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Livreiro da Sete de Setembro, Tarcísio é a história oral de um bairro

Dono da icônica Livro 7 tornou-se memória viva do bairro da Boa Vista

Publicado em: 26/06/2018 09:54 | Atualizado em: 26/06/2018 11:35

Tarcísio Pereira, com sua boina plana azul, acessório que virou marca dele. Foto: Peu Ricardo/DP

Como um ritual, de segunda a sábado, às 6h30, Tarcísio paramenta-se com  um conjunto de jeans e tecido de algodão mesclinha e a boina plana que virou a marca pessoal dele. “É igual a sair de casa sem documentos. Nunca deixo de estar com ela”. Depois do almoço, dá um cochilo de 20 minutos; e que ninguém ouse acordá-lo.

Desperta sem ajuda do relógio. Só desfaz a vestimenta no meio da noite, após assistir ao Jornal Nacional. A boina plana só perde lugar para o chapéu Panamá, no domingo, dia de visita ao sítio. Tarcísio acumulou toques - e se diverte com as manias adquiridas. Desde 1975, além da tal boina que aderiu ao ganhar um exemplar como brinde quando comprou um elegante blazer verde, só usa roupas da cor azul e camisa com dois bolsos frontais (“Quando tem somente um, fico com a mão procurando a aba do outro”). Ao estilo diretor de cinema, à Glauber Rocha.

Em casa, o lugar preferido de Tarcísio Pereira, o livreiro, é o pequeno gabinete como uma ilha e um mar de livros, onde uma rede transpassa as paredes na altura ideal para a leitura. Está agora com os olhos sobre A Palavra escrita, de Wilson Martins (Ed. Atica, 1996). Como leitor, títulos com temática de livros e troca de cartas entre autores é o que lhe dá prazer.

Mora na Torre, mas - para usar a precisão - vive simbolicamente na Boa Vista. A figura dele representou e figura ainda hoje no imaginário de muitos recifenses. Ninguém é mais lembrado como ele na Boa Vista. É como a alma que dá vida a um bairro bucólico e cheio de histórias, situado “entre a Avenida Agamenon Magalhães e a Rua da Aurora”, assim como delimita ele.

Tarcísio tem todas as raízes na Boa Vista. Faz questão de dizer que estudou no Ginásio Pernambucano. Já homem feito, casado, almoçava com os pais residentes do 21º andar de um edifício na Rua Sete de Setembro. “O bairro sempre foi muito simpático comigo. Eu gostava de andar pela Praça Maciel Pinheiro, encontrar vários autores sentados nos bancos, de saber que Osman Lins, meu ex-sogro, vinha a Recife e ia tomar sorvete de frutas regionais na Fri-Sabor”.

Tarcísio cursou Jornalismo, na Universidade Católica de Pernambuco, mas era avesso à cadeira de Estatística, de tal modo que desistiu da graduação em função dela. Tentou terminar História. Em um debate em sala de aula, forçou uma opinião sobre a Revolução Francesa. Amigo próximo do professor, ficou tão constrangido com a situação que abandonou pela segunda vez uma faculdade. “Entre perder o diploma ou o amigo, preferi o diploma”.

Tarcísio adora contar que trabalhou na Livraria Imperatriz, na década de 60, localizada na Boa Vista. “Foi onde tudo começou”. Com Jacob Berenstein, um judeu ucraniano dono do estabelecimento, formou-se na prática e entendeu o mais importante do negócio que o tornou famoso não só em Recife, como no exterior. “Ele me ensinou saber vender o livro e amar o livro.

Você não pode vender como uma mercadoria. Você está vendendo aquilo que você gosta, então isso não tem valor financeiro. Eu dizia para os vendedores que a maior dica para vender o livro certo era levá-lo para a mão certa. Nem sempre o cliente comprava o que estava procurando. Eu dizia ao vendedor: ‘Ajude o cliente, mas deixe ele procurar na prateleira, assim ele verá outros livros de assuntos parecidos’”.

Tarcísio Pereira foi o proprietário da icônica Livro 7, o “Maracanã do livro”, conforme disse o escritor Fernando Sabino. Inaugurada na Rua Sete de Setembro em 1970, chegou a ocupar 1.200 metros quadrados, ter 60 mil livros e ganhou entre 1970 e 1980 por cinco anos seguidos o título de maior livraria do Brasil, segundo o Guiness Book, registrado em arquivo da Fundação Joaquim Nabuco. “Era um momento diferente”, frisa, lembrando em específico da grande atuação do teatro local. A Livro 7 foi o maior ponto de encontro de intelectuais de várias gerações de pernambucanas. Lugar que suscita suspiros e saudades até hoje, inclusive a dele.
 
“Ah, saudade? Tenho, claro. A Livro 7 não era uma empresa, era uma instituição. Ficamos 30 anos brigando para ficar no mercado, trazendo gente de fora e eu acho que valeu muito pelos momentos felizes que passei ali”, diz o hoje presidente do Conselho Editorial da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e proprietário de sua própria editora, que leva o seu respeitado nome. 

A Livro 7 passou a ser história. É tema de monografias de estudantes, motivo de palestras como caso de sucesso, memória afetiva de um coletivo. Abria das 7h às 22h, “junto com a primeira aula de toda faculdade, até a última aula”.

Teve 150 funcionários, promovia duas noites de autógrafos por semana, trazia ícones da literatura do país e até internacional. Por lá, passaram Ariano Suassuna, Ulisses Guimarães, Osman Lins, Gilberto Freyre, Ferreira Gullar, Dias Gomes... Ousava: certa vez, convenceu o agente do escritor e roteirista norte-americano Sidney Sheldon a vir com ele para o Recife.

Precisou fretar um jatinho para atender à exigência da celebridade, temeroso à ocasião com o noticiário que estampava notícias sobre a violência no Recife.  “Vendemos 940 livros só no lançamento. Foi um marco para a gente”. Tarcísio tem fotos da época - vestia o mesmo padrão que veste hoje. O que muda na imagem é o tom dos cabelos, agora branco.

A Boa Vista não é só passado para Tarcísio. Quem passa pela Rua Sete de Setembro aponta para o local onde era instalada a Livro 7 até final da década de 1990, quando fechou. Há 42 anos, Tarcísio Pereira reencontra-se com o bairro da Boa Vista, amigos e frequentadores da livraria. A saída do Bloco Carnavalesco Nóis Sofre mas nóis goza, fundado em 1976 e que ele “bota na rua” todos os anos, é a prova que Tarcísio é presente. 

O compêndio de ontem e hoje renderá um livro. Tarcísio Pereira, o livreiro, tem juntado fragmentos do que viu e ouviu na Livro 7, na Rua Sete de Setembro, Boa Vista.
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