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Uma nova voz para Abby

Única guarda municipal trans em Pernambuco, ela também é a primeira mulher trans a se submeter à cirurgia de feminização da voz no Norte e Nordeste

Publicado em: 16/09/2018 10:39 | Atualizado em: 17/09/2018 10:56

Foto: Gabriel Melo/Esp. DP

O silêncio durou exatamente 15 dias. Conforme recomendação médica, Abby Silva Moreira, 40 anos, precisava manter-se em repouso vocal absoluto. Na última semana, a paciente foi autorizada pela equipe do Hospital das Clínicas (HC) a voltar a falar. De início, pouco e baixinho. Quase chorou de emoção ao escutar sua nova voz.

Abby é guarda municipal de Jaboatão dos Guararapes, a única mulher trans integrante da corporação em Pernambuco. Agora, ela ostenta outro título inédito. É a primeira mulher trans a passar pela cirurgia de feminização da voz no Norte e Nordeste, também chamada glotoplastia. “Sentir o que eu senti é algo mágico. Estou nascendo novamente”, comemora.

Um dia após ser liberada de seu silêncio, Abby teve outras surpresas. “Ninguém me tratou mais pelo masculino por causa da voz. Era automático. Começavam pelo feminino o tratamento comigo por conta de minha aparência. Quando eu falava, a leitura mudava para o masculino. Isso acabou. É maravilhoso.”

A voz é um dos principais fatores para a percepção de gênero. Não ter uma voz compatível é sinônimo de sofrimento para as pessoas trans. O médico otorrinolaringologista Bruno Moraes, do HC, explica que a corda vocal masculina é mais volumosa e vibra numa frequência média de 110 Hz, o que representa uma voz grave. Já a corda vocal feminina é mais delgada e vibra em uma frequência média de 200 Hz, ocasionando uma voz mais aguda.

“A fonoterapia é a primeira estratégia no processo de feminização vocal. No entanto, nem toda mulher transgênero alcança resultado vocal satisfatório. Por isso, a fonocirurgia apresenta-se como opção terapêutica. Uma das técnicas cirúrgicas mais eficazes para feminização da voz é a glotoplastia, cujo princípio da cirurgia é a diminuição da área vibratória das pregas vocais”, explica o médico. Segundo Moraes, o resultado é um aumento de aproximadamente nove semitons na frequência fundamental, com valor pós-operatório a longo prazo em torno de 200Hz.

A recuperação de Abby deve durar em torno de seis meses. Nos primeiros quinze dias, ela não podia comer alimentos quentes e ingeriu muitos remédios. Mas, segundo os médicos, a resposta dela à cirurgia está boa. No Brasil, essa cirurgia somente foi feita em São Paulo, em instituição de ensino credenciada pelo governo federal, através da política de saúde para pessoas transgêneros. A intervenção dura menos de duas horas.

Entenda 
A frequência de emissão da voz é um dos principais fatores para percepção do gênero
A prega vocal (ou corda vocal) masculina é mais volumosa. traduzindo-se numa voz grave
A prega vocal feminina é mais delgada, promovendo uma voz mais aguda
Fonoterapia é a primeira estratégia no processo de feminização vocal.

Uma das técnicas cirúrgicas mais eficazes para feminização da voz é a glotoplastia. O princípio da cirurgia é a diminuição da área vibratória das pregas vocais:

1º passo: retirada da camada superficial das pregas vocais
2º passo: fixação de fios nas pregas vocais
3º passo: aproximação do terço anterior das pregas vocais

O resultado é um aumento de aproximadamente nove semitons na frequência fundamental, com valor pós-operatório a longo prazo em torno de 200Hz

Fonte: Bruno Moraes – médico otorrinolaringologista

Lista de espera pela cirurgia tem 25 nomes
O Espaço Trans do Hospital das Clínicas tem uma lista de espera com 25 mulheres trans para serem submetidas à cirurgia. Elas já passaram pela fonoterapia e não alcançaram resultados esperados. Para participar da intervenção médica, é preciso ter acompanhamento multidisciplinar no Espaço Trans ao longo de dois anos.

A cirurgia de Abby integra o trabalho de conclusão da residência médica de Mateus Aires. Bruno Moraes é orientador da pesquisa. Segundo a equipe, o modelo de tratamento já existe, mas é preciso trazer à luz da ciência como é possível melhorar a vida das pessoas trans, traduzir o assunto em dados científicos e avaliar a viabilidade de manter esse tipo de tratamento. “Pela literatura internacional os resultados são bons, mas precisamos ter nossa casuística”, explica Moraes. Enquanto a glotoplastia torna a voz mais aguda, a tireoplastia torna a voz mais grave. No Espaço Trans, a maior clientela é de mulheres transgêneros.

Mateus disse em um ano e meio espera operar todas as pessoas da lista. A expectativa é chegar a duas pacientes por mês. “Cientificamente, espero que as pacientes tenham resultado de adequação da voz ao gênero a partir da agudização da voz. A voz é o cartão de visita das pessoas. É muito estigmatizante ter voz masculina sem estar adequada ao gênero. Socialmente, o benefício é maior. Existe muito preconceito no meio médico com a população LGBT. Aproveitei a residência no HC para levantar essa bandeira. A gente tem essa função social de dar visibilidade à população trans e cientificar essa população, que é excluída e sofre marginalização. Não é engraçado falar disso. É científico”, pontua.

Três perguntas - Abby Moreira 

Como foi seu processo de identificação como mulher trans?
Eu nunca fui homem. Apesar do meu sexo biológico ser masculino, nunca me vi ou me aceitei dessa forma. Comecei a identificar meu gênero em contrário com minha condição biológica aos 4 anos. Tinha uma irmã, já falecida. Eu pegava suas roupas e usava. Como minha irmã tinha um tumor no cérebro, todas as atenções eram para ela. Ninguém dava muita importância a um menininho usando calcinha ou vestido. Minha família, se um dia notou, pensou ser coisa de criança. Não passava pela cabeça de ninguém que eu era uma criança transgênero. 

Conta um pouco de seu trabalho.
A questão do emprego era e é uma realidade cruel para as mulheres trans. Somos rotuladas, violentadas psicologicamente, ridicularizadas. Na Guarda não seria diferente. Mas o preconceito que enfrentei foi velado, silencioso. 

Como foi o processo cirúrgico?
Passar pelo sofrimento de várias cirurgias é uma necessidade  além da estética. É saúde. É uma forma de readequarmos nosso corpo à nossa mente. Sempre faço uma analogia. Imagine você mulher, satisfeita com sua condição e seu corpo. Agora imagina se alguém te obrigasse a retirar os seios, trocar sua genitália e a viver com um corpo e aparência completamente oposta daquilo que se via e onde você se sentia realizada.É isso que sentimos desde que nascemos. A minha voz era algo que me incomodava tanto quanto meu corpo.

Qual expectativa com a nova voz?
Sonho ser quem eu sou. Me tocar. Me ouvir. Ninguém merece sofrer tanto. Sou punida sem cometer crime. Quero apenas ser feliz.

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