Violência

Assédio virtual: uma covardia sem fim

Vítimas sofrem com efeitos duradouros da exposição criminosa na internet

Publicado em: 23/06/2018 10:50 | Atualizado em: 23/06/2018 11:29

Brasileiro se revolta mais com a exposição de uma mulher estrangeira do que com os assédios sofridos pelas compatriotas. Foto: Marlon Diego / Esp. DP
Os ponteiros do relógio passavam das 4h30, marcando o avançar das horas e do cansaço de Maria Eduarda Melo. Deitada sobre os livros, ao mesmo tempo em que tentava se concentrar nas páginas de contabilidade introdutória, ela conversava com outros 59 colegas de classe em um grupo de WhatsApp. O telefone servia tanto para despertar quanto para dividir a angústia pré-prova. De repente, como em um viral, imagens começaram a chegar pelo dispositivo. Eram fotos dos estudantes estirados sobre as folhas. Maria Eduarda apontou a câmera para si e enviou a própria versão da madrugada extenuante aos colegas. De camisola de alças, apoiada na cama com um dos braços recostados na cabeça e outro no livro, fez o click e foi dormir.

Cinco horas depois, acordou diante do susto, com o celular cheio de mensagens e uma constatação. Havia se transformado em uma vítima do tribunal da internet. Um detalhe quase imperceptível chamou a atenção de alguns colegas de grupo de aplicativo de mensagens: um pedaço da aréola de um dos seios de Maria Eduarda apareceu na imagem. Suficiente para um compartilhamento sequenciado em diversas redes de universitários do Grande Recife. Maria Eduarda, aos 17 anos, virou uma estatística quase invisível no Brasil, a das mulheres vítimas de violência online. 

O mesmo país indignado com a exposição na internet de uma mulher russa, incentivada a falar palavras machistas por brasileiros durante a Copa do Mundo, permanece invisibilizando a dor das brasileiras que têm diariamente a vida exposta e violada virtualmente, muito embora de todos os comportamentos agressivos e difamadores no mundo virtual, 95% tenham como alvo o público feminino. O tema já mereceu estudo até da Organização das Nações Unidas (ONU), e com justificativa. A cada 10 mulheres que usam a internet, há sete Marias Eduardas sofrendo por aí.

Se a cada dois segundos, de acordo com o relógio da violência do Instituto Maria da Penha, uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil, é quase óbvio para os especialistas em discussões de gênero que as violações ocorram também no mundo digital. A internet é a nova rua, diz a professora de direito da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e coordenadora do Grupo Frida de Gênero e Diversidade, Carolina Ferraz. 

“O espaço cibernético é a nossa casa, nosso bairro. Não dá para enxergá-lo como distante da realidade. E, dessa forma, ele permite a continuidade da sistemática machista, por conta da cultura da banalização da violência de gênero, que olha a mulher como objeto.” Assim sendo, é um ambiente que reflete as dinâmicas de poder, de uma suposta hierarquia que subalterniza as características da mulher, diz a gerente de conteúdo da ONG feminista Olga, Débora Torri.

 (Arte / DP)
Arte / DP
Mesmo adolescente, não era a primeira vez que Maria Eduarda sentia essa cultura pesar sobre si. A diferença era a exposição involuntária e o imediato constrangimento. A foto já estava circulando em, pelo menos, seis grupos nas primeiras horas daquela manhã. Na roda de amigos e desconhecidos. A imagem ganhou setas, apontando para o seio. “Até eu olhei a foto e tive dificuldade de ver a aréola. Não sei como as pessoas tiveram capacidade”, lembra. A primeira reação foi sentar e chorar. Depois, contar para a mãe e ser chamada de irresponsável.

Naquele dia, Maria Eduarda subiu no ônibus rumo à universidade acompanhada da vergonha. Para ela, todos os olhares eram de julgamento, todos os passageiros tinham visto a foto. E não havia nada de absurdo em deduzir isso, pois se 61% da população brasileira é usuária da rede segundo o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), seis em cada 10 passageiros  podiam ter visto a foto.
 
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