afirma Sevy, iniciada na arte de usar agulhas e linhas por voltas dos 7 anos de idade. Fez as primeiras alinhavadas em casa, com a mãe Joana, agricultora vinda do Agreste pernambucano para o bairro de São José. A menina se habitou a espiar as artes carnavalescas no Pátio de São Pedro. Ali encontrou Augusto Bandeira, fundador do Batutas de São Jose, e Arlinda Cruz, do Clube Vassourinhas. Apaixonou- -se ao ver tanta entrega dos dois às coisas da folia. E seguiu rota semelhante. Costurava ao tempo em que se preocupava em ter perto de si a família e os vizinhos. “Carnaval não é coisa de quatro dias. É coisa do ano inteiro”, resume Sevy. Mãe de cinco filhos, apaixonados pelo carnaval, ela sempre defendeu que nos desfiles é preciso “fazer bonito” para impressionar quem acompanha os desfiles, na passarela oficial ou nas ruas. Em síntese, buscar a perfeição dos passos e dos gestos. Sevy fez escola em casa. Ao tempo em que criou e costurou para mais de uma dezena de agremiações, a matriarca ensinou a prole como fazer o carnaval. “Tudo que sabemos e gostamos do carnaval vem da minha mãe”, diz Goretti Caminha, 59, a primogênita, que divide a paixão, a costura e o convívio diário com os integrantes das agremiações carnavalescas com os irmãos Graciette, 55, Graciene, 54, Glória, 52, e Andrey, 41. Isso porque, ratificando a mãe, carnaval é feito a muitas mãos.
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