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Arquitetura Recife e Olinda formam o terceiro maior núcleo de influência portuguesa do país Levantamento sobre o patrimônio de influência portuguesa revelou que o Recife é a terceira capital brasileira em exemplares do urbanismo ultramarino português

Por: Alice de Souza - Diario de Pernambuco

Por: Anamaria Nascimento

Publicado em: 06/05/2017 10:00 Atualizado em: 06/05/2017 10:27


As cidades irmãs Recife e Olinda formam o terceiro núcleo de influência portuguesa do Brasil. Foto: Roberto Ramos/DP.
As cidades irmãs Recife e Olinda formam o terceiro núcleo de influência portuguesa do Brasil. Foto: Roberto Ramos/DP.
A cidade é fruto das transformações e impacto da soma das épocas. A duas décadas de completarem 500 anos, o Recife e Olinda vivenciam o desafio de olhar para o seu passado mais longínquo em busca da preservação. Capitaneadas pelos portugueses desde a sua origem até a época da independência, salvo o período de ocupação holandesa (1630 a 1654), as cidades ainda hoje são detentoras de um dos maiores patrimônios lusitanos do país. As transformações urbanas e a burocracia nos processos de conservação dos monumentos podem, entretanto, acelerar o sumiço dessa história.

Capital pernambucana com forte presença lusitana

Entrevista: 'A maior parte (dos bens religiosos de influência portuguesa) está comprometida'

Um levantamento sobre o patrimônio de influência portuguesa feito pela  Fundação Calouste Gulbenkian, sediada em Lisboa, revelou que o Recife é a terceira capital brasileira em quantidade de exemplares do urbanismo ultramarino português. São 19 edificações nas arquiteturas religiosa, militar e habitacional. Entre elas estão as igrejas de Nossa Senhora do Carmo e Matriz da Boa Vista; os fortes das Cincos Pontas e do Brum além das casas pertencentes à Igreja da Madre de Deus. Se forem somados os imóveis de influência portuguesa de Olinda, o número sobe para 45 exemplares.

O conjunto urbanístico e arquitetônico de Olinda e Recife fica atrás apenas do patrimônio de origem portuguesa encontrado nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro, que foram capitais da colônia e somam 69 e 49 exemplares, respectivamente. De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), durante o período do Brasil Colônia, destacaram-se três núcleos urbanos no litoral: Pernambuco (Olinda e Recife), do qual fazia parte Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte; Maranhão e Grão-Pará (Alcântara e São Luís); e a Bahia, capital da administração e da fé colonial.

“O legado cultural foi construído a partir da riqueza acumulada com vantagens oferecidas pela localização geográfica à exportação de algodão, cana-de-açúcar e outros produtos. Entretanto, a riqueza de Recife - principal cidade da capitania de Pernambuco e conhecida em todo o mundo comercial da época - despertou a cobiça dos holandeses que invadiram e ocuparam a cidade durante 24 anos”, ressalta o Iphan.


No Recife, os bairros de São José, Santo Antônio e Boa Vista ainda mantêm um traçado urbano, mesmo que modificado, que remete à época portuguesa. Já o Bairro do Recife, apesar de ter sido berço do surgimento da cidade, perdeu essa influência tanto nos prédios quanto na disposição dos quarteirões. Sobretudo a partir de 1910, com as demolições de imóveis e monumentos para a abertura das avenidas que cortam a ilha. Poucas ruas guardam o desenho antigo, como a do Bom Jesus.

Segundo o Instituto, não é possível dimensionar qual a porcentagem do patrimônio colonial português que se perdeu ao longo do tempo, em todo o Brasil. Até janeiro de 2017, existiam 87 conjuntos urbanos protegidos, sendo  67 tombados, três tombamentos provisórios, 14 rerratificações, um tombamento emergencial, dois anexados (destes dois, um tombado e um tombamento provisório).

Raros sobreviventes de uma era
Azulejo português original é mantido na fachada da Academia Pernambucana de Letras. Foto: Ricardo Fernandes/DP.
Azulejo português original é mantido na fachada da Academia Pernambucana de Letras. Foto: Ricardo Fernandes/DP.

Do Recife colonial ocupado por portugueses, que imprimiram a marca lusitana na cultura e no patrimônio da capitania mais próspera do território brasileiro, Pernambuco, pouco restou. Depois da perda de boa parte do casario da época, os remanescentes mais significativos da arquitetura dos séculos 16 e 17 e 18 igrejas e fortes construídos ou aprimorados pelos colonizadores, ainda podem ser perdidos. Falta conservação e política mais efetiva de preservação dos bens de influência portuguesa, sob o risco de apagar de vez a assinatura lusa nas edificações pernambucanas.

A arquitetura civil portuguesa foi a primeira a se esvair com o tempo. Do casario marcado pelo apuro no acabamento, restaram poucos exemplares. O imóvel onde hoje funciona a Academia Pernambucana de Letras (APL), no bairro das Graças, é uma referência desse legado. O prédio conserva traços originais, como os azulejos azul e branco que ostenta na fachada. “Eles foram colocados pelo Barão Rodrigues Mendes, quando construiu o solar, no século 19”, explica a presidente da APL, Margarida Cantarelli.

O bom exemplo, no entanto, não é do período colonial e é uma exceção. “Da arquitetura portuguesa, o que sobrou de mais palpável são as igrejas dos séculos 16, 17 e 18 e os fortes, isto é, as arquiteturas militar e religiosa. Porque as outras edificações não eram tão estáveis e sólidas. Muito acabou se perdendo ou foi reconstruído, como a arquitetura civil (casario), que é mais frágil”, pontua o arquiteto, urbanista e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Cristiano Borba.

É que no decorrer do tempo, explica o arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes, a arquitetura civil se modifica ao gosto das diferentes gerações. “Não moramos em nenhuma casa que podemos dizer que é original, porque no interior há fogão a gás, pintura moderna, mobiliário moderno. A arquitetura vai se alterando em função do uso que fazemos dela”, ressalta.

Mais resistentes ao passar do tempo, as igrejas e os fortes acabaram se tornando exemplos mais fiéis da arquitetura colonial. “Os nossos fortes, embora muitos deles tenham sido elaborados por holandeses na época da ocupação, são exemplos de edificações que ainda se mantêm (do patrimônio português), pois houve a retomada portuguesa e um aprimoramento deles. O Forte das Cinco Pontas, por exemplo, foi refeito com o máximo de tecnologia militar da época”, enfatiza Borba.

A influência lusitana nos templos religiosos erguidos em Pernambuco fica clara na Capela Dourada, no bairro de Santo Antônio, onde vitral, templo, colunas e pinturas foram trazidas de Lisboa. “O barroco (presente na Capela Dourada) retrata a economia de uma época. Apesar de ele ter surgido na Europa, foram os portugueses que o trouxeram para cá, então é uma herança”, enfatiza o professor e mestre em administração de patrimônio histórico artístico cultural barroco, Daciel Santos.

Ao lado da Capela Dourada, o Convento de Santo Antônio também guarda um “tesouro” original da época colonial: paredes cobertas com azulejos portugueses trazidos de além-mar e que retraram passagens bíblicas do Antigo Testamento. “As ordens religiosas tinham uma ligação muito forte com Portugal. As técnicas de corte de pedra, de entalhe, eram muito portuguesas”, explica Cristiano Borba.

Patrimônio religioso deteriorado
Igreja de São José é exemplo de patrimônio religioso de referência portuguesa que está com estrutura comprometida. Foto: Karina Morais/Esp.DP.
Igreja de São José é exemplo de patrimônio religioso de referência portuguesa que está com estrutura comprometida. Foto: Karina Morais/Esp.DP.

Embora tenham perdido a função original ao longo dos séculos, os fortes foram ressignificados no contexto urbano, tornando-se espaço de apreciação e fomento cultural. O mesmo não aconteceu com as igrejas. A situação atual dos templos de influência lusitana, lamenta o presidente da Comissão Arquidiocesana de Pastoral para Cultura, Frei Rinaldo Santos, é crítica. “Esse acervo, em sua maioria, está bastante comprometido. A estrutura das edificações precisa de intervenção.”

Uma das mais procuradas para realização de casamentos na cidade, a Igreja Madre de Deus amarga comprometimento na estrutura do telhado. O problema é comum a maioria dos templos, denuncia estudo encomendado pela arquidiocese e realizado com apoio de drones. A Igreja de São José, cujo restauro está atrelado à execução do projeto Novo Recife, aguarda com teto caído a resolução do imbróglio. “Em parte da Boa Vista, perto da Rua Velha, os casarios estão todos caindo. São justamente de influência portuguesa”, elenca o professor da graduação e pós-graduação em História da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Flávio Cabral.  

Em Olinda, a Igreja do Bonfim é um símbolo do descaso. Fechada há mais de quatro anos, com torre ameaçando desabar, está à mercê da burocracia. Segundo a Secretaria de Patrimônio e Cultura de Olinda, o atraso no início da obra ocorreu porque o Tribunal de Contas do Estado (TCE) solicitou uma adequação na planilha de gastos. “A alteração já foi feita e encaminhada para a Comissão de Licitações da Prefeitura de Olinda. Após um parecer positivo, será assinada a ordem de serviço para início da intervenção", explicou, em nota, o órgão. A ordem de serviço foi assinada na última quinta-feira. A recuperação deve durar 450 dias.

No Recife, as Igrejas do Santíssimo Sacramento (Matriz de Santo Antônio) e Conceição dos Militares são como oásis. Estão em obras, com recursos do PAC Cidades Históricas. A diretoria do PAC Cidades Históricas, junto ao Iphan, não trabalha com prazos fixos para a finalização das ações. O desafio, contudo, é manter a autossustentabilidade desses espaços, finalizando um ciclo vicioso de reparos e dificuldades de manutenção da estrutura. O caminho, defendem os especialistas, é enxergar esses monumentos como espaços culturais e não apenas de finalidade religiosa.

Para o Iphan, a ameaça ao legado histórico passa pela especulação imobiliária, que desrespeita a memória e tradições do processo de formação da identidade cultural. O órgão defende a educação patrimonial como ferramenta para despertar a identidade e o sentido de pertencimento, necessários para a percepção do valor cultural dos patrimônios a serem salvaguardados. Outros entraves são a escassez de recursos e a falta de informação dos proprietários dos bens tombados.

Legado de Delfim Amorim corre risco
Edifício Acaiaca, em Boa Viagem, é exemplo de conservação da obra do português Delfim Amorim. Foto: Peu Ricardo/Esp. DP.
Edifício Acaiaca, em Boa Viagem, é exemplo de conservação da obra do português Delfim Amorim. Foto: Peu Ricardo/Esp. DP.

Não foi só no passado colonial que a arquitetura portuguesa imprimiu suas marcas no Recife. Depois de investir no “afrancesamento”, adornando edificações ao longo do século 19, o modernismo do início do século 20 marcou a retomada do interesse pelas tradições coloniais e também o reencontro entre projetos e conceitos de lusitanos e brasileiros. Essa retroalimentação que ocorre até hoje, com a influência do arquiteto português Álvaro Siza sobre escritórios contemporâneos locais, teve como um dos grandes exponentes o português Delfim Amorim.

Filho da Escola do Porto, ele formou uma geração de profissionais e deixou edificações ícones no Recife. O desafio também reside em preservar esse legado. Amorim chegou ao Recife em 1951 e tornou-se professor no curso de arquitetura da Escola de Belas Artes e da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Recife, atual UFPE. “Uma característica da arquitetura portuguesa é uma economia de meios. É tirar o máximo de expressão tanto espacial como plástica com o mínimo de recursos. Amorim fez isso nos projetos dele. Claro que tendo diálogo com a influência de Lúcio Costa, da escola carioca”, lembra o arquiteto e urbanista da Fundação Joaquim Nabuco Cristiano Borba.

O professor do departamento de Arquitetura da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Aristóteles Cantalice II destaca ainda o respeito de Amorim pela tradição. “Certamente esse respeito sofre influências da própria cultura portuguesa, profundamente tradicional, que o Amorim esteve imerso antes de vir para o Brasil. Em Pernambuco, ele vem a projetar alinhando a tradição de morar brasileira com a modernidade.”

São obras do português Delfim, o Edifício Barão do Rio Branco, projeto de 1965 em parceria com o arquiteto Heitor Maia Neto, e o Edifício Acaiaca, de 1957, com Lúcio Estelita. Os dois fazem parte da lista de Imóveis Especiais de Preservação (IEPs) do município, mas boa parte dos projetos não está salvaguardada pela legislação e é vítima da ação de intervenções e descaracterizações. Um exemplo é o prédio da Associação de Imprensa de Pernambuco (AIP). O edifício Pirapama, na Boa Vista, por sua vez, está com os elementos mal conservados. “A falta de sensibilidade da sociedade para o reconhecimento de um patrimônio recente, assim como a forte especulação imobiliária, contribuem paulatinamente para a perda de um trecho de nossa história”, opina Cantalice II.

As residências projetadas pelo arquiteto também foram destruídas, em sua maioria. Na visão da professora de arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Guilah Naslavsky, elas lembram de alguma forma a arquitetura do passado colonial. “É uma arquitetura que veio de Portugal adaptada ao clima tropical. Casas com escalas muito humanas, proteção, circulação de ar, proteção do calor”, conta.

Neste ano, Delfim Amorim completaria 100 anos. Em celebração do seu centenário, desde o último dia 2 até o próximo dia 31 de maio ocorre a exposição “Delfim Amorim em casa”, em Póvoa do Varzim, cidade onde ele nasceu, no norte de Portugal.

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