Especial Enchentes: as lições que não foram aprendidas Problema presente há séculos em Pernambuco, cheias continuam castigando sobretudo os mais pobres

Por: Anamaria Nascimento

Publicado em: 04/06/2017 14:47 Atualizado em: 04/06/2017 15:15

Moradores de Palmares disputam comida na lama após enchente. Foto: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo.
Moradores de Palmares disputam comida na lama após enchente. Foto: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo.
Pernambuco voltou a enfrentar o pesadelo de uma grande enchente. Sete anos depois, os moradores da Mata Sul revivem o drama de 2010, quando inundações devastaram 68 municípios da região, destruindo casas, escolas, pontes e hospitais, deixando cerca de 80 mil pessoas desalojadas. Este ano, já são quase 45 mil pessoas atingidas pela cheia: 42.145 desalojados, que deixaram as residências, e 2.656 desabrigados, que perderam as casas.     

Além dos estragos no interior, as chuvas causaram transtornos na Região Metropolitana do Recife. Na capital pernambucana, foram registradas as mortes de um adolescente de 14 anos e de uma mulher de 37. Os óbitos aconteceram no bairro de Dois Unidos, após um deslizamento de barreira. As outras quatro mortes foram registradas no Agreste pernambucano. A última foi confirmada ontem, quando o corpo de Zenilda Maria Damasceno, 48 anos, que estava desaparecida desde o dia 27, foi encontrado sob a Ponte Irmã Jerônima, no Riachão, em Caruaru. 

Fatalidades como essas se repetem séculos após séculos. Em 1632, houve a primeira enchente oficialmente registrada no estado, com com a “perda de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do (Rio) Capibaribe”. Seis anos depois, Maurício de Nassau mandou construir o Dique de Afogados, a primeira barragem no leito do Capibaribe para evitar as inundações constantes. Nos séculos 18, 19 e 20, novas enchentes voltaram a acontecer. Chegamos a 2017, e nada mudou. 

Depois da cheia de 1975 no Recife, acompanhada do boato de que a Barragem de Tapacurá teria estourado e as águas invadiriam a capital, outras barragens foram construídas para atender a Região Metropolitana do Recife. Por outro lado, no interior, a solução esperada para o problema das enchentes - um “cinturão” de cinco barragens para conter a água - não saiu completamente do papel. Prometida após a cheia de 2010, a construção dos reservatórios não foi concluída. Apenas a Barragem de Serro Azul, em Palmares, ficou pronta. As obras foram concluídas em dezembro de 2016. O reservatório foi construído no município de Palmares, após as enchentes de 2010. Com capacidade para acumular 303 milhões de metros cúbicos de água, pode abastecer dez municípios, entre eles Palmares, Água Preta e Barreiros. As outras obras, das barragens de Gatos, Igarapeba, Barra de Guabiraba e Panelas, estão paradas. Se soluções definitivas para o problema não forem implementadas, o estado vai continuar convivendo com os transtornos causados pela chuva nos próximos anos. 

Sobre o fato de quatro das cinco barragens iniciadas para formar o “cinturão” de controle das águas da Mata Sul e Agreste não terem ficado prontas, o governo do estado respondeu que investiu cerca de R$ 400 milhões de 2011 até o presente, e o governo federal cerca de R$ 350 milhões, considerando os investimentos em ações de controle de cheia, não somente na construção das barragens, mas em obras complementares, como dragagem dos rios, desapropriações, projetos e compensações ambientais. “Considerando que o investimento maior ocorreu na conclusão da barragem de Serro Azul, é importante ressaltar que a mesma reteve até o momento 80 milhões de metros cúbicos de água, percentual estimado em 40% do volume que chegou às cidades atingidas, que evitou que se repetisse a catástrofe de 2010”, informou o governo do estado por nota.

Uma história de destruição que insiste em se reeditar

O rastro de destruição causado pela forte chuva que caiu em Pernambuco no último fim de semana não se justifica apenas pela força da natureza. A forma como os mananciais, aterrados ao longo dos séculos, foram tratados e a ausência de obras importantes para conter o avanço da água podem explicar a tragédia. Inundações não são um fenômeno novo no estado. A partir da leitura de documentos históricos, é possível perceber que o problema se repete ano após ano ao longo dos séculos.

A primeira enchente registrada oficialmente no Recife aconteceu em 1632. Séculos depois, em 1966, uma grande enchente atingiu o estado. Pontes e barreiras não resistiram à força das chuvas. Na capital e no interior, 175 pessoas morreram e mais de 10 mil ficaram desabrigadas. “Está o Nordeste outra vez a braços com a calamidade pública: quando não é a seca, que expulsa os sertanejos de seus humildes lares, é a cheia que invade e destrói tudo na zona da mata”, publicou o Diario, em 19 de março de 1967, um domingo. Quase dez anos depois, a cheia histórica de 1975 foi registrada no Recife, seguida de um boato de que a barragem de Tapacurá havia estourado, e as águas iam invadir a  cidade. 

O arquiteto e urbanista José Luiz de Menezes explica que as razões para as cheias no Recife e no interior são distintas. Na capital pernambucana, o acúmulo de água nas ruas e avenidas se dá principalmente por razões naturais, que se somam a fatores humanos. As inundações, segundo o pesquisador, acontecem por causa da junção da maré alta com vários pontos da cidade abaixo da linha do mar. “Originalmente, o Recife era uma grande várzea, com pouca terra seca. A natureza é equilibrada, mas as construções foram desordenadas sobre a área molhada. Não dá para colocar a culpa apenas na chuva”, esclareceu. 
 

Em 1855, o presidente da Comissão de Higiene Pública, Joaquim D’Aquino Fonseca, já lamentava, no relatório “Bases para um plano de edificação da cidade”, a extinção dos “mangues e pântanos” que se estendiam de Olinda ao Rosarinho, de Afogados a Piranga, e eram escoadouro natural das águas da chuvas. O documento foi publicado na edição do dia 28 de agosto de 1855 do Diario de Pernambuco. No começo do século 20, uma imagem de uma enchente do Rio Capibaribe, no bairro da Madalena, foi transformada em cartão-postal, tão frequente a cena era na cidade.   

No interior do estado, segundo José Luiz de Menezes, fatores sociais são mais  decisivos que os físicos para as tragédias. Naturalmente, os rios alargam para crescer, mas as construções foram erguidas muito próximas às áreas que os mananciais precisam para expandir, e as enchentes acabam afetando as pessoas. “Os rios têm por tendência natural, ao acumularem água, alargar. Eles expandem, como se fosse uma onda marítima, com velocidade da gravidade. Isso não é novidade e pode ser controlado com a construção de barragens, mas, infelizmente, os reservatórios programados para essas regiões frequentemente atingidas não ficaram prontos”, explicou. 

Mesmo sem a construção de barragens, pontua José Luiz de Menezes, é possível minimizar as consequências das chuvas. “Se houvesse vontade política, bastaria retirar e conduzir as pessoas que vivem em áreas ribeirinhas para pontos mais altos das cidades. No entanto, o que se percebe, ao longo dos anos, é que são dadas soluções imediatas ao problema, como entrega de donativos e reconstrução precária das cidades. Depois, a questão é esquecida. Pelo menos até a próxima enchente”, afirmou.  

Atenção no Gabinete de Crise

No lugar de taças e louças, computadores e planilhas. O Salão de Banquetes do Palácio do Campo das Princesas se transformou no Gabinete Central de Crise, de onde saem decisões e ordens em relação às cidades atingidas pela enchente. O Diario acompanhou parte de uma tarde no escritório estadual para saber como o governo do estado tem enfrentado a situação de emergência nos municípios do interior. 

Enfileiradas, as mesas dispostas no amplo salão são ocupadas por servidores de diferentes órgãos. No mesmo ambiente, é possível ver bombeiros, funcionários da Agência de Águas e Clima (Apac), gestores da Coordenadoria de Defesa Civil e policiais atendendo ligações, criando planilhas e coordenando ações de atendimento às vítimas da enchente. Também estão presentes autoridades das Forças Armadas, como Marinha, Exército e Aeronáutica. 

O trabalho no gabinete começa por volta das 7h e termina de madrugada, por volta das 2h do dia seguinte. Diariamente, os ocupantes do salão no Palácio do Campo das Princesas recebem informações vindas dos 14 escritórios locais vinculados ao gabinete central, que foram montados em cidades afetadas pela cheia, como Água Preta, Amaraji, Palmares, Ribeirão, Rio Formoso e São Benedito do Sul. 

O objetivo da criação da força-tarefa é, de acordo com o governo do estado, facilitar os trâmites para que as respostas dos órgãos sejam dadas de maneira mais eficaz. “Aqui, concentramos esforços para diminuir o tempo de resposta. Por exemplo, decidimos aonde e a que horas uma aeronave vai pousar, quem vai receber o material levado nela, o local onde esse material será guardado e quem vai distribuir o que chegou. Temos nesta sala, pessoas da Controladoria e Procuradoria Geral do Estado. Juntos, procuramos uma melhor forma de resolver trâmites legais. Com isso, eu diria que, no mínimo, encurtamos para um dia um período de 45 dias”, afirmou o coordenador de Defesa Civil do estado, tenente-coronel Luiz Augusto França.  

Solidariedade como doação

O drama das famílias que viram a força da água levar tudo o que tinham fez crescer uma onda de solidariedade entre os pernambucanos. De várias cidades do estado, caminhões seguiam lotados de doações para o interior. Roupas, alimentos, água, colchões e até móveis foram doados por pessoas sensibilizadas com as histórias de quem, do dia para a noite, não tinha mais nada. As imagens de moradores das cidades atingidas lutando por comida na lama fez o voluntariado aumentar ainda maisO drama das famílias que viram a força da água levar tudo o que tinham fez crescer uma onda de solidariedade entre os pernambucanos. De várias cidades do estado, caminhões seguiam lotados de doações para o interior. Roupas, alimentos, água, colchões e até móveis foram doados por pessoas sensibilizadas com as histórias de quem, do dia para a noite, não tinha mais nada.

As imagens de moradores das cidades atingidas lutando por comida na lama fez o voluntariado aumentar ainda mais. Só na ONG Novo Jeito, mais de 20 pessoas se revezavam para fazer a triagem dos donativos deixados por moradores de todas as partes do Recife. Eles recebiam de caminhões lotados de doações de empresários até a entrega de um pacote de macarrão doado por uma senhora que saiu de ônibus de casa só para contribuir. 

A dona de casa Elzanira da Silva, 52 anos, era uma das voluntárias na separação de roupas. Ela conhece bem a dor dos moradores da Mata Sul. Viveu, em fevereiro do ano passado, um incêndio na Vila Santa Luzia, bairro da Torre, Zona Oeste do Recife. Moradores da comunidade perderam casas inteiras para as chamas e foram ajudadas por voluntários. “Conheci esse trabalho de doação quando recebemos lá na comunidade. Agora, é a minha vez de retribuir, ajudando essas pessoas que estão sofrendo. Vi a luta das pessoas pelo que passou na TV e no jornal e imediatamente vim ajudar”, disse a voluntária que fica das 12h às 21h ajudando a separar as peças de roupas que serão doadas. 

Quando viu a convocação por voluntários pelas redes sociais, a universitária Rebecca Dantas, 21, deixou tudo o que tinha para fazer e seguiu, com a mãe, para um ponto de coleta de donativos para ajudar. “Estudo arquitetura e aprendo nas aulas sobre como a forma como as cidades são construídas influencia na vida das pessoas, sobre como as águas se comportam e sobre a importância do planejamento urbano. Nessas horas, porém, a teoria apenas não basta. Quis fazer algo na prática”, disse, ao lado da mãe, a administradora Luci Alves, 53. 

O mesmo fez o motorista Flávio Ferreira, de 24 anos. Ele já é voluntário da ONG Novo Jeito e, ao ver a convocação para ajudar as vítimas da enchente, passou a dedicar o tempo ao recolhimento de donativos. “Quando começei a trabalhar como voluntário nessas ações, percebi que mais recebo o bem do que dou. Eu sentia necessidade de ocupar meu tempo vago fazendo algo relevante e encontrei aqui”, disse. “Além da entrega de alimentos, água, material de limpeza, esse tipo de  doação, do tempo, é muito importante. Essa é a maior mobilização em uma tragédia na Novo Jeito, que nasceu durante a enchente de 2010. Naquele ano, um grupo de amigos se juntou para arrecadas as doações”, afirmou a conselheira da ONG, Návila Alencastro.      


 


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