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Transformação Quando planejamento urbano e cidadania andam juntos O urbanista colombiano Gustavo Restrepo esteve no Recife na última semana para contar sobre como mudou a cara de Medellín em apenas oito anos

Por: Rosália Vasconcelos

Publicado em: 29/07/2017 09:00 Atualizado em: 28/07/2017 22:10


Em apenas oito anos, a cidade de Medellín, na Colômbia, viveu uma transformação inimaginável para a realidade da maioria das cidades latinoamericanas. Com grandes cartéis de narcotráfico a comandar comunidades mais humildes e instituições estatais impregnadas pela corrupção, ela saiu da pobreza generalizada e dos altos índices de homicídio para se tornar uma referência urbanística, não apenas pelo seu moderno sistema de transporte público nem pela sua arborização, limpeza e organização. Medellín é também uma das metrópoles mais seguras da América Latina e destino certo dos turistas que viajam pela AL. Para se ter uma ideia, em 1991 havia 381 homicídios por cada 100 mil habitantes. Hoje, esse índice despencou para 27 homicídios por 100 mil habitantes. Essa mudança não foi realizada com um maior número de policiais nas ruas da cidade colombiana. Mas quando, em 2003, a nova gestão da cidade apostou em um novo planejamento urbano que colocou o cidadão como eixo para as mudanças. O nome responsável pelo modelo urbano que deu nova cara à Medellín é o urbanista Gustavo Restrepo, que esteve essa semana no Recife, a convite do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco (CAU/PE). Ele compartilhou essa e outras experiências urbanísticas latinoamericanas no Fórum Internacional HOJE Cidades Sustentáveis. Em conversa com o Diario de Pernambuco, Restrepo contou que foram muitas as dificuldades encontradas no início dos trabalhos, problemas que se repetem na maior parte das cidades latinoamericanas, entre eles corrupção, falta de recursos públicos e improvisação de projetos urbanos. “Mas a gente de Medellín queríamos uma nova cidade, superar esses problemas. Sabíamos que éramos capazes de fazê-los. E a sintonia entre vontade política e atitude da comunidade permitiu que esse desenvolvimento e essa transformação se estendessem até hoje”.

Um de seus trabalhos mais expoentes é o plano urbanístico de Medellín, que foi uma ferramenta para ajudar a combater o narcotráfico. Pode explicar um pouco sobre o que aconteceu em Medellín?
Esse trabalho foi feito em de período de quase oito anos, entre 2003 e 2011 aproximadamente, quando tive a oportunidade de trabalhar na municipalidade de Medellín. O problema maior não era apenas o narcotráfico, mas a violência e a insegurança pública. Então, o nosso propósito era dignificar a vida do cidadão, melhorando a habitação, as ruas, o meio ambiente e as infraestruturas urbanas. Nos bairros onde a gente melhorava a qualidade de vida das pessoas, o narcotráfico não encontrava espaço e migrava para outros locais da cidade. Então, começamos a compreender que a melhor maneira de combater a violência e a insegurança era melhorando a qualidade dos bairros, ou seja, melhorando a vida das pessoas.

O desenvolvimento de muitas cidades latinoamericanas se concentrou em uma área central empurrando a população mais pobre para as periferias, onde o estado não chega. É o que acontece no Recife e na sua região metropolitana…
A ocupação das periferias se parece muito em várias cidades latinoamericanas, porém com particularidades muito distintas devido à topografia de cada uma delas. No caso do Recife, o desenvolvimento se deu na costa do mar, que é um fator concêntrico. Por outro lado, as margens de rios e as pequenas fontes de água foram marginalizadas, ou seja, as cidades foram dando as costas para elas. E muitas novas famílias que chegam na cidade migram para estes territórios afastados ou esquecidos, encontrando muitíssimas dificuldades no assentamento, na construção e na consolidação desses espaços, bem como a sua conectividade com o resto da cidade. Infelizmente, isso acontece em muitas cidades da América Latina.

Como resolver o problema de moradia da população ribeirinha ao mesmo tempo em que integra o rio à cidade?
A verdade é que não necessariamente as margens de um rio é uma zona que deva estar ocupada. Ao mesmo tempo, para a população ribeirinha, está cercado por uma fonte de água é uma enorme oportunidade. O que tinha de haver é uma construção orgânica e sistêmica de uma rede que permita articular os que estão na borda. E essas margens de rios precisam estar  estruturadas através de elementos planejadores do espaço urbano, em que se insira o espaço público, os equipamentos, as praças, as ruas e um sistema de transporte. A experiência na América Latina nos diz que as regiões periféricas que estão nas margens dos rios tem sido marginalizadas quase sempre.

O que se repete nas periferias latinoamericanas?
Primeiro a gente precisar deixar claro que nem todas as periferias latinoamericanas estão degradadas. De igual maneira, encontramos urbanização de mais alto custo nas zonas de periferia. Assim dizer que toda periferia é ruim de morar não é certo. Como também é verdade dizer que existem periferias nos centros das cidades, que são locais cujo desenvolvimento se estancou. Na maioria das vezes, há desvalorização de certas áreas centrais urbanas que terminam assentando famílias mais humildes. Mas, sim, as periferias das cidades latinoamericanas têm muitos pontos em comum. São nesses locais onde se desenvolvem moradias sociais com pouca ou nenhuma infraestrutura sem escolas, áreas desportivas e é muito escasso o acesso ao transporte público de qualidade. E as pessoas gastam de duas a quatro horas por dia no trajeto de ida e volta ao trabalho.

Como desenvolver áreas marginalizadas, tanto do centro como das periferias?
A intervenção está condicionada à maneira como essas cidades foram formadas. É preciso respeitar as condições históricas, sociais, econômicas e culturais. Então como intervir nesses territórios causando o menor impacto na vida das pessoas? A única forma é fazendo uma intervenção integral que envolve vontade política, participação do cidadão e um planejamento que abranja o tempo necessário para que essas intervenções gerem resultado. Esse tempo não é o tempo político (um mandato).

Como planejar uma cidade?
O planejamento de um território precisa conter cinco componentes estruturantes. O primeiro é o meio ambiente, que são as montanhas, as planícies, os lagos, a água, a vegetação, os bosques. É fundamental integrar o meio ambiente para uma melhor qualidade de vida e a promoção de um intercâmbio ambiental. O segundo componente tem a ver como o sistema de vias conectam, articulam e promovem mobilidade nas mas diferentes áreas do território. Devemos ter conhecimento do sistema fluvial da cidade e respeitá-lo, estimulá-lo e articular o território a partir dele. O terceiro tem a ver com moradia. Em grande massa, é o elemento que compõe e regenera o espaço. Essa moradia tem que ser de qualidade e quando falamos de qualidade, estamos falando de uma moradia digna. Entendendo que moradia não se refere apenas a metros quadrados. Envolve iluminação, ventilação, respeito ao cidadão que a habita. A moradia dever ter a finalidade não apenas de dormir, mas de habitar o território. E com isto complementamos os outros dois componentes. Ocupar o território com diversas atividades, com áreas de trabalho, de lazer, de serviços públicos. Oferecer uma infraestrutura que vai além de esgoto, abastecimento de água, energia, telefonia e internet. Estou falando de uma infraestrutura que permita que aquele bairro funcione de forma integral. Não adianta melhorar apenas um ou dois componentes desses. A transformação precisa ser integral

De que forma é possível colocar em prática esses componentes?
Primeiro é preciso realizar o trabalho junto com a comunidade. A comunidade precisa se articular, se integrar, para que possa se apropriar dos seus espaços urbanos. Essa apropriação oferece uma simbologia que permite a redução da violência, o aumento da solidariedade entre os vizinhos e consequentemente permite criar a noção de cidadania, com crianças, jovens, adultos e idosos trabalhando em sintonia. Segundo, é preciso gerar trabalho. Permitir que os cidadãos tenham acesso aos recursos econômicos. Isso é possível através do incentivo a pequenas empresas dentro das comunidades. Assim, quando se planeja de forma integral, não apenas melhoramos a parte urbanística da comunidade. Para que o trabalho urbanístico seja efetivo, é preciso investir na economia local e nos projetos sociais.

De certa forma, é necessário descentralizar?

A descentralização da economia tem a ver com dois temas maiores. Um é o governo ser aberto à população, ou seja, as comunidades mais humildes, as periferias têm que ter acessibilidade ao governo sem necessita ir aos centros urbanos. Quero dizer que as informações sobre os bairros devem ser acessíveis através da internet para que elas passem a conhecer a realidade do espaço urbano onde vive. Isso é possível também levando escritórios do governo aos bairros. Em Medellín, a prefeitura está presente nas bibliotecas. São projetos que permitem que o estado se descentralize e dê independência aos bairros. E não apenas falo da prefeitura. Falo da comunidade ter acesso, em seus limites, a bancos, serviços públicos de qualidade e órgãos fiscais e jurídicos para que possam resolver seus problemas. É na comunidade que as pessoas deveriam encontrar instituições para se capacitar, se preparar para o mercado. Também é preciso entender que a qualidade dos espaços públicos deve ser igual (e boa) em toda a cidade e não apenas nos bairros de maior poder aquisitivo. As zonas economicamente mais carentes deveriam estar equipadas com o mesmo mobiliário urbano, ter boas vias, semáforos, iluminação pública. Dignificando a vida de todos, as pessoas passam a se envolver e a cuidar de sua cidade de forma mais concreta.

Essa desigualdade no acesso à cidade é uma força motriz da violência urbana. Como o urbanismo pode intervir, ajudar no combate à violência?
Eu creio que o urbanismo é uma ferramenta capaz de reduzir o narcotráfico. Porque o narcotráfico tem a ver com a falta de oportunidade nas comunidades mais humildes. Se gestores e urbanistas mudamos a mente ao intervir na cidade, somos capazes de mudar a mente dos habitantes. Muitos jovens hoje da América Latina estão envolvidos com o narcotráfico. Uma das razões é que nos territórios mais pobres há uma alta densidade populacional, não existe uma mínima infrestrutura e o estado não chega. Então, se qualificamos o território, capacitamos os cidadãos e incentivamos e construímos a solidariedade entre as pessoas, os vizinhos, podemos baixar os índices de violência, como já foi demonstrado em Medellín, de onde eu venho. Porém, as intervenção urbanas em si não foram as responsáveis pela redução da violência. Elas só tiveram esse efeito porque o planejamento colocou o cidadão como centro e como fim maior. Educá-lo, capacitá-lo e garantir o seu bem-estar para gerar cultura cidadã e para que ele entenda o seu compromisso com a cidade. E dessa maneira fomos dando oportunidade para que os jovens que estavam às margens da lei pudesse se envolver.

No Brasil, os investimentos sociais, o dinheiro público esbarram na corrupção, assim como acontecia em Medellín na década de 1990. Quais dificuldades vocês encontraram nesse processo de reestruturação da cidade?
Na América Latina, os condicionantes de pobreza são muito similares. Concentração da população nos grandes centros urbanos, alta densidade populacional, falta de estrutura urbana, corrupção na polícia e narcotráfico. O estado deve ser consciente que seu exemplo é fundamental para que os cidadãos se comportem da melhor maneira. Se a política é corrupta, os cidadãos são corruptos e vice e versa. As intervenções urbanas e obras sociais devem ser feitas não apenas para cumprir programas de governo ou aparecer em propaganda política. Elas são necessárias para oferecer um melhor bem estar ao cidadão para dar a ele um sentimento de pertencimento ao lugar em que habita. Então, quando se fazem as obras que as pessoas realmente necessitam e querem, os cidadãos cuidarão. Isso só é possível se durante a concepção do projeto o cidadão for consultado. Quando a vontade política e a vontade do cidadão se encontram, o que acontece é a transformação da cidade. E O governo é responsável por educar o cidadão para que ele saiba se comportar na vida civil, deve saber seus direitos e deveres. O prefeito de Medellín, à época em que eu trabalhei na prefeitura, ele determinou que o dinheiro público era sagrado e os funcionários públicos tinham que ser honestos e capacitados. Seguindo essa linha de raciocínio, o governo consegue planejar as políticas públicas para um período de 21 anos ou mais, que é o mínimo de tempo necessário para um planejamento urbano eficaz. As políticas públicas devem ter continuidade, não apenas durar quatro anos. E se essas políticas não forem suficientemente fortes ao ponto de passar de um governo para outro, esse planejamento não passa de improvisação. Um planejamento precisa de cinco governos consecutivos para se tornar efetivo. É o tempo que uma criançaq se torna um homem.

Envolver os políticos é a parte mais difícil?
A ideia foi trazer não somente essa experiência para o Fórum HOJE Implementando Cidades Sustentáveis. Mas mostrar bons resultados podem ser conseguidos em pouco tempo. E mostrar também que essas propostas não cabem apenas para os grandes municípios, mas também os menores devem ter um plano de ordenamento territorial para 20 anos ou mais, para que possam crescer harmonicamente e evitar problemas no futuro.

Vocês tiveram essa dificuldade em Medellín?
Seguramente. Medellín passou durante muitos anos por momentos de violência, de narcotráfico, de corrupção, de falta da presença do estado em muitos lugares. Da falta de qualidade e quantidade dos equipamentos nos territórios, poucas e péssimas escolas e um sistema de transporte público deficiente. Porém, a partir de 2003 até hoje, quase 16 anos depois, temos encontrado uma cidade onde um plano ate 2030, em que cada prefeito que entra, revisa com a comunidade, analisa e continua esse plano. Porque eles sabem que esses planos de desenvolvimento locais de cada comunidade estão consoantes com o plano de ordenamento territorial da cidade. Claro que temos muita coisa por melhorar. Mas temos claro que o compromisso maior é com o cidadão e os governos precisam caminhar pelos caminhos desenhados há 16 anos.

Na época em que vocês estavam trabalhando no governo municipal, para conseguirem implantar esse planejamento até 2030, quais as dificuldades tiveram?
Muitas. Mas o mais importante foi a capacidade de superar o vácuo entre governo e comuidade. Compreender que as pessoas também tinham direito a sonhar sua cidade. Talvez esta tenha sido a primeira situação mais complexa, fazer o planejamento com a comunidade. Em seguida, capacitamos a comunidade para decidir pelas melhores escolhas, para que propusesse trocas que realmente transformassem um maior número de comunidades. Porque as trocas devem melhorar o maior número de cidadãos. O bem comum prevalece sobre o bem particular. Fomos capazes de liberar um pouco essa ambição individual, responsabilizar o cidadão pela sua comunidade. E aí conseguimos resolver muitos problemas. Por exemplo, sabemos que não se tinha dinheiro para fazer tudo e havia muito por fazer. Então, foi necessário priorizar obras, fazer um planejamento gradual.

O Recife é territorialmente pequeno, o que gera uma dificuldade de expansão imobiliária e habitacional de forma horizontal. E hoje uma das grandes discussões urbanas gira em torno da verticalização da cidade. Você é contra a verticalização?
Creio que a discussão maior diga respeito ao planejamento. E planejamento tem a ver com regras claras. O mercado, os investidores sempre terão interesse em estimular o seu negócio, o que é válido também. Porém, acredito que o estado é o que tem a ferramenta para fazer uma simbiose entre o interesse do mercado e o interesse dos cidadãos. E essa simbiose se faz com regras claras. É necessário um plano de ordenamento territorial, um plano de ordenação urbana, atualizar os códigos de construção. Essas regras claras precisam dar uma leitura real da situação social, econômica e física tanto do território como de seus habitantes. Quando as regras do jogo estão claras, é possível evitar improvisações e explosões imobiliárias em determinadas áreas da cidades.

A “metropolização” poderia minimizar essa verticalização?
Sim. É impossível que um território seja suficiente para abastecer a si mesmo. É necessário compreender que a área metropolitana é a soma das municipalidades, que compartilham não somente o território mas também as culturas, economias, sistemas de transporte, zonas industriais, áreas de desenvolvimento, programas de proteção à água, flora e fauna. Creio que a solução está em entender que hoje uma cidade não pode viver sozinhar. A metropolização é fundamental bem como a realização de um plano de ordenamento territorial da área metropolitana.

O que mais você gostaria de dizer para o Recife?
O Recife é um território costeiro e toda intervenção vai influenciar a orla marítima. E vocês têm muitas fontes e frentes e cursos de água. É importante entender que vocês têm uma enorme responsabilidade por elas, principalmente pelas marés que sobem e descem. É preciso ter compreensão pelo tecido original do Recife e ter respeito por ele. As construções devem levar em consideração não apenas o paisagismo urbano, mas harmonizar o meio ambiente com qualidae de vida para o cidadão. É preciso fazer leituras transversais sobre esse território do Recife.

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