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Impedidas: machismo e violência no futebol

Mansplaining. A expressão remete a um comportamento tipicamente machista. Numa interpretação livre, retrata a situação em que um homem quer ensinar a uma mulher, de forma extremamente didática, algo que ela já sabe. Como se ela não pudesse entender sozinha porque, para ele, ela não teria capacidade intelectual para compreender o assunto. Nega-se a vez, ignora-se a voz. Um comportamento intrínseco ao futebol, um dos redutos mais machistas da sociedade brasileira.

Publicado em: 20/01/2018 11:12 | Atualizado em: 20/01/2018 11:40


Camila Alves
Especial para o Diario
esportes@diariodepernambuco.com.br

Mansplaining. A expressão remete a um comportamento tipicamente machista. Numa interpretação livre, retrata a situação em que um homem quer ensinar a uma mulher, de forma extremamente didática, algo que ela já sabe. Como se ela não pudesse entender sozinha porque, para ele, ela não teria capacidade intelectual para compreender o assunto. Nega-se a vez, ignora-se a voz. Um comportamento intrínseco ao futebol, um dos redutos mais machistas da sociedade brasileira.

O Superesportes foi a fundo nesse universo para contar histórias tanto no Diario como no site, onde se pode ler com mais detalhes, as histórias de mulheres jogadoras, técnicas, árbitras e diretoras para mostrar que as barreiras do preconceito seguem intactas, apesar da luta que elas travam para ocupar o espaço que têm direito. Do assédio sexual ao grito de liberdade, é preciso entender que o jogo vai muito além dos 90 minutos, muito além do campo. É marcado pelo sofrimento de quem tenta vencer na vida com as chuteiras nos pés no Brasil, o país do futebol. Não para as mulheres.
 

%u201CSe você quiser jogar no meu time, eu lhe dou a 10 e a faixa (de capitã). É só sentar aqui", contou Gerlane Alves. Foto: Thalyta Tavares
 (%u201CSe você quiser jogar no meu time, eu lhe dou a 10 e a faixa (de capitã). É só sentar aqui", contou Gerlane Alves. Foto: Thalyta Tavares)
%u201CSe você quiser jogar no meu time, eu lhe dou a 10 e a faixa (de capitã). É só sentar aqui", contou Gerlane Alves. Foto: Thalyta Tavares (%u201CSe você quiser jogar no meu time, eu lhe dou a 10 e a faixa (de capitã). É só sentar aqui", contou Gerlane Alves. Foto: Thalyta Tavares)

 

A volante Gerlane Alves, 24 anos, relembra a história com um sorriso sem graça, desajeitado, de quem até hoje não acredita no que escutou, no que viu. No assédio inescrupuloso praticado com a certeza da impunidade. Direcionado à outra jogadora, mas na frente do time inteiro. “Só” mais uma vítima. Como a própria Gerlane. A atleta já deixou um clube por ser cortada da lista de relacionadas depois de negar sair com o treinador. Já ouviu conversas sobre quem “pega mais novinha” na equipe. E também que o futebol feminino não cresce por “estar cheio de sapatão”. A modalidade teria que ficar mais atraente para os homens, sugeria o autor da estúpida frase.
Os comentários machistas e preconceituosos vieram de treinadores e membros de comissões técnicas que trabalham no futebol feminino. São algo frequente, como mostra o resultado de uma pesquisa realizada pelo Superesportes com 55 jogadoras que atuam em Pernambuco. Com a garantia do anonimato, responderam questões sobre assédio, preconceito, sexualidade.

Entre as entrevistadas, 27,3% já foram assediadas sexualmente ou moralmente por um profissional com quem trabalharam diretamente. Um número ainda maior, de 32,7%, já viu acontecer com outra jogadora. O índice cresce quando o universo dos ofensores é ampliado: 63,6% já foram alvo de preconceito por parte dos próprios familiares. 78,2% já passaram algum constrangimento no convívio cotidiano, nas ruas.
Agressões silenciadas pelo medo, pela intimidação. Poucos episódios se transformam em denúncias. Das 55 atletas que responderam à pesquisa, somente duas registraram queixa na polícia. O argumento para o silêncio é o receio de um prejuízo fatal para a carreira. As atletas poderiam ser barradas não só do time, como também de outras equipes no estado. “A única solução viável para mim era expor a situação diante da equipe, rebater na hora ou sair do time”, atesta Gerlane.
 
 

Na foto, Jéssica, lateral do Náutico, e Stefane, goleira do Team Chicago (Na foto, Jéssica, lateral do Náutico, e Stefane, goleira do Team Chicago)
Na foto, Jéssica, lateral do Náutico, e Stefane, goleira do Team Chicago (Na foto, Jéssica, lateral do Náutico, e Stefane, goleira do Team Chicago)

 
“Faço faculdade também, de educação física. Estudo pela manhã e os treinos são à tarde. Fica um pouco cansativo, mas já acostumei. Se no futebol não der certo como jogadora, eu quero continuar trabalhando com o futebol. Terminar minha faculdade para ser preparadora física”

Jéssica, 20 anos, lateral do Náutico (Ex-Santa Cruz)
 
“Quando eu era mais nova, nem meu pai nem minha mãe queriam me apoiar no futebol, porque falavam que não era coisa de menina, que menina não jogava futebol. Daí me colocaram no balé, judô, mas nada funcionou. Até que minha mãe resolveu apoiar. Quando eu tinha 8 anos ela me colocou na escolinha de futebol”

Stefane, 18 anos, goleira do Team Chicago (Ex-Vitória de Santo Antão)
 


Visível e Invisível:
a vitimização de Mulheres no Brasil

Pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública levantou dados sobre a violência praticada contra as mulheres no país. Entre os dias 11 e 17 de fevereiro de 2017, foram entrevistadas 2.073 pessoas, sendo
1.051 mulheres.

A cada hora,
503
mulheres
foram vítimas de agressão física em 2016 4,4 milhões
no ano

29% das mulheres
brasileiras relatam
ter sofrido algum
tipo de violência
nos últimos 12 meses

22%
sofreram ofensa verbal
12 milhões

10%
sofreram ameaça de violência física
5 milhões

8%
sofreram ofensa sexual
3,9 milhões

3%
sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento
1,4 milhÃO

4%
sofreram ameaça com faca ou arma de fogo
1,9 milhÃO

1%
levaram um tiro (257 mil)
257 mil

40%
sofreram assédio

36%
escutaram comentários desrespeitosos ao
andar na rua
20,4 milhões

10,4%
foram assediadas fisicamente em transporte público
5,2 milhões

5%
foram agarradas
ou beijadas sem
o seu consentimento
2,2 milhões

a reação diante das agressões

11%
procuraram uma
delegacia da mulher

13%
procuraram ajuda
da família

52%
não fizeram nada

As ofensas:
Mais de
87% das
entrevistadas tiveram,
em algum momento,
a sexualidade questionada pelo fato
de jogarem futebol

“Sapatão”
“Só quer ser homem”
“Vai lavar prato”
“Deve ser lésbica”
“Futebol é pra homem”
“Jogo de menina não presta”
“Sai da quadra. Lugar de mulher na cozinha”
“Machinho”
“Vem que eu te mostro o que é homem”
“Maria macho”
“Mulher homem”
“Macho fêmea”

As ofensas acima
foram relatadas pelas personagens a este especial durante as entrevistas
 

Reprodução: Diario de Pernambuco

Preconceito no alto escalão da seleção
 
Esta seria a história de como a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a partir de novembro de 2016, quebrava paradigmas e elegia, pela primeira vez em 30 anos, uma mulher no comando técnico da seleção brasileira feminina. Com menos de um ano no cargo, a treinadora confirmava sua saída do time nacional. Os rumos da reportagem mudaram. Os novos caminhos reencontraram os antigos. Desde então, esta se tornou a história de como a CBF destituiu Emily Lima, a primeira e única mulher a assumir o comando da seleção brasileira feminina de futebol.

O caso de Emily é o típico paradigma do machismo social, que evita confiar às mulheres os cargos mais elevados de uma organização. Antes fosse um discurso vazio. Não é. Antes da demissão de Emily ser anunciada, 24 de 26 atletas assinaram uma carta ao presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, solicitando a permanência da comissão técnica. Não foram ouvidas. Com a demissão da treinadora, surgiu um movimento de reação das jogadoras. A atacante Cristiane, a volante Francielle, a meia Rosana, a zagueira Andreia Rosa e a lateral Maurine, todas com dez anos de dedicação ao time nacional, em média, anunciaram a aposentadoria da seleção em protesto contra a CBF.

A saída de Emily foi justificada por uma sequência de seis jogos sem vitórias diante de Japão, Alemanha, Estados Unidos e Austrália. Quando se reuniu com Del Nero e soube da decisão, a treinadora pediu a chance de se posicionar, mostrando números da última comissão que, mesmo com uma sequência de maus resultados, não foi dissolvida. “Ele (Del Nero) disse que não era somente por conta dos resultados, mas não quis me explicar o porquê. Eu só queria saber o que mais eu tinha feito para que pudessem me demitir”, conta.

Os problemas de Emily na CBF não começaram com as derrotas em campo. A técnica revelou que sugestões de competições nacionais, de seleções estaduais e torneios de base foram negadas. O tempo de treinamento era curto e não existia respaldo para que a comissão técnica pudesse trabalhar.
Sem tanto contato com o presidente, as solicitações da treinadora sempre eram encaminhadas a ele pelo diretor do futebol feminino da entidade, Marco Aurélio Cunha. “A gente tinha uma convivência profissional, mas bastante seca, sem muito diálogo. Sempre era muito difícil (realizar) tudo que eu levava como sugestão. Ele (Marco Aurélio) dizia: ‘É legal, mas não dá para fazer’. Sempre era um ‘não’, nunca um ‘vamos tentar’.”

Mesmo enfrentando barreiras, pequenas mudanças em função das jogadoras aconteceram. Antes de Emily, pedidos ainda mais simples também eram negados. Como, por exemplo, poder escolher o nome e número na camisa. “Vamos dizer que uma jogadora queria ter “AXX”. Eles diziam: ‘Dá para pôr o AX, o AXX não’. Não tinha esse esforço para tentar fazer com que elas se sentissem melhor. Uma coisa tão simples de fazer, para que elas se sentissem valorizadas. Essa preocupação eles não tinham. Era assim e pronto, acabou.”

Foram dez meses com a impressão de que a CBF evoluía. A realidade mostrou que não. 58 dias separaram a primeira e a última conversa desta repórter com Emily Lima sobre a CBF, sua carreira, dificuldades e enfrentamentos enquanto mulher, enquanto líder num ambiente predominantemente masculino. Um fim que ela parecia antever. Ainda no primeiro dos relatos, na noite de uma terça-feira, como quem faz uma previsão, Emily parecia narrar o seu destino.

“Nós abrimos as portas para eles estarem trabalhando no futebol feminino, mas eles fecham para a gente. Falta eles entenderem que a gente também sabe de futebol. Falta ter oportunidade. Falta deixar a gente trabalhar.” Eles não deixaram.

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