Superação Pesquisa: 60% dos atendidos pelo Atitude reduzem frequência de consumo de drogas Trinta e oito por cento deles deixam de utilizar entorpecentes

Por: Alice de Souza - Diario de Pernambuco

Publicado em: 02/08/2016 09:10 Atualizado em: 02/08/2016 10:01

Programa atende mensalmente 3,6 mil pessoas, em quatro núcleos. Foto: Rafael Martins/ DP
Programa atende mensalmente 3,6 mil pessoas, em quatro núcleos. Foto: Rafael Martins/ DP
É com orgulho e firmeza que João Silva*, 22 anos, apresenta o resumo dos seus últimos 20 dias: deixou de morar nas ruas, aprendeu a fazer trabalhos manuais, fez novas amizades e, principalmente, abandonou o crack, droga que era parte da história dele há três anos. A vida, quase sempre, é uma questão de oportunidade e, para João e muitos outros usuários de entorpecentes em Pernambuco ela apareceu no Programa Atitude. Uma pesquisa inédita no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas de Segurança Pública da UFPE mostrou que depois de inseridos no programa, 60% dos usuários conseguem reduzir a frequência de uso de drogas e 38% deles passa à abstinência. O lançamento do estudo acontecerá hoje, às 9h30, na Faculdade de Direito do Recife.

Criado em 2011, o programa Atitude atende mensalmente 3,6 mil pessoas, em quatro núcleos, com o objetivo de reduzir os danos e promover a qualidade de vida para os usuários e familiares. Desde o ano passado, alguns núcleos enfrentam dificuldades no repasse de verbas. A pesquisa coletou os dados no primeiro semestre de 2015. A partir da aplicação de questionários com 191 usuários e da análise de 5,7 mil cadastros, foi traçado perfil dos atendidos, assim como a percepção deles sobre o programa.

Em geral, foi identificada uma situação de alta vulnerabilidade social entre os atendidos. Cerca de 80% são homens e 88% deles são heterossexuais. A maioria tem baixa escolaridade, é de cor parda ou negra e tem renda familiar menor que um salário mínimo. A correlação do consumo de drogas com os índices de violência letal também foi identificado pela pesquisa, pois 65% dos atendidos relatam já ter sofrido ameaça de morte. “Foram mais de 30, por causa de dinheiro que fiquei devendo a agiotas, a traficantes”, exemplifica João Silva.

Com quatro estratégias diferentes - promoção de intervenção psicossocial nas ruas, centros de acolhimento e apoio, centro para proteção 24h e reinserção social através de moradia - o Atitude surpreendeu os pesquisadores nos resultados sobre a frequência e intensidade do uso de drogas. Em algumas situações, o consumo de sete pedras a cada dois a três dias da semana foi reduzido para 15 pedras a cada 15 dias.
Outro dado revelador é sobre a sensação de proteção diante da violência letal quando estão no Atitude, relatada por 77% dos entrevistados. Esse foi o mesmo percentual de atendidos que deram nota entre 8 e 10 ao serviço.

Dentre todos os pesquisados, 97% recomendaria o Atitude a pessoas próximas. Foi por  recomendação de amigos que José Lima*, 25 anos, chegou ao centro de acolhimento. “Me disseram que era legal, que tinha encaminhamento para hospital. Dormia na praça, no centro, e já cheguei até a apanhar. Aqui, para mim, é sensacional. Discuto sobre drogas, sobre o que aconteceu na vida, o que passamos nas ruas.”

As avaliações positivas foram analisadas pelos pesquisadores. “Uma das hipóteses levantadas para explicar os achados é a sensação de gratidão. Por não impor a abstinência, o programa também leva a uma adesão mais tranquila. Não há receio de não conseguir”, afirmou o coordenador adjunto do estudo, Rafael West. Por outro lado, o estudo elencou pontos que não avançaram no Atitude: o acompanhamento posterior à saúde do usuário, o acompanhamento dos familiares, a dificuldade na articulação com outras políticas, a inclusão no mercado formal e informal, e a criação de uma carreira pública para os profissionais de políticas sobre drogas.

Esse último ponto, inclusive, é alvo atual de discussão. Em junho deste ano, o Atitude de Caruaru foi interrompido por ausência de repasse de verbas. O salário dos profissionais estava atrasado há três meses. Hoje, eles virão ao Recife e junto aos usuários pretendem realizar mobilização. Ontem, o serviço foi restabelecido, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude de Pernambuco.

“Durante o período de paralisação, conseguimos fazer o encaminhamento de alguns atendidos, mas cobrimos muitos municípios e em alguns casos houve retorno à situação de rua”, relatou a coordenadora técnica do Atitude de Caruaru, Gislane Oliveira. Aos pesquisadores, os usuários relataram pedidos de ampliação do serviço, ainda sem previsão, e inclusão de mais atividades de arte e cultura. Hoje será apresentado um resumo dos principais achados da pesquisa. A publicação completa, com leitura mais analítica dos dados e detalhamento dos resultados e perfil de cada serviço será apresentado até o começo do próximo ano.

*Nomes fictícios

Ping-Pong

José Luiz Ratton, coordenador da pesquisa e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas de Segurança Pública (NEPS/UFPE)

A pesquisa mostra redução no consumo e até interrupção do uso de crack e outras drogas. O que contribui para esse resultado, já que o programa não impõe a abstinência?
A estratégia de imposição de abstinência não pode ser condição para o cuidado público dos usuários que precisam do serviço. A pesquisa sobre o Atitude demonstrou que existem metodologias baseadas no conceito de redução de danos que auxiliam os indivíduos a minimizarem o impacto do uso de drogas na sua saúde, melhorando sua qualidade de vida - e isso vale para drogas lícitas e ilícitas. Em muitos casos, esse tipo de abordagem baseado na redução de danos contribui para que o usuário desista de usar as substâncias que usava, mas de uma forma não impositiva.
 
Por que é importante tratar a questão do uso de drogas como questão de saúde pública e não de polícia?

Por vários motivos. Em qualquer país do mundo, quando o uso de algumas substâncias é criminalizado, sua venda passa a ser um negócio (ilegal) que precisa de proteção armada, também ilegal, (para proteger o território de ataques de rivais, de roubo de marcadorias etc). Isso facilita a ocorrência de conflitos com altos níveis de letalidade. Temos que pensar e lutar por uma estratégia global de descriminalização do uso de drogas. Enquanto isso não acontece, é importante que o foco do trabalho policial seja dirigido para a redução da impunidade, através da investigação e disuassão de crimes contra a vida.  Em qualquer lugar do planeta, a intervenção das organizações policiais nos mercados de drogas aumenta os níveis de conflitividade e de letalidade destes mercados.  As organizações policiais, onde quer que seja, não são capazes de atuar em todas as frentes e deveriam concentrar seus esforços na tentativa de prevenir e evitar mortes violentas (basta olhar para as formas de atuação de boa parte das polícias européias). Por outro lado, a decisão sobre o uso de qualquer tipo de substância é assunto de natureza individual. As organizações estatais devem fornecer aos cidadãos informação de boa qualidade sobre as consequências do uso destas substâncias, para que os indivíduos possam tomar suas decisões. Isso vale para o álcool, para o tabaco e deveria valer para qualquer substância. Em outras palavras, precisamos de educação para a saúde, respeitando a liberdade de escolha de cada um. Por outro lado, aqueles indivíduos que, por qualquer motivo, precisam da ajuda relacionada às consequencias do uso de substâncias lícitas ou ilícitas, devem ter garantido o apoio estatal no âmbito da saúde pública e da assistência social.  

Recentemente, o programa Atitude vem enfrentando problemas decorrentes da ausência de pagamento aos servidores. Qual o impacto que a descontinuidade pode vir a trazer para a situação dos usuários de drogas no estado?
A pesquisa realizada mostra que o Atitude conseguiu melhorar a qualidade de vida dos usuários do serviço, além de proteger a vida destas pessoas. A interrupção do Atitude significa que estas pessoas - que já estão em situação de vulnerabilidade social - passam a ter riscos de morrer muito mais elevados.

No que influi a criação de uma carreira pública para os profissionais de políticas públicas sobre drogas ?
Como em todas as sociedades contemporâneas existem pessoas que fazem uso de drogas (lícitas ou ilícitas). É preciso que existam profissionais preparados de forma específica, para cuidar daqueles cujo uso de substâncias tenha produzido algum tipo de consequência indesejada, tanto no plano da saúde pública, quanto no plano da assistência social.

Saiba Mais

Programa Atitude

4 núcleos sob gestão estadual: Recife, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Caruaru
3,6 mil vagas mensais, sendo 900 vagas mensais para cada núcleo
16 milhões de investimento annual

Perfil dos atendidos

Gênero

80,6% são homens
19,4% são mulheres

Orientação sexual
88% são heterossexuais

Raça
43,5% são pardos

Faixa etária
46,4% têm 20 a 29 anos
 
Emprego
90,1% não têm emprego

Renda familiar
54% têm até um salário mínimo

Primeira droga experiementada


47,6% álcool

Antes e depois do programa

Consumo de drogas

Antes
82,1% consumiam drogas diariamente

Depois
22,1% consomem drogas diariamente

Abstinência

Antes
0%

Depois
38,4%

Proteção contra violência letal

65,4% sofreram ameaça de morte nos últimos seis meses

77,2% se sentem protegidos quando estão no Atitude

Avaliação do atitude

77% deram nota entre 8 e 10 ao programa

Fonte: Pesquisa “Políticas de Drogas e Redução de Danos no Brasil: o Programa Atitude em Pernambuco” e Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude de Pernambuco



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