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Vida Urbana

Solidariedade em vez de briga judicial

Casal tenta, através da internet, arrecadar R$ 3 milhões para o filho. Em 15 dias, saldo chegou a R$ 380 mil

Publicado: 02/04/2017 às 18:47

Os servidores públicos Gabriel Fernandes, 35 anos, e Taciana Spinelli, 34, falam com propriedade sobre a AME. Há pouco mais de um ano, sequer sabiam da existência dela. Foram obrigados a aprender pela necessidade. O segundo filho do casal, Daniel, nasceu com AME tipo 1, considerado o mais grave. Desde então, acreditam com toda a força ser possível arrecadar R$ 3 milhões em três meses.

A família lançou a coleta em uma plataforma online. A meta é custear o primeiro ano de tratamento de Daniel. A campanha divide espaço entre as mais procuradas do website Vakinha. A maioria das ações mais visualizadas é de crianças com AME. O menino Joaquim, de Ribeirão Preto (SP) virou símbolo depois de atingir os R$ 3 milhões. Em Pernambuco, são cinco famílias encabeçando pedidos. Em 15 dias, a Vakinha de Daniel mobilizou de desconhecidos a atletas olímpicos. A arrecadação chega a R$ 440 mil.

O diagnóstico chegou por volta dos três meses de vida. Os pais levaram o garoto ao médico depois de comparar o movimento da cabeça da criança com o comportamento do filho mais velho, na mesma época. “Vejo aqui uma hipotonia global importante”, disse a médica. De imediato, Gabriel desabou em choro.

A primeira pesquisa na internet trouxe um prognóstico trágico e falacioso: o menino não passaria do primeiro ano de vida. Em 5 de março, quebrou essa barreira. “A gente não conhece a realidade das pessoas com deficiência, não sabe o que as pessoas passam. Quando começamos a peregrinação, passamos a ver como é difícil”, afirma Gabriel.

De tanto pesquisar, a família tomou conhecimento dos estudos sobre o Spinraza (Nusinersena). Os parentes ficaram esperançosos, mas o valor da medicação despertou receio. “Muitas pessoas ajudavam a de forma espontânea. Não havíamos precisado pedir nada”, lembra Taciana. O casal precisou lidar com as dúvidas internas, mas decidiu apostar na campanha depois de sentir a força da solidariedade. Em dezembro, amigos bancaram de surpresa a compra de uma cadeira especial para o bebê.

Além de lidar com a rotina de terapias, a família incorporou às atividades responder mensagens agradecendo as doações e acompanhar o contador girando. “Não estamos preparados para perder um filho, por mais grave que seja a situação. A energia positiva é o mais importante”, diz Taciana. Gravado na parede da sala da família está o excerto do livro O pequeno príncipe (Saint-Exupéry) que lembra, como mantra, que o essencial é invisível aos olhos.

A corrida milionária pela vida  

Pense rápido. O que você faria com R$ 3 milhões no bolso? Enquanto o sonho de muita gente é a aquisição de bens materiais, Taciana, Gabriel e Laís salvariam a vida dos filhos. Assim como eles, dezenas de famílias brasileiras iniciaram uma corrida milionária para comprar o que parte da população tem à vontade: saúde. Esse é o custo inicial do primeiro tratamento medicamentoso que promete frear a progressão da Atrofia Muscular Espinhal (AME), segunda desordem genética que mais mata crianças em todo o mundo.

Em Pernambuco, mães e pais contam com a solidariedade alheia, por meio de campanhas online de doação financeira, para custear a importação do medicamento Spinraza, fabricado nos Estados Unidos, que custa R$ 393 mil a dose. O movimento aquece o debate sobre as barreiras na obtenção de medicamentos para doenças raras no país. O Diario conta, nesta edição, a luta de famílias de crianças com AME e outras condições raras.

Dois exemplos de uma luta contínua

s fotos das crianças com AME se multiplicam na internet e tornam públicos dramas particulares. As redes sociais amplificaram o poder de conexão da solidariedade alheia, mas o lançamento de campanhas para fomentar tratamentos médicos não é de hoje. Em Pernambuco, os casos de Yoko Farias Sugimoto e Clarinha tornaram-se emblemáticos. As duas arrecadaram cerca de R$ 100 mil e realizaram, na China, um tratamento com células-tronco.

Yoko, hoje com 33 anos, ficou tetraplégica em julho de 2004, depois de sofrer um acidente na cama elástica de um shopping, onde trabalhava. Em 2010, ela iniciou uma campanha incentivada pelos amigos para juntar dinheiro e fazer um procedimento proibido no Brasil. Foram oito meses de mobilização, com bingos, venda de objetos e divulgação no ainda incipiente mundo digital social. Yoko viajou para a cidade de Shijiazhuang, onde realizou o tratamento na Beiki Biotech.

“Tive melhoras na sensibilidade do meu braço esquerdo, no meu tronco, mas não consegui reverter a tetraplegia. Apesar disso, não me arrependo. Era uma pontinha de esperança que eu tinha. Faria de novo quantas vezes fosse preciso”, diz ela, que deixou de trabalhar pela dificuldade de mobilidade no Recife. Há um ano, com a morte dos parentes mais próximos, a vida de Yoko tornou-se mais difícil. São os amigos que pagam o plano de saúde dela e outras despesas pessoais. Neste ano, ela descobriu um derrame pleural, depois de cair da cama, e está internada no Hospital Santa Joana Recife. Ela nunca foi indenizada pelo acidente. As ajudas seguem sendo bem-vindas, através da conta corrente 8640-1, da agência 3056-2 do Banco do Brasi.

Yoko decidiu tentar a campanha inspirada pelo movimento “Um real por um sonho”, lançado em 2008 pelos pais de Clarinha. A criança diagnosticada com paralisia cerebral atetoide mobilizou números expressivos até conseguir viajar a Guangzhou, no sul chinês. Mais de 130 mil visitas ao site montado para a campanha, duas mil camisas vendidas e doações anônimas. Com o tratamento, apresentou melhoras.

Aquele foi o primeiro passo de uma história surpreendente. Carlos Pereira, pai da Clarinha, criou um software para se comunicar com ela. O Livox (Liberdade em voz) usa imagens para facilitar a comunicação de pessoas com dificuldade ou ausência da fala. O sistema é utilizado por mais de cinco mil pessoas e foi vencedor do World Summit Mobile Award (WSA Mobile), na categoria melhor aplicativo de inclusão social do mundo. Clarinha tem 9 anos e vive com a família nos Estados Unidos.
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