Tradição

As pessoas por trás das cores do carnaval pernambucano

Dificuldades financeiras não impedem aqueles que amam a folia de Momo de botarem suas agremiações nas ruas todos os anos

Publicado em: 21/01/2018 14:30 | Atualizado em: 21/01/2018 15:25

O Boi Mimoso do Córrego do Bombeirense existe há16 anos. Foto: Gabriel Melo/Esp.DP.
Carnaval é a festa das manifestações da cultura popular. São quatro dias de êxtase para muitos, mas também da realização de um trabalho de 365 dias para outros. É quando muita gente coloca na rua a tradição do bairro, da cidade ou da família. Lendas e agremiações passadas geração a geração sustentam a magia da folia de Momo e, por trás delas, há muito suor, “sangue” e lágrimas. Cada fantasia esconde um compromisso particular com a festa.

Só o carnaval do Recife é composto por mais de 90 grupos de maracatu, 30 troças, quase 20 blocos de pau e corda, 40 caboclinhos e 20 e poucos bumba-meu-boi, que chegam de todo o estado. O professor do programa de pós-graduação e da gradução em história da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Helder Remígio de Amorim afirma que a cultura não é hereditária, ela está sempre em transformação. “Mas, em algumas cidades de Pernambuco, a cultura está muito presente, numa relação afetiva com as músicas que falam de coisas da terra, o colorido, a preparação das famílias para essa época do ano”, diz.

O Diario de Pernambuco foi em busca de desvendar quem são as pessoas debaixo das roupas de passista, da gola colorida dos caboclos de lança, dos cocares do caboclinho e de tantos outros adereços.

Caboclinho: o amor de uma família
José Gonçalves brinca no Caboclinho Candidé de Cavaleiro acompanhado dos netos. Foto: Peu Ricardo/DP.

A família do aposentado José Gonçalves da Silva, 72 anos, espera ansiosa pela terça-feira de carnaval. É nesse dia, todos os anos, que a Tribo de Caboclinho Candidé de Cavaleiro vai às ruas mostrar a beleza da dança dos seus integrantes. A preparação de um ano inteiro atinge seu ápice na hora de pisar na Avenida do Forte, no bairro do Cordeiro, onde desfilam várias tribos. Fundada em 11 de março de 1983, a tribo é composta atualmente pelos filhos, netos, parentes e amigos de José Gonçalves. Mesmo enfrentando dificuldades financeiras ao longo de 11 meses, quando chega o período de Momo, a alegria a vontade botar a tribo na rua falam mais alto. As fantasias guardadas dos anos anteriores ganham vida e brilho novos e vestem aqueles que amam dançar.

“Sou teimoso e gosto muito dessa brincadeira. Desde criança que sou metido em caboclinho e por isso não posso deixar a tradição morrer. Cada ano que passa, fica mais difícil colocar o pessoal para desfilar. A gente não tem apoio financeiro quase nenhum. A única verba que recebemos vem da Prefeitura do Recife, mas o valor é pouco para bancar toda a agremiação. Tiro dinheiro da minha aposentadoria e faço empréstimo no banco mais não deixo de desfilar”, conta José Gonçalves. Os seis filhos e os nove netos do aposentado cresceram acompanhando o gosto dele. “Meu tio tinha um grupo de boi de carnaval e eu também brincava nele quando era criança. Minha mãe também gostava muito de carnaval. Isso está no meu sangue”, completa Gonçalves.

A Tribo de Caboclinho Candidé de Cavaleiro não tem sede própria. É em uma sala ao lado da casa da ex-esposa de José Gonçalves que as fantasias e os instrumentos são guardados. “O casamento acabou mais a amizade continua e todos os anos eu ajudo ele a colocar o caboclinho na rua”, revela a dona de casa Dilma Joaquina, 63. O neto mais velho do presidente da tribo, Victor Nunes, 20, conhece a brincadeira preferida pela familía no carnaval desde os três meses de vida. “Meu pai e minha mãe me levavam para os defiles desde quando eu era muito pequeno e eu passei a gostar também. Minha esposa hoje também desfila com a gente”, comenta Victor.

Liliane Vieira, 20, entrou para a família aos 17 anos, quando começou a namorar com Victor e se apaixonou pela caboclinho. “Fico emocionada quando visto essa roupa. É uma alegria muito grande fazer parte desse desfile”, revela Liliane. Também fazem parte da tribo os estudantes Felipe Gonçalves, 16, e Vagner Cleyton, 12. Ambos são netos de José Gonçalves. O taxista Irinaldo Gonçalves, 35, é um dos filhos de José Gonçalves e o incentiva a não desistir da brincadeira. “As dificuldades são grandes, mas ele não pode parar. Já é uma tradição na nossa família. Todos nós gostamos muito de desfilar”, conta Irinaldo.

A brincadeira do Boi Mimoso
 Ricardo Estevam, ainda adolescente, decidiu levar adiante a tradição de Água Fria.  Foto: Gabriel Melo/Esp.DP.

O som tocando era como um chamariz para Ricardo Estevam Filho. Ainda pequeno, ele fugia pelas estreitas escadarias na frente de casa procurando o destino pelas canções. Não era frevo nem maracatu, muito menos caboclinho. Nas ladeiras do Córrego do Bombeirense, em Água Fria, o boi sempre foi o protagonista da folia, motivo de desespero das mães e fascínio das crianças como Ricardo. Ainda adolescente, ele tomou para si a missão de dar continuidade à tradição da comunidade onde vive e transformou carnaval em projeto social.

A brincadeira de boi reconta a lenda de Mateus e Catirina, um casal de escravos de uma fazenda. Catirina, grávida, pede a Mateus para comer língua de boi. Na tentativa de satisfazê-la, Mateus mata o animal mais importante do fazendeiro. Sem saber como agir depois disso, ele acaba pedindo ajuda e começa um jogo de cena para tentar ressuscitar o bicho. Essa história Ricardo sabe decorada e conta, todos os anos, ao colocar o Boi Mimoso para desfilar. A agremiação criada pelos adultos do córrego, há 16 anos, é coordenada por ele.

O boi é praticamente a vida de Ricardo. Oficialmente, ele é um auxiliar operacional de farmácia que maneja medicamentos num hospital público da cidade. Nas horas de folga e também nas extras, é coreógrafo, letrista, costureiro, marceneiro e o que mais precisar. Nos meses que antecedem o carnaval, Ricardo emenda um ofício no outro para dar conta de preparar todas a fantasias do Mimoso. Tudo fica estocado na casa da mãe. A sala vira área de costura. O terraço, a lateral do imóvel e a antesala viram depósito. Penas e brilhos se confundem com o piso.

Ricardo aprendeu a importância de preservar a cultura local quando era um dos jovens atendidos por uma ONG que atuava no córrego. Levou para o Mimoso não só a paixão do menino que fugia de casa para brincar carnaval, mas também a consciência política de usar o instrumento da arte para promover um futuro melhor. Por isso, realiza vários eventos durante o ano para engajar os moradores infantis no boi.

“Não quero que seja só mais uma agremiação, então a nossa meta é trabalhar para construir uma sede, onde possamos realizar cursos e dar formação aos jovens”, disse Ricardo, que faz jornada dupla, já colocou os filhos de três e sete anos na brincadeira e cujo maior sonho é deixar um legado para a própria comunidade. Para Ricardo, o Mimoso não é dele. É deles. O Mimoso costuma se apresentar na segunda-feira de carnaval, à tarde, na Avenida Dantas Barreto.

A embriaguez do frevo
Passista Alan Leite faz mais de 20 apresentações apenas no carnaval. Foto: Shilton Araújo/Esp.DP.

A multidão cantando ao redor, indo e vindo. O frevo ecoando por todos os lados, nos quatros cantos do Sítio Histórico de Olinda. Aquele momento, na agonia e alegria do carnaval, foi o mais marcante da vida de Alan Leite, 38 anos. “Foi quando me senti pela primeira vez um verdadeiro passista”, conta ele, dançarino e também auxiliar de produção em uma empresa frigorífica. Frevo para Alan é coisa séria, não é só diversão. É um amor incondicional descoberto ainda na adolescência.

O frevo era um dos ritmos tocados durante as aulas de dança de Alan, ainda na escola. De pronto, chamou a atenção dele. Fazia lembrar da vida na casa da mãe, em Brasília Teimosa, onde sempre tocava o ritmo. “O frevo tem personalidade, história e, ao mesmo tempo, exige uma desenvoltura, um esforço físico grande e também uma criatividade. A gente se transforma com ele”, justifica.

Depois de muito estudar, Alan se transformou em passista profissional de frevo. Durante o período carnavalesco, se apresenta todos os dias. Só durante os quatro dias de Momo, são mais de 20 eventos dele e da companhia que criou para repassar os conhecimentos a outras pessoas. Porém, ser professor de dança é quase um trabalho paralelo. “As oportunidades são poucas ao longo do ano. O mês tem 30 dias, então é preciso arrumar um trabalho fixo”, explica ele, que mais precisamente embala as carnes na empresa na qual trabalha.

Para conseguir conciliar os ensaios pré-carnaval com a vida profissional, Alan sempre tira férias nos meses de janeiro, quando intensifica os treinos e o repasse da coreografia com os alunos. Faz um esforço e também confecciona os figurinos, borda, faz arte dos cartazes. Tudo pelo frevo. O carnaval, com todos os perrengues como ter sombrinhas roubadas e até dançar com a roupa caindo, é o ápice dessa paixão. 

Música que embala a folia
Adriano Ferreira é taxista, mas o trombone também é sua paixão. Foto: Peu Ricardo/DP.

De segunda a sábado, Adriano Ferreira, 41 anos, trabalha como taxista. Entre uma corrida e outra, ele também toca trombone de vara em algumas casas noturnas do Grande Recife. A música não é uma segunda profissão, é apenas uma paixão. Apesar de tirar o dinheiro do sustento dirigindo um carro, Adriano faz questão da dupla jornada porque precisa se preparar para a grande obrigação anual. Tocar nas orquestras de frevo que circulam pelas ladeiras de Olinda e pelo Bairro do Recife durante a folia. Uma rotina que se repete há 23 anos.

Adriano decidiu virar músico quando viu os amigos adolescentes tocando nas orquestras, durante uma festa de Momo. Começou a fazer aulas na escola do bairro e estudou teoria musical. O sonho dele era tocar saxofone, mas acabou primeiro no trompete. O problema é que já havia muitos trompetistas e ele era pouco requisitado. Foi então que começou a estudar escondido o trombone de vara. “Meu vizinho dizia ‘tem alguém tocando trombone aqui perto’. Eu desconversava, até ele descobrir”, lembra.

Aos poucos, Adriano foi introduzido nas orquestras de frevo para começar a trabalhar no carnaval. A primeira vez foi com o Urso de Pau Amarelo. “Lembro como se fosse hoje, ele saiu do Centro de Convenções até a Cidade Alta, numa sexta-feira à tarde. Estava um calor… Foi o único bloco que vi fazer esse percurso em toda a minha vida”, brinca.

Desde então, já foram muitas apresentações. O carnaval oficial dele começa na quarta-feira pré-carnavalesca e só termina na Quarta de Cinzas, tocando no Bacalhau do Batata. No sábado, são quatro blocos, domingo três e terça mais três. É a época do ano em que o telefone mais toca. “A preparação oficial começa em julho, com os ensaios, mas eu mantenho o contato com o instrumento o ano inteiro. Se você não toca, perde o jeito”, conta Adriano, que hoje é presidente do Grêmio Musical Henrique Dias.

Adriano foi leiturista durante 22 anos, antes de assumir a praça de táxi. Carregar o instrumento de três quilos durante os dias de carnaval não é fácil, até “sombrinhada” de passista ele já levou, mas é prazeroso, conta. A meta dele era saber tocar todos os frevos do mundo, “mas descobri que era impossível”. Por enquanto, soma 200 deles. O preferido é Folia da Madrugada. Enquanto aguarda o carnaval chegar, Adriano espera com a mesma ansiedade de sempre e segue escutando frevos entre uma corrida e outra.

A resistência do Pierrot de São José
Sevy Caninha fundou o bloco hoje comandado pelos seus filhos. Foto: Júlio Jacobina/DP.

Assim como o Galo da Madrugada, o Bloco Carnavalesco Misto Pierrot de São José comemora 40 anos de existência neste ano. Criado pela carnavalesca Sevy Caminha, o bloco é um dos responsáveis por manter viva a tradição momesca no bairro de São José, coração do Recife. Aos 82 anos, dona Sevy não pode mais desfilar com o grupo que invade as ruas levando a alegria característica do bloco. Missão que foi assumida pelos seus filhos e netos. Apesar de não gostar de dançar frevo, dona Sevy conta que apaixonou-se pelo brilho da festa desde criança. “A minha vida foi um carnaval e é um carnaval”, resume Sevy.

Ainda criança, Sevy conheceu Augusto Bandeira, do Bloco Batutas de São José, e Arlinda Cruz, do Clube Vassourinhas. Ambos foram os responsáveis por iniciar aquela garota de apenas 9 anos vinda da cidade de Belo Jardim, no Agreste, no mundo de cores do carnaval. “Eu fiquei admirada com o brilho do carnaval. E dona Arlinda me dava os retalhos de pano pequenos para eu fazer roupas para minhas bonecas. Os pedaços maiores, ela transformava em fantasias. E foi assim que nasceu minha paixão pela costura de fantasias. Fiz roupas para o Batutas de São José, Banhistas do Pina e vários outros blocos. Depois, resolvi fazer o meu próprio bloco”, relembra. O mestrando em história pela Unicap Jairo Cabral lembra que vários clubes populares nasceram de formações de trabalhadores a exemplo do Vassourinhas, Lenhadores e das Pás. "Era comum os clubes nascerem dessas reuniões", diz Cabral.

Na casa de três andares onde a carnavalesca mora com três filhas, quase não há espaço para os móveis da família. Os dois últimos pavimentos são tomados pelas fantasias usadas para o desfile da agremiação. “Aqui em casa todo mundo respira carnaval. Quase não tem lugar para a gente dormir, mas as fantasias têm espaço garantido. Quando chega perto do carnaval temos que pegar todas elas para começar a aprontar e fazer um desfile bonito. As dificuldades financeiras são grandes. Eu e minha mãe botamos dinheiro das nossas aposentadorias no bloco para ele poder sair no carnaval. Mas fazemos isso com muito amor. Quando vejo o Pierrot de São José na rua tenho vontade de chorar. É muita emoção”, conta Maria Goretti Caminha, 57.

O maracatu e suas cores que encantam
Israel Lino, 50, comanda o maracatu que foi fundado pelo seu pai no Morro da Conceição.Foto: Marlon Diego/Esp.DP.

Quem mora no Morro da Conceição, em Casa Amarela, na Zona Norte do Recife, já sabe que quando o carnaval está próximo o colorido dos integrantes do Maracatu de Baque Solto Águia de Ouro de Casa Amarela ganham as ruas da comunidade. Fundado em 7 de setembro de 1933 por Severino Lino Alves, já falecido, o maracatu costuma reunir moradores do bairros das proximidades para desfilar no período de Momo. Hoje, quem comando o grupo é um dos filhos do fundador, o auxiliar de produção, Israel Lino, 50 anos. A tradição da família do pai, natural de Paudalho, já foi passada por Israel para seus filhos e netos, que fazem parte do Águia de Ouro. Como tantas outras agremiações do carnaval pernambucano, o maracatu de Casa Amarela também enfrenta dificuldades financeiras para continuar desfilando. O maracatu não tem sede. Todo o material é guardado na casa de Israel Lino.

“Desde muito novo que eu vivo dentro do maracatu. Meu pai chegava a me carregar pendurado na roupa dele nos dias de carnaval. Quando eu fiz oito anos disse ao meu pai que queria uma fantasia para brincar também. De lá pra cá, não parei mais. Todos os anos, nós enfrentamos muitas dificuldades para colocar o pessoal na rua. Mas vamos lutar para isso não se acabar. Antes de meu pai morrer ele me disse que não tinha herança para deixar a não ser o maracatu. E eu assumi essa responsabilidade”, conta Israel Lino. Com a ajuda da esposa, Rejane Luíza de Barros, tesoureira do maracatu, Lino vai superando os desafios e fazendo a festa nos quatro dias de carnaval. “Antigamente era mais fácil conseguir dinheiro. Até os vizinhos ajudavam. Agora contamos só com a verba da prefeitura, que não dá para muita coisa”, completa Israel.

Atualmente, 55 pessoas desfilam no Maracatu Águia de Ouro de Casa Amarela. As apresentações acontecem em polos do carnaval do Recife e em algumas cidades do interior do estado. Aos 22 anos, Wellington Guimarães é um dos mais animados da turma. Há cinco anos ele é o mestre caboclo do grupo. “Sinto uma emoção muito grande quando visto essa roupa. É muito bom participar dessa festa. Essa tradição não pode morrer nunca”, destaca Wellington. A dona de casa Maria José Gonçalves, 52, é a dama de passo do maracatu. Entrou para o grupo há dois anos junto com marido, Reginaldo Dias da Silva, 36, que se veste de caboclo. Já os netos de Israel, Ivson Lino de Souza Alves, 10, e Ryan Lino de Souza Alves, 6, seguem seus passos. Os dois começaram a dançar quando tinham apenas quatro anos.

Nazaré da Mata
Na Mata Norte do estado, a cidade de Nazaré da Mata é berço de vários maracatus. Entre todos os grupos da cidade, o Cambinda Brasileira é um dos que mais se destaca. Comemorou 100 anos de existência no início deste mês com uma grande festa. Embora ainda muito jovem, o estudante Alex Rodrigo dos Santos Oliveira, 16, tem orgulho de fazer parte do maracatu onde dança desde os três anos. “Fico alegre quando estou dançando. É uma tradição aqui da nossa cidade e todas as pessoas gostam muito. Fazemos várias apresentações e também já viajamos para muitos lugares para divulgar nossa cultura”, ressalta Alex, acrescentando que já viajou para o Rio de Janeiro, Garanhuns e outras cidades do interior para dançar com o maracatu.
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