Vida Urbana
Meio Ambiente
A relação do recifense com o manguezal da cidade
Depois de destruí-lo ao longo de séculos para se desenvolver, a cidade se volta de novo a esse ecossistema para reverenciá-lo como o grande pulmão e berço de vida
Publicado: 29/07/2017 às 15:00
Projeto na Ilha de Deus faz plantio de mangue. Foto: Peu Ricardo/DP./
O Recife nasceu e se desenvolveu, ressalta o professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE), Clemente Coelho Junior, num mosaico de floresta de restinga, cujo solo encharcado era circundado por diversos rios. “Historicamente, a gente pode dizer que o Recife, na prática, está sobre o mangue”, ressalta. Por causa disso, esclarece o professor colaborador e orientador do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Zanon Passavante, a capital é um território privilegiado. “A interação entre a cidade e o manguezal não serve só para a melhoria do ar. Permite a interação da rede trófica (teia alimentar).”

Educadores ambientais afirmam que um longo caminho precisará ser percorrido para chegarmos a um ponto ideal em relação à conservação dessas áreas. Ainda é preciso realizar mais ações de limpeza dos rios e encostas, fiscalizar o descarte irregular de resíduos e, principalmente, educar a população.
"Eu e o mangue"
Foram necessários dois anos de muita insistência até que Beatriz Marino, 23 anos, cedesse aos convites da mãe para remar no Rio Capibaribe. O curso d’água e o manguezal só despertavam nojo e medo por parte da estudante de nutrição, mas bastou um dia para o encantamento acontecer. Há três anos, ela cai na água todos os dias e com isso adquiriu uma capacidade invejável a qualquer outro recifense: sabe diferenciar as partes limpas das sujas, onde o mangue é mais frondoso e até por onde passam às vezes animais como jacarés e capivaras. Beatriz é um exemplo de como estabelecer uma relação de respeito com os corredores verdes da cidade.
Um desses animais, o jacaré-de-papo-amarelo, é visto com frequência na área do bairro da Torre, conta Beatriz. “Uma das primeiras vezes que fui remar, me assustei com o jacaré e voltei chorando. Mas é difícil encontrá-los. É mais fácil ver capivaras, peixes (principalmente perto do mar) e garças (na área de mangue). Descobri que existe muita vida onde eu achava que só tinha sujeira.” Quem também mudou de percepção a respeito da natureza que cerca a cidade foi o cozinheiro Leandro Santos, 31, frequentador assíduo do Jardim do Baobá. “É um refúgio em meio ao concreto. Estamos acostumados a ver essa área de cima e, ao nos aproximarmos, percebemos o quanto isso merece ser preservado.”

Foi o que aconteceu com o músico Felipe Donato, do Coletivo Som na Caixa. “A influência de Chico Science em nossa música fez que a gente crescesse com essa história do mangue na cabeça e mudou nossa relação com a cidade. Moramos na Rua da Aurora, onde ele morou, de frente para o mangue.”
A influência do movimento manguebeat persiste até hoje e extrapola as fronteiras da cultura, atingindo inclusive a economia local. Há um ano e seis meses, a marca pernambucana Manglier distribui essa identidade em camisas, óculos e relógios (feitos de madeira de reflorestamento), para o Brasil e o exterior. “Por meio dos nossos produtos e de mensagens de consciência ambiental, queremos mostrar a importância do mangue e a relação de Pernambuco com a manguetown”, ressalta Cláudio Marcelo, idealizador da marca.
Desafios
O grande desafio para a preservação do manguezal é o enfrentamento à degradação provocada pelo descarte de resíduos sólidos nos mananciais e a construção de moradias irregulares em áreas aterradas. Um mapeamento encabeçado pela Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Recife irá atualizar a cobertura de mangue existente na cidade. No Brasil, um levantamento inédito realizado por 18 instituições brasileiras, lançado em abril deste ano, mostrou que os manguezais perderam 20% de sua área nos últimos 15 anos, principalmente por causa da expansão urbana.
No Recife, isso fica evidente na comunidade que mais depende do mangue. A Ilha de Deus, na Zona Sul, foi erguida a partir da retirada da madeira do mangue para construção de palafitas. Em 2007, esse tipo de moradia desapareceu da comunidade depois de um processo de revitalização. Há dois anos, a ONG Saber Viver iniciou um projeto de reflorestamento com a missão de plantar 20 mil mudas de mangue. O trabalho é realizado por 20 voluntários e já atingiu metade da meta. “A nossa dificuldade é encontrar apoio financeiro. A parceria com a instituição alemã Aktionskreis termina em outubro e não sabemos se vamos conseguir continuar”, lamenta a presidente da Saber Viver, Nalvinha da Ilha.
Entrevista // Clemente Coelho Junior, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE)
Como o manguezal age e interfere no meio ambiente de uma cidade como Recife?
Ele é muito importante pelos chamados serviços ecossistêmicos. É filtro biológico. Apesar da carga orgânica de esgotos lançada nos rios, o mangue consegue absorver parte dos nutrientes. Se não fosse ele, o rio seria muito mais poluído. O mangue também é berçário. Hoje vemos comunidades como a Ilha de Deus se servindo de organismos que utilizam durante pelo menos uma fase de vida os manguezais. Há também, fazendo uma correlação com o turismo e os passeios de catamarã, a beleza cênica. Além de outros serviços, como atenuar o efeito do procesos de erosão na região costeira, absorver carbono na atmosfera, sendo um ótimo indicador do aquecimento global.

É difícil dizer qual o mais importante, mas em área urbana o filtro biológico é um destaque. Ele funciona muito bem, retém parte dos nutrientes que estão no esgoto e transforma em biomassa vegetal. Se a gente compara com outros lugares do Brasil, o mangue do Recife é composto por árvores frondosas, com grande diâmetro, altura, um sinal de que vem absorvendo parte da matéria orgânica lançada sem tratamento.
É possível mensurar o processo de degradação do manguezal da cidade?
Não existe um estudo quanto ao que perdemos. No mundo, sabe-se que houve perda de 50%, mas não existe esse levantamento para o Brasil, muito menos para o Recife. Mas, se a gente pega fotos antigas das bacias do Jordão e do Tejipió, vemos que uma grande área se perdeu. Ainda hoje, assistimos áreas sendo aterradas para construções irregulares de moradia. Um dos maiores impactos observados sobre o mangue é o lançamento de lixo, resíduos sólidos que acabam entrando com a maré alta no mangue e impactando populações de organismos, como caranguejos e ostras. O lixo acaba ocupando espaço que poderia ser de uma toca de caranguejo. Onde há mais lixo, há menos população deles.
É precisso disseminar mais o conhecimento sobre o manguezal no Recife para garantir a preservação desse ecossistema?
A educação é uma ferramenta útil para a gestão porque toda vez que implementamos ou planejamos a conservação do ambiente precisamos ter a população consciente para receber a ação. Educação é sempre bem-vinda. No Recife, acredito que ela tomou pulso a partir do movimento manguebeat. Pelas músicas de Chico Science, os jovens tomaram mais sentido da importância do manguezal.
E porque é preciso preservar os manguezais?
Se você olhar por uma imagem de satélite, olhando do céu, veremos poucas áreas verdes da cidade do Recife. A cidade não têm índice de área verde muito alto. Se a gente chega nos pontos indicados, veremos que acaba sendo manguezal e vegetação de margem de rio. E quando olhamos o Capibaribe, destacamos isso como verdadeiros corredores ecológicos, onde existe um fluxo de animais. Naturalmente, acaba atingindo o tecido mais complexo urbano e concretado da cidade. É natural que ressurjam jacaré, capivara e outros animais. Estamos prestes a receber mais peixes-bois, em função do centro de mamíferos aquáticos e a reintrodução dessa espécie em Porto de Pedras, Alagoas. Esses animais tendem a descer sentido Sergipe ou subir, como aconteceu com duas peixes-bóis que passaram uns dois meses dentro do Capibaribe recentemente. Se a tendência for essa, precisamos recebê-los bem. E conservar os manguezais faz parte disso.

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