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Crianças veem o Recife como uma cidade hostil e perigosa para infância

Psicóloga realizou a pesquisa sobre o tema durante o programa de pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE

Publicado: 25/01/2017 às 17:21

“Somente por meio da educação em direitos humanos podemos edificar escolas e cidades para pessoas, e não o contrário”. Foi o que apontou a pesquisa da psicóloga Kátia Assad, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco, intitulada “Concepções de crianças acerca do exercício de sua cidadania na cidade do Recife”. Orientada pela professora Celma Tavares, a dissertação de mestrado mostrou que, na visão das próprias crianças, o Recife não consegue proteger e defender seus direitos, além de ser uma cidade hostil e perigosa para a infância.

O estudo foi realizado com a participação de 19 crianças, de 9 a 11 anos, que estudavam em duas escolas municipais localizadas em um bairro do Recife, onde há duas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) e possui as menores taxas de alfabetização da população de dez anos e mais. Para preservar o anonimato das instituições, alunos e funcionários, a pesquisadora identificou as escolas como Escola da Avenida e Escola da Comunidade, levando em consideração que esta última conta com a atuação da ONG AdoleScer, que promove atividades baseadas em valores humanos como paz, amor e verdade para as crianças e adolescentes da comunidade.

Violência, discriminação social, racial e religiosa, direitos da criança, além das dimensões da cidade real, ideal e possível foram alguns dos temas discutidos nos encontros com as crianças que aconteciam em média duas vezes por semana, nas escolas selecionadas. Para a pesquisadora Kátia Assad, esse contato direto com as crianças foi  o ponto mais enriquecedor do estudo, pois permitiu que ela pudesse identificar limitações na condição de pesquisadora e de profissional, ideias pré-concebidas que não colaboravam para a interação com as crianças e a necessidade de aprimorar seus métodos.

De acordo com a pesquisa, palavras de afeto e pertencimento não foram expressas pelas crianças, o que evidencia um distanciamento em relação à cidade. Nesse cenário, tanto a urbanização, que historicamente segrega, como o isolamento provocado, entre outros motivos, pela forma como as crianças estão cada vez mais cercadas pelos muros e paredes das casas e escolas acabam por desperdiçar o potencial educativo que a cidade pode oferecer. “Se a criança não vive a cidade, não ocupa o espaço público, fica muito difícil sentir-se parte dela e chegar a amá-la”, afirma.

Ainda nesse sentido, os conhecimentos das crianças sobre a cidade (história, geografia, turismo, por exemplo) revelaram que as vivências delas muitas vezes estão restritas aos ambientes próximos à escola e à casa. Além disso, a autora também observou que as crianças normalmente buscavam referências de outras cidades, nacionais e internacionais, para falar sobre pontos turísticos e atividades de lazer, não levando em conta nem o Recife e nem os problemas existentes em outros locais. “Acredito que a família, a escola e o próprio poder público apresentam estas outras cidades às crianças não de forma crítica ou contextualizada, mas como ‘cidades vitrine’, nas quais apenas os aspectos relevantes para o turismo e consumo são levados em conta”, pontua Kátia Assad.

DIREITOS | A pesquisa também mostrou que algumas crianças reconheciam alguns de seus próprios direitos e entre os que consideravam mais importante estavam os direitos de não trabalhar, à moradia, à inviolabilidade do lar, à alimentação e à expressão. Porém, de maneira geral, no que diz respeito à participação na dinâmica da cidade, as crianças responsabilizavam-se apenas por algumas questões ambientais, como jogar lixo no chão. Então, a partir do ponto de vista das crianças, o estudo define a cidadania brasileira como sendo feita de “contradições desconcertantes: liberdade e confinamento, acesso e segregação, opinião e emudecimento, diversidade e enrijecimento, garantia e violação”.

Para a pesquisadora, entre outras razões, as crianças não conseguem exercer plenamente sua cidadania pelo fato de que muitas vezes são vistas como pessoas imaturas, incapazes de opinar e decidir por elas mesmas. “O exercício da cidadania ativa se dá no presente, respeitando-se o fato que as crianças são capazes de participar sobre o planejamento e a concepção das cidades onde vivem, que elas têm muito a dizer e contribuir como conhecedoras de sua própria realidade e que a cidadania só se estrutura a partir da ação e participação dos sujeitos”, explica a autora da pesquisa. Ela também destaca a importância da valorização das crianças como sujeitos aptos a participar em condições de igualdade como qualquer outro cidadão, seja em pesquisas acadêmicas ou no planejamento de sua cidade.

Como indica o estudo, a Educação em Direitos Humanos (EDH) é, portanto, um meio de garantir o exercício da cidadania para as crianças, uma vez que a EDH está intrínseca à formação cidadã e atua na maneira de pensar e no modo de agir na organização da sociedade. Assim, de maneira prática, seria importante promover o debate, discussão e participação dos estudantes não apenas nas escolas, mas também na vida cotidiana das crianças.

“Seja formal ou não formal, os princípios da Educação em Direitos Humanos se aproximam demasiadamente da aprendizagem urbana. Quando ambas são vivenciadas de forma integral, por meio de processos contínuos e multidimensionais, e não apenas pontuais, faz-se possível aproximar as crianças do sentido originário de cidade, que busca prover aos seus habitantes pertencimento, afetividade, coletividade, liberdade, justiça e autonomia”, conclui Kátia Assad.

Da Universidade Federal de Pernambuco
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