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Legado Herança holandesa: o Recife de Maurício de Nassau Há 380 anos desembarcava na capital pernambucana o conde alemão que virou símbolo de uma era idealizada pelos pernambucanos

Por: Alice de Souza - Diario de Pernambuco

Por: Anamaria Nascimento

Publicado em: 11/06/2017 14:00 Atualizado em: 26/06/2017 16:23


Local onde surgiu a primeira ponte do Brasil, no Recife. Imagem: Frans Post/Reprodução.
Local onde surgiu a primeira ponte do Brasil, no Recife. Imagem: Frans Post/Reprodução.
“Um belo país que não tem igual sob o céu.” Essa teria sido a primeira frase de Maurício de Nassau ao desembarcar em território brasileiro. Uma história de amor à primeira vista. Há 380 anos, Nassau chegava ao Recife para governar o Brasil Holandês. Apesar de ter vindo como representante do governo holandês, era um alemão protestante. Ainda hoje, muitos pernambucanos mantêm uma paixão platônica pelos holandeses e acreditam que o estado viveria dias melhores se os neerlandeses não tivessem sido expulsos.

Ilusão, dizem especialistas ouvidos pelo Diario.  “Nassau ajudou a criar um grande mito, uma memória de que aquilo seria bom. Mas não estaria. As possessões holandesas hoje não estão bem”, diz o arquiteto e urbanista José Luiz de Menezes. O saudosismo encontra justificativa na lista de feitos do alemão.

Nassau em 1637. Foto: Acervo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP)
Nassau em 1637. Foto: Acervo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP)
Entre 1637 e 1644, tempo que governou em terras brasileiras, Nassau provocou mudanças e foi responsável por muitos dos pioneirismos que tanto orgulham os pernambucanos: decretou a liberdade de culto religioso; fez a primeira documentação da paisagem local; criou jardim botânico, zoológico e obsertavório astronômico; construiu a primeira ponte da América Latina e remodelou urbanisticamente o Recife.

Dos prédios que compõem o centro histórico do Recife hoje, nenhum foi originalmente construído no período de domínio holandês. A herança urbanística aparece apenas no traçados de ruas, na inspiração arquitetônica de prédios estreitos, além da disposição das edificações. Os imóveis compridos e estreitos da Rua Imperador Dom Pedro Segundo, no bairro de Santo Antônio, são um exemplo desse legado.

Ao todo, foram 2.666 dias sob o comando de Nassau, o grande responsável pela afetividade que permaneceu nos pernambucanos em relação aos holandeses, que ainda ficaram mais dez anos depois da saída do conde de Pernambuco. A expulsão só aconteceu em 1654. Nassau chegou a comandar uma área de aproximadamente 1,5 mil quiolômetros na costa brasileira, que ia do Sergipe ao Maranhão.

De acordo com a historiadora Eliane Nascimento, autora da tese Olinda: uma leitura histórica e psicanalítica da memória sobre a cidade, Nassau escolheu o Recife como sede de seu governo por achar Olinda, pelas características topográficas, mais difícil para defesa e fortificação. “Destaca-se ainda o fato de o Recife ser cortada por rios e à beira-mar, muito mais próxima das características das terras e cidades holandesas”, pontua a pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Cidade Maurícia ainda vive nas ruas e nos museus

Ponte Maurício de Nassau atualmente. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP.
Ponte Maurício de Nassau atualmente. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP.

Como um quebra-cabeça, pequenas peças espalhadas por museus do Recife remontam o período do domínio holandês em Pernambuco. Pontos turísticos da cidade também guardam memórias e patrimônios da época. Para quem quer reviver esse capítulo da história pernambucana, o roteiro por começar pelo bairro de Santo Antônio. Quando Maurício de Nassau chegou à colônia, criou, onde hoje é o bairro da área central, a Cidade Maurícia (Mauritsstad).

Foi onde ele mandou construir a Ponte Maurício de Nassau, então chamada de Ponte do Recife. De lá, a população viu um “boi voar”. Antes da inauguração da primeira ponte de grande porte do Brasil, o conde de Nassau divulgou amplamente que um boi voaria no local. O objetivo era ter um público grande e arrecadar dinheiro com a cobrança de pedágios para amenizar o prejuízo no orçamento no projeto. No dia do evento, 28 de fevereiro de 1644, o administrador cumpriu com o que prometeu. Usando cordas e roldanas, fez um boi empalhado passar de um lado para o outro da ponte.

O tour pelo Recife de influência holandesa pode seguir até a Zona Norte da cidade. No Museu do Estado de Pernambuco, bairro das Graças, a exposição 355 do Tratado de Paz de Haia - em cartaz desde o ano passado, quando a data foi comemorada - retrata o fim dos conflitos entre o Portugal e os Países Baixos. “Além da paz celebrada, o acordo estabelecia a devolução da Nova Holanda (ou Brasil Holandês) ao reino de Portugal em face a uma indenização de oito milhões de florins, equivalente a 63 toneladas de ouro”, explica a apresentação da mostra. No museu, o visitante encontra quadros que retratam a época, restos de construções do Recife holandês e canhões trazidos de Amsterdã durante as batalhas com os portugueses.

De lá, o passeio pode seguir para o Instituto Ricardo Brennand, na Várzea, onde está o maior número de peças do período do domínio holandês. Na sala de exposição Frans Post, estão 15 das 158 obras do artista (única coleção que cobre as quatro fases do trabalho de Post), considerado, junto com Albert Eckhout, o mais relevante artista neerlandês a serviço de Nassau na comitiva que o acompanhou a Pernambuco. Ele chegou ao Brasil em 1637, aos 40 anos, e veio com Nassau com o objetivo de montar uma grande coleção de desenhos com motivos brasileiros para mecenas europeus.

Ainda no Instituto Ricardo Brennand, é possível ver um documento original em pergaminho datado de Brademburgo 1676 e assinado por Maurício de Nassau. Uma reprodução da Nau Zuphen, embarcação que conduziu a comitiva do alemão a serviço dos Países Baixos a Pernambuco. Uma biblioteca sobre o Brasil holandês, com livros impressos na Holanda, Portugal, Inglaterra e Espanha, também pode ser vista no espaço cultural. “Estas coleções foram organizadas por Bia Corrêa do Lago, autora de amplo estudo sobre Frans Post e curadora desta primeira exposição do acervo do Instituto, tornada possível graças ao apoio do Ministério da Cultura”, destaca o presidente do instituto, Ricardo Brennand.

Moedas, cachimbos com a marca da Companhia das Índias Ocidentais e um globo terrestre original da época (além dele só há outros dois, na Holanda) também estão guardados no Recife. “A história do Brasil Holandês seria outra sem a presença do conde João Maurício de Nassau. Durante sete anos, governou o Nordeste e conseguiu disciplinar e pacificar a população da região, defender e ampliar os territórios conquistados e também garantir a produção e comercialização do açúcar”, explica a apresentação da exposição.

O amargo Brasil Holandês pós-Nassau
Representações da Batalha dos Guararapes em exposição no Museu do Estado. Foto: Gabriel Melo/Esp.DP.
Representações da Batalha dos Guararapes em exposição no Museu do Estado. Foto: Gabriel Melo/Esp.DP.

“A 7 de fevereiro, o senhor general Sigismund von Schoppe saiu em expedição contra os portugueses com 4 mil homens, mas foi derrotado pelo inimigo, deixando no campo 1,4 mil mortos e 200 presos.” Era 1649, quando o jovem Peter Hansen Hajstrup, enviado a Pernambuco no mesmo ano do retorno de Maurício de Nassau, relatou em seu diário a passagem sobre mais um dia sangrento em terras pernambucanas. Enquanto a passagem de Maurício de Nassau por Pernambuco é denominada Tempo da Boa Paz, sobre o qual paira até um saudosismo, o período posterior é marcado pela revolta dos luso-brasileiros, derramamento de muito sangue e pobreza.

A rotina extenuante de tentativas de contenção da revolta dos luso-brasileiros, depois da saída de Nassau, foi resgatada no livro Viagem ao Brasil (1644-1654) - O diário de um soldado dinamarquês a serviço da Companhia das Índias Ocidentais. Organizada pelo professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Bruno Miranda, em parceria com os pesquisdores Benjamin Teensma e Lucia Xavier, a obra foi lançada no fim do ano passado. Peter Hansen passou cerca de 10 anos em Pernambuco e participou das batalhas de Tabocas, Casa Forte e Guararapes, sobre os quais traz relatos fortes. “Lá recebi um tiro na veia da perna direita e não foi possível fechar a ferida (…) Assim, tive que ir a cavalo duas milhas até chegarmos, à noite, ao quartel”, contou, sobre a Batalha dos Guararapes.

A memória escrita deixada por ele é um dos poucos relatos das baixas patentes da Companhia das Índias Ocidentais recrutadas para atuar em terras brasileiras e fonte para remontar o cenário da época. O Brasil Holandês pós-Nassau era violento e pobre. “Quando chegamos ao lugar da refrega, lá encontramos nosso carrasco morto no centro de um círculo de 32 portugueses gravemente mutilados: em parte cortados em dois pedaços, em parte decapitados e em parte sem braços ou pernas. O carrasco havia lhes vendido caro a sua vida”, relatou objetivamente Peter, sobre as batalhas de 1645.

Outro problema claro era a fome. Os próprios soldados recebiam escassa quantidade de comida, apenas frutas, açúcar e garapa misturada com água. “Uma libra e meia de bacalhau, uma libra de farinha de trigo, uma caneca de azeite de palma e uma caneca de vinagre. Com isso nós deveríamos [nos] contentar durante nove semanas. Por esse motivo, muita gente passou para o inimigo e muitos morreram”.

Para o arquiteto do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco José Luiz de Menezes, dos 24 anos de Brasil Holandês, apenas a época de Nassau deixou legado ao estado. “Depois, ficarm militares governando. O que existe de cultura foi deixado por Nassau. Existe um falácia sobre como seríamos melhores com os holandeses, mas as outras possessões holandesas não prosperaram”, ressalta.

O batavo que caiu de amores pelo Recife

Morando no Recife desde quando tinha 28 anos, o padre holandês Antonius Speekenbrink, de 85 anos, não vê semelhanças entre as cidades holandesas e a capital pernambucana. “O que o Recife tem de mais parecido com a Holanda é aquele moinho do Makro (supermercado na Avenida Recife)”, disse, brincando.

“Claro que tem o nome de Maurício de Nassau em várias coisas, as pontes, mas não vejo muitas semelhanças”, completou o padre que adotou o nome Paulo no Brasil.
Quando chegou à capital pernambucana, vindo da cidade de Breda (110 km distante de Amsterdã), não falava uma palavra em português. “Eu era como uma folha de papel em branco. Fui aprendendo nos livros, com os colegas e com as pessoas que iam às missas”. Durante a atuação religiosa, passou pelas cidades de Garanhuns, Cabo de Santo Agostinho, Paulista e Jaboatão dos Guararapes. Sempre morando no bairro da Madalena, Zona Norte do Recife.

Aposentou-se aos 81 anos e tinha a opção de voltar para a Holanda, onde tem irmãs. Rejeitou a proposta e escolheu ficar na cidade que o abrigou ainda jovem. “A gente fica com o Brasil no coração”, afirmou. Há um ano, contraiu chikungunya e, por causa das dores nas articulações, deixou de fazer um de seus programas favoritos: caminhar à beira do Rio Capibaribe, o mesmo onde Maurício de Nassau construiu a primeira ponte do Brasil.
 
Entrevista >> José Luiz de Menezes, arquiteto e urbanista
 (Foto: Gabriel Melo/Esp.DP)

Como podemos caracterizar a passagem dos holandeses em Pernambuco?
Tudo quanto existe de antigo, em toda parte, o pessoal diz que é do tempo dos holandeses, mas não é verdade. Naquela época, sequer existia Holanda, mas sim os Países Baixos. Essas províncias criaram a Companhia das Índias Ocidentais. A passagem deles por Pernambuco pode ser dividida em três momentos: a primeira etapa foi da conquista, de guerras. O ataque a Pernambuco foi planejado antes de 1930, em busca do açúcar produzido aqui. Eles tomam Olinda e vem para o Recife, onde se fixam. Entre 1930 e 1935, ocorre aquela guerrilha entre o Arraial do Bom Jesus e os Holandeses. Com a vitória, começa uma segunda etapa, de reorganização com a contratação de um governador, Maurício de Nassau. Esse é considerado o “Tempo da Boa Paz”, onde criou-se o mito Nassau.  Ele era um governador de primeira, mas gastava os lucros da companhia fazendo investimentos locais. Então, o contrato é cancelado. Com a volta de Nassau, irrompe a revolução dos brasileiros e portugueses. Há um momento de fome e dificuldade, que termina nas batalhas de Tabocas, Guararapes e no cerco do Recife.

Qual é a real importância de Maurício de Nassau para o desenvolvimento do Recife?
Nassau era alemão e humanista, havia estudado em universidade e tinha noção de administração pública, sabia o que ra estabelecer um governo. Durante o tempo em que passou aqui, desenvolveu o Recife de 40 para 380 casas, o que na época era um número extraordinário. Ele reativa alguns engenhos, cosnegue persuadir outros senhores de engenho a permanecer e produzir não mais para os portugueses, mas para os holandeses. Ele cosntruiu dois palácios, uma igreja, um jardim, fez a povoação do Bairro de São José. Criou o IPTU, construiu duas pontes, pavimentou ruas, planejou a cidade pela primeira vez. A cidade maurícia é  a primeira cidade planejada do Brasil, pois antes os planos todos vinham de Portugal. Ele também trouxe pintores, que começaram a produzir retratos, fazer o levantamento de dados. Nassau gostava da terra, a gente pode dizer que houve um encantamento mútuo. Se temos alguma imagem da nossa terra durante os anos de conquista, deve-se a ele. É justo comemorar Nassau e a cultura que ele deixou como testemunho, além daquela que internacionalizou.

Faz sentido acreditar que o estado seria mais próspero se os holandeses tivessem continuado aqui?
É uma grande falácia. Nassau ajudou a criar um grande mito, uma memória de que aquilo seria bom. Mas não estaria. Os holandeses tinham a Guiana Holandesa, terras na África, e tudo desapareceu. As possessões holandesas hoje não estão bem. A colonização portuguesa ainda foi boa, foi o modelo que deu origem à expansão pela costa. Se o governo português não foi dos melhores, ainda é o melhor para o que a gente quer. O período de Nassau é o único que vale a pena durante a passagem holandesa por Pernambuco.

Para saber mais sobre o Brasil holandês:

Filmes

Doce Brasil Holandês (2010), de Monica Schmiedt
Duas historiadoras, a brasileira Kalina Vanderlei e a alemã Sabrina Van der Ley, encontraram-se no Recife para investigar as raízes e as contradições do mito que se criou acerca da invasão holandesa a Pernambuco, no século 17. Maurício de Nassau é definido por alguns moradores de Recife como “o melhor prefeito que a cidade já teve”.

O Rochedo e a Estrela (2007), de Katia Mesel
O documentário aborda a expansão do judaísmo em Pernambuco durante o domínio holandês no século 17. O filme mostra a importância dos “cristãos novos” (judeus batizados a força pelo governo português) e da luta de Mauricio de Nassau pela liberdade religiosa, o que permitiu, posteriormente, a criação da primeira sinagoga das Américas, a Zur Israel

Livros

O Brasil Holandês (2002), de Evaldo Cabral de Mello
De acordo com a obra, a presença do conde Maurício de Nassau no Nordeste brasileiro, no início do século 17, transformou Recife em uma cidade desenvolvida. A obra reúne passagens de documentos da época, desde as primeiras invasões na Bahia e Pernambuco até sua derrota e expulsão. Os textos - apresentados e contextualizados pelo historiador Evaldo Cabral de Mello - foram escritos por viajantes, governantes e estudiosos.

Viagem ao Brasil (1644-1654): O diário de um soldado dinamarquês a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, de Peter Hansen Hajstrup
Editado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), o livro é a primeira versão para o português de uma obra rara do período de dominação holandesa e tem como base o manuscrito de um militar de baixa patente que passou dez anos em Pernambuco e conseguiu sair vivo de confrontos como as batalhas de Tabocas, Casa Forte e Guararapes. Livro reproduz pinturas de artistas holandeses famosos, como Franz Post e Albert Eckhout.

Exposições

355 anos do Tratado de Paz de Haia
Museu do Estado de Pernambuco
Endereço: Avenida Rui Barbosa, 960, Graças, Recife
Horário: de terça a sexta, das 10h às 17h e sábados e domingos, das 14h às 17h
Entrada: R$ 6 (inteira) e R$ 3 (meia entrada)

Frans Post e o Brasil Holandês
Instituto Ricardo Brennand
Endereço: Rua Mário Campelo, 700, Várzea, Recife
Horário: de terça a domingo, das 13h às 17h
Entrada: R$ 25 (inteira) e R$ 12 (meia entrada)

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