Religião Umbanda: a sabedoria que vem dos espíritos Religião de origem afro-brasileira, é regida por código moral se baseia na lei do retorno

Por: Ana Paula Neiva - Diário de Pernambuco

Publicado em: 19/12/2016 13:16 Atualizado em: 19/12/2016 14:19

Assim como na Igreja Católica, a Umbanda também tem seus santos. Fotos: Shilton Araújo/DP
Assim como na Igreja Católica, a Umbanda também tem seus santos. Fotos: Shilton Araújo/DP

O cheiro forte de defumador perfuma o salão. Em frente um altar, santos, velas e taças com água e cristais se misturam ao meio das oferendas. O som dos atabaques ecoa no ambiente, onde homens e mulheres vestidos de branco entoam cantos e exaltam guias e orixás. Evocam espíritos para que se manifestem e tragam orientações. Assim, funciona um ritual num terreiro de umbanda, religião de matriz africana, declarada por apenas 0,3% da população brasileira no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). No mesmo levantamento, em Pernambuco, somente 3.985 pessoas afirmaram ser umbandistas. Número que pode ser maior, diz a sacerdotisa Maria Celeste da Silva Costa, 77 anos, responsável pelo Templo Espiritualista Pai Oxoce, no bairro do Ipsep, na Zona Oeste do Recife. “Há um preconceito grande e muitos se dizem católicos, mas na verdade frequentam terreiros e não declaram ao recenseamento”, diz.

Há 50 anos comandando o terreiro, que é considerado o mais antigo do Nordeste, mãe Celeste, como é conhecida, não gosta muito do título. “Somos um povo simples e humilde, sem ostentação, preconceito de raça, cultura e religião. Adoramos a Deus, Cristo e o Divino Espírito Santo, só”, resume. Em seu templo espírita, faz atendimentos somente nas quartas-feiras e aos sábados, sempre às 20h. Segundo ela, atende pessoas de todas as classes sociais, mas principalmente as menos favorecidas. “Nosso objetivo é ajudar”, assegura.

Mãe Celeste mantém um templo há 50 anos no bairro do Ipsep. Foto: Shilton Araújo/Esp DP
Mãe Celeste mantém um templo há 50 anos no bairro do Ipsep. Foto: Shilton Araújo/Esp DP

A umbanda têm um código moral amplo, baseado na lei do retorno. É preciso fazer o bem para recebê-lo e evitar o mal para não sofrê-lo. Neste sentido, a relação entre o bem e o mal está muito vinculada a noção cristã, explica o historiador Edson de Omolu, que faz mestrado em Ciência da Religião na Universidade Católica de Pernambuco. Edson ressalta que essa ligação passa sempre pelo carma, plea responsabilidade e pelo livre arbítrio. “Você colhe tudo aquilo que planta. Nenhum terreiro existe em si para tratar o mal. É possível ter um padre corrupto, um pastor que abusa de fiéis e dentro da nossa religião também vamos ter pessoas que agem com má fé em nome da religião e não são religiosos de verdade”, justifica Edson, que também é sacerdote.

Sobre o uso de imagens católicas nos terreiros associados a Orixás, Edson explica: “Se você for num terreiro de Xambá tem imagem de santo católico. No terreiro de pai Oxoce também. Como um processo de resistência, de reelaboração, de hibridismo religioso. Na década de 70, porém, isso começou a ser rechaçado por alguns segmentos intelectuais do movimento negro, que aí colocam que o sincretismo não é mais necessário, que foi um processo imposto, um processo de máscara, em que o negro tinha que ocultar a sua religião. De fato, em sua origem, o sincretismo foi uma reação ao preconceito da própria Igreja, que impunha aos negros a sua religião. Até a República, a Igreja Católica e o estado caminhavam juntos. Então, dentro dessa lógica havia uma imposição por parte da igreja. Os próprios protestantes quando chegaram no Brasil foram muito perseguidos”, lembra.

A Umbanda é a síntese desse encontro cultural e religioso que foi a formação do povo brasileiro. “Quando se tem o elemento negro a partir dos orixás, do indígena, do caboclo e do católico cristão, relacionando aos santos e a defumação, que também é um ritual vivenciado na Igreja Católica”, compara Edson. O povo da umbanda enfrenta muito preconceito e tabus. Um deles está no ritual do sacrifício. “Não podemos negar que exista o sacrifício, mas nas religiões afros não se come animal que passe por sofrimento. Optamos por nos alimentar com animais criados nos terreiros ou em roças e viveiros e não aqueles industrializados”, comenta. Segundo Edson, a comida servida nos terreiros também tem sua função social, alimentando a comunidade vizinha. “Muitos dos templos ficam em áreas onde há famílias em vulnerabilidade social. Essas pessoas participam da obrigação e depois distribuimos a refeição. Muitas vezes, o único frango que ela comeu na semana foi o servido no terreiro”, diz.

Os animais consumidos pelos religiosos de matriz africana são criados nas roças e são sacralizados em rituais de fé. “Nesses casos, o animal ofertado não pode ser oriundo de cativeiro comuns às grandes empresas de vendas de aves e carne vermelha. Deve ser saudável e não ter sido criado sob tortura de hormônios. Ele é rezado, cantado e oferendado de maneira que não haja sofrimento, diferente do que ocorre em matadouros.  Cerca de 90% do animal sacrificado serve de alimento é ofertado para a comunidade religiosa. O que não serve de alimento é ofertado aos guias como gratidão e elemento de ligação. Muitos terreiros de Umbanda que são mais ligados às matrizes cristãs ou espíritas não praticam o sacrifício animal, mas ele é comum em casas com raízes mais africanistas".

POLÊMICA - Em fevereiro do próximo ano, o Superior Tribunal Federal (STF) deve julgar a lei que trata do sacrifício de animais em rituais religiosos de origem africanas. Na ação, o Ministério Público do Rio Grande do Sul tenta derrubar trecho de uma lei gaúcha que livra de punição por maus tratos a animais os cultos e liturgias das religiões de matriz afro que praticam sacrifícios. A lei foi aprovada em 2004 plea Assembleia Legislativa daquele estado com 32 votos a favor dois contrários. “O STF tem que dizer não e garantir a liberade do culto no artigo 5º da constituição”, defende o historiador Edson de Omolu, que alega que a proibição ao sacrifício nos cultos afro-brasileiros viola o princípio da laicidade do Estado, que obriga o respeito igualitário a todas as religiões, mas proíbe privilégios a qualquer uma delas. “O sacrifício animal está presente em outras religiões, entre judeus e muçulmanos, mas nós somos mais uma vez vítimas da discriminação”.

Fé sintetiza elementos
Da formação nacional


A umbanda sintetiza os componentes básicos da formação do povo brasileiro. Uma mistura de elementos de várias religiosidades, envolvendo africanos, índios e católicos. “O culto aos orixás vem dos africanos, mas o uso de instrumentos como chocalhos e adornos e da magia com fumaça e beberagem, dos índios; e dos católicos, a sincretização nos altares de orixás com imagens de santos. Ogum representado por São Jorge, que traduz a guerra e a luta por ideais. Oxalá por Jesus Cristo, a fé, espiritualidade e a paz”, explica o historiador Edson de Omolu.

Estudiosos da religião falam que os rituais de formação da umbanda eram praticados sob o nome de “macumbas”, havendo registros destas práticas de magia já no final do século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, a umbanda foi institucionalizada a partir do esforço de sacerdotes e intelectuais praticantes do culto. “A base do culto de umbanda foi trazida para o Brasil na época da escravidão, quando o negro não tinha liberdade para cultuar sua religião livremente. Tudo acontecia às escondidas. Se colocava o santo num otá, numa espécie de pedra sagrada, e este otá ficava dentro da imagem”, observa Edson.

A umbanda teria chegado ao país há 108 anos por meio do médium Zélio Fernandino de Moraes, apontado como fundador da religião no país, na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Ele sofria de paralisia e na busca pela cura da doença procurou um centro espírita, onde desenvolveu sua mediunidade. Ele incorporava o caboclo Sete Encruzilhadas, que não era aceito pelos espíritas. O que fez ele fundar a religião da umbanda.


Ligação com a religião
desde o nascimento

Edson de Omolu está na Umbanda desde que nasceu. Foto: Shilton Araújo/ESp DP
Edson de Omolu está na Umbanda desde que nasceu. Foto: Shilton Araújo/ESp DP

Edson de Omolu está na umbanda desde pequeno. Já nasceu dentro da religião não por escolha da família, mas por necessidade, como costuma dizer. A mãe teve uma gravidez muito complicada, ficou doente. “Fizeram um trabalho de baixa magia, e ela teve que recorrer a uma senhora, que está com 89 anos hoje, e  foi minha primeira madrinha de jurema. Depois que nasci, ela costumava me benzer, sou filho de Omolu, ou obaluaê, é um santo que está relacionado a cura e doença.... Ele me ensina que para agente conhecer o bem, é preciso passar por um pedaço ruim, pra valorizar o que temos de bom”, diz com orgulho.

Aos sete anos, Edson teve o corpo coberto por furúnculos. Foi quando sentiu a necessidade de escoar essa energia. Durante muito tempo, a família procurou abrigo no espiritismo cardesista. “Mas foi na umbanda que realmente me encontrei”, resume o sacerdote que é filho de Tata Raminho de Oxóssi, babalorixá da Roça Jeje Oxum Opara Oxossi Ibualama. Ele explica que todo sacerdote recebe a mediunidade, e é importante o desenvolvimento tanto incorporando como na vivência dos rituais. Em seu terreiro, em Águas Compridas, existem cerca 21 filhos de santo.

A partir do jogo de búzios, que é o oráculo divinatório das religiões de matriz africana, se descobre de qual santo a pessoa é filho. “O orixá é quem vai falar. Na realidade, é a força primordial que vai ligar a essa encarnação que você está vivendo. É importante a data de nascimento, mas ela não determina. O orixá vai imprimir a personalidade, biotipo, tipo físico, seus talentos profissionais, que área pode atuar. A gente tá aqui de passagem, de missão, não veio passar aqui para sempre”, comenta.
A cerimônia no terreiro precisa ser preparada. Antes do ritual, é realizada uma defumação. “Tem objetivo de atrair bons fluídos”, explica.

A musicalidade também é muito forte na umbanda. “A gente tem os chamados pontos cantados. No candomblé, temos as toadas, cantigas de santos. No caso, da umbanda, a maioria dos cantos são em português. Sempre reverenciando as forças da natureza”, explica o sacerdote.

Edson não acredita que umbandistas incorporam orixás. “Nos trabalhamos com espíritos que representam essa força e o orixá é uma força muito poderosa. Iemanjá é o próprio mar, Oxum é o rio, Iansã, que é a regente da nossa  casa, é o vento é o raio. São manifestações desse divino. Na realidade, cremos num único Deus. Os orixas são emanações na natureza, são mistérios. Cada sacerdote vai procurar um caminho e entender como quiser. Pra mim, o orixá é bondade, é fraternidade, amor, porque o terreiro de umbanda funciona também em família”, resume.

LEIS DA UMBANDA - Dez princípios básicos

1 - Crença em um Deus único, onipotente, eterno, incriado, potência geradora de todo o universo material e espiritual, adorado sob vários
nomes
2 - Crença em entidades superiores: orixás, anjos e santos que chefiam falanges
3 - Crença em guias, em planos médios, mensageiros dos orixás, anjos e santos
4 - Existência da alma e sua sobrevivência após a morte
5 - Prática da caridade desinteressada, na busca de aliviar o carma do médium
6 - Lei do Livre-Arbítrio (da livre escolha), pela qual cada um escolhe fazer o bem ou o mal, e o ser humano afiniza com sua faixa vibratória e a do ambiente que o cerca
7 - O ser humano é a síntese do universo
8 - Crença na existência de vida inteligente em todo o Universo, vivendo e habitando
9 - Crença na reencarnação, na lei cármica de causa e efeito
10 - Direito de liberdade de todos os seres

Foto: Shilton Araújio/ESp DP
Foto: Shilton Araújio/ESp DP

Glosário da fé

ARUANDA - Lugar onde moram os orixás e as entidades superiores. No Catolicismo é o Céu. No Espiritismo são as colónias espirituais.

ARRUDA - Planta muito usada nos terreiros pelos sacerdores e filhos de santo. Usada como termômetro da energia negativa no terreiro. Se o
galho da planta murchar, a energia estava carregada

BOIADEIROS - Entidades responsáveis pelo bom andamento dos trabalhos e por tornar o grupo mediúnico harmonizado entre si. São conhecidos
também por oguns, guardiões, vigilantes

BAIANOS - Seriam arquétipos de espíritos nascidos na Bahia. Com forte
sotaque baiano, usam expressões típicas, como “meu rei”. Fumam cigarro
de palha, tomam batida de coco. Os homens geralmente carregam uma
peixeira

CABOCLOS - São os espíritos que se comportam como índios. Usam palavras em tupi e fumam charutos

ENCRUZILHADA - São pontos de força que representam cruzamentos dos
caminhos material e espiritual

EXU/POMBAJIRAS - Exu no Candomblé é o orixá mensageiro e gurdião dos
templos. Na Umbanda, ele também tem esse papel enquanto entidade, espírito guardião. O tridente do Exu representa a força e poder, e sua
companheira pombajira representa a força do sagrado feminino

ERÊS - Seriam espíritos das crianças. A maior parte não sabe andar. Toma guaraná, chupa pirulito e benze os fiéis com brinquedos

FILHOS DE SANTO - Praticantes do culto, incorporam espíritos ancestrais

GIRA - Nome dado aos rituais em que os espíritos viriam para atender os fiéis. Grupamento de vários espíritos de uma determinada categoria, que se manifestam por meio da incorporação nos médiuns

GUIA - Entidades que os médiuns supostamente recebem. Também servem para designar os colares coloridos usados nos cultos

ORIXÁ - Divindades africanas directamente relacionadas às forças da natureza

PAIS OU MÃES DE SANTO - Pessoas com vocação sacerdotal para a religião
e que passaram por todos os rituais necessários, chamados de Consagrações

PRETOS VELHOS - Representariam os escravos brasileiros. Fumam cachimbo e tomam café. O médium que os recebe anda arqueado

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL