Direitos Humanos Denúncias de agressões ligadas à religião aumentaram em Pernambuco Segundo dados do Disque 100, denúncias de intolerância e violência religiosa passaram de 15 para 556 em quatro anos

Por: Marcionila Teixeira

Publicado em: 17/10/2016 17:25 Atualizado em: 17/10/2016 21:45

Maria Silva do Nascimento conta sofrer perseguição desde os sete anos. Foto: Karina Morais/Esp. DP
Maria Silva do Nascimento conta sofrer perseguição desde os sete anos. Foto: Karina Morais/Esp. DP
Mãe Maria, 74 anos, renovou a fachada do antigo terreiro. Foi há quase dois meses. O nome do Centro Espírita Terreiro de Umbanda Caboclo Tupinambá está de volta, pintado em letras garrafais, para não deixar dúvidas sobre qual é a religiosidade do lugar. Uma imagem em gesso de Nossa Senhora da Conceição, que no sincretismo religioso equivale a Iemanjá, foi posicionada na frente do imóvel simples onde a mãe de santo recebe pessoas em busca de consulta espiritual. Nossa Senhora substituiu a antiga estátua do orixá, depredada na época da conversão de Maria à religião evangélica e da transformação do terreiro em um templo. Nas próximas duas páginas, o Diario conta histórias de perseguição, mas também de pessoas que conseguiram vencer as diferenças e preconceitos. Gente como o babalorixá Sandro de Jucá, casado com uma mulher evangélica.

Para Maria, o caminho de volta foi longo. Junto com a Iemanjá, foram quebrados ou queimados outros símbolos da religião de matriz africana acumulados ao longo de 60 anos de existência do terreiro, às margens da PE-01, no Janga, em Paulista. Os búzios, usados pela mãe de santo nas consultas, foram poupados, depois de escondidos pela própria. São presente de Mãe Menininha do Gantois, famosa mãe de santo baiana e responsável por “fazer o santo” de Maria.

Denúncias de intolerância e violência religiosa explodiram no Brasil entre 2011 e 2015, segundo dados do Disque 100 – Disque Direitos Humanos, do governo federal. Passaram de 15 para 556 no período de quatro anos, ou seja, um aumento de cerca de 37 vezes. Pernambuco segue o crescimento. Se em 2011 houve o registro de uma denúncia, em 2015 o número saltou para 10, um crescimento de 1.000%. Em 2016, até 30 de junho, o estado teve quatro casos, enquanto o Brasil registrou 196.

Por trás dos números frios, gente como Mãe Maria, batizada Maria Silva do Nascimento ao nascer, em Vitória de Santo Antão. Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011 – 2015), do governo federal, aponta que em um total de 55% das denúncias as vítimas são seguidoras de religiões de matrizes africana e indígena. Em segundo lugar vêm os católicos, com uma fatia bem menor: 9%. O mesmo documento revela que 65% das denúncias não apontam a religião do agressor e, em segundo lugar, os evangélicos são identificados como autores em 27% do total.

Debater intolerância e violência religiosas no Brasil é voltar às raízes da colonização, refletir sobre a participação da Igreja Católica e, a partir dos anos 1970, sobre a entrada de outras religiões cristãs. “As conversões que promoveram são consideradas como propiciadoras de uma ruptura com o universo cultural e cosmológico indígena. Práticas alimentares, estruturas de parentesco e de organização social, compreensão simbólica associada a elementos da natureza e práticas de cura passaram por intensa modificação”, diz o relatório do governo federal. Missionários católicos e evangélicos, inclusive, já combatiam, na época, as práticas de pajelança indígena por serem consideradas demoníacas.

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (agora extinta) criou o Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa com a finalidade de promover o direito ao livre exercício das diversas práticas religiosas. Há algumas iniciativas de instalação de comitês ou centros de referência de diversidade religiosa e delegacias especializadas ou de atendimento diferenciado para casos de intolerância religiosa no Distrito Federal, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Pode-se dizer que pouco existe de política pública para superação da intolerância no país. Uma reflexão sobre o assunto se faz necessária. Pelos nossos antepassados. Por um presente e futuro com mais respeito e dignidade para todos e todas.

Agora, Mãe Maria quer comprar imagem de Iemanjá para colocar de volta na frente de casa, no lugar de Nossa Senhora. Foto: Karina Morais/Esp. DP
Agora, Mãe Maria quer comprar imagem de Iemanjá para colocar de volta na frente de casa, no lugar de Nossa Senhora. Foto: Karina Morais/Esp. DP


Uma encruzilhada de sentimentos


Mãe Maria conta ter voltado às suas religiões de origem, umbanda e jurema, após adoecer e receber recado dos orixás

Há pouco mais de um ano, o terreiro de mãe Maria amanheceu diferente. Já não tinha mais a estátua de Iemanjá na frente. No entorno do imóvel, havia faixas com dizeres do tipo: “Jesus agora está aqui”, colocadas por um grupo de pessoas evangélicas. Maria já não era mais mãe de santo. Tornara-se evangélica. Agora participava de cultos, que seriam, dali em diante, rotina do lugar. Mas Maria, desde aquele dia, caiu doente. A ponto de não conseguir sair da cama para o banheiro. Dias difíceis estariam por vir.

Maria Silva do Nascimento conta sofrer perseguição desde os sete anos, quando começou a se identificar com a religião. “Um dia, sonhei que minha irmã ia buscar água e um cachorro mordia ela. Acordei chorando. No outro dia, aconteceu do cachorro morder mesmo. Apanhou eu e minha irmã”, lembra. Por 52 anos, Maria também sofreu as agruras de um casamento marcado pela violência doméstica. “Já tive muito desgosto. Por isso pensei em desistir da religião”, lembra.

Após a conversão, a doença de Maria não dava sinais de trégua. Junto com o mal do corpo, veio a ausência do material. “Até fome passei. Teve vez que não tinha um pão para comer”. Até que um dia Zé Pelintra baixou, conta ela, e deixou uma mensagem: “Diga à minha nega que deixei dito que ela não vai agora. Só quando o homem da coroa quiser”. Maria recebeu o recado. Voltou à religião de origem. Recuperou-se aos poucos. Agora luta para rearrumar o terreiro. Quer comprar uma imagem de Iemanjá para colocar de volta na frente de casa.

Doutora em teologia, especialista em políticas públicas e direitos humanos e uma das fundadoras do Comitê Nacional de Diversidade Religiosa, Marga Ströher afirma que o povo de terreiro é a maior vítima da intolerância. “Na cosmovisão de determinados grupos religiosos de caráter fundamentalista é necessário combater o chamado demônio e materializam e identificam esse demônio com os grupos de terreiros. E a gravidade dessa concepção é que passam a atuar com assédio, preconceito, perseguição, ofensa e violência, destruindo objetos sagrados, violando espaços religiosos e desrespeitando e agredindo pessoas”, reflete.

Segundo ela, o racismo é o componente adicional. “Boa parte da discriminação religiosa decorre desse racismo, arraigado desde os tempos coloniais. Mudam os atores da violência, mas as vítimas continuam as mesmas: os índios e o negros”.



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