Vida Urbana
Vulnerabilidade
Assistência oferecida a moradores de rua é insuficiente no Recife
Não há levantamento real da quantidade de pessoas vivendo nas ruas de Pernambuco. Reunião pública discute criação de abrigo noturno no Recife
Publicado: 01/06/2016 às 18:05

Caruarense José Manoel vive na Praça da Independência e, ali, consegue comida e faz o ritual de higiene. Foto: Marcela Cintra/Esp. DP/

José Manoel é caruaruense e tem 18 anos. Há dois meses, depois de uma briga, trocou a casa em que morava com a mãe, no Agreste do estado, por um pedaço de papelão e um batente na Praça da Independência, no Centro do Recife. Na última segunda-feira, quando a chuva deixou a cidade debaixo d’água, ele teve dificuldade para conseguir comida. Desde então, a proximidade do inverno assusta. Não existem números atualizados sobre a quantidade de pessoas em situação de rua no Recife mas, segundo movimentos sociais que atuam na área, a assistência oferecida é insuficiente.
[SAIBAMAIS]
Manoel saiu de Caruaru pensando em viver com o padastro, mas o alcoolismo da única referência no Recife o levou para a rua. Desde então, não saiu mais da praça, conhecida como Praça do Diario. É por lá que consegue comida – com voluntários e donos de restaurantes da nova vizinhança – e realiza todos os rituais de higiene. “O que a gente sabe aqui é que esse abrigo da prefeitura não funciona e também não tem albergue”, conta o morador de rua, que concluiu apenas o 1º grau dos estudos. “Tentei muito trabalho por aqui, mas não tem, nem para quem estudou e nem para ninguém”, conta o caruaruense, que começou a juntar os R$ 26 para a passagem de ônibus para voltar para a terra natal, mas não tem perspectiva de quando vai conseguir. “Pedir, eu não peço. O negócio é continuar atrás de um bico. Acho que já deu a hora de voltar para casa”.

Perto dali vive Miria Aragão, de 22 anos. Há um ano ela chama a rua de casa e, depois de perambular pelas ruas do Centro pedindo dinheiro, dorme toda noite na Praça Maciel Pinheiro, com o companheiro. Ao contrário de Manoel, ela não tem para onde voltar. “Recebi aquele aluguel social por nove meses e vivia nos Coelhos, mas, quando cortaram, eu não tinha para onde ir”, relata a moradora de rua, que é mãe de uma criança de três anos. Miria diz que a situação piora consideravelmente no período das chuvas, quando o risco de contrair doenças aumenta. Para ela, no entanto, a “pior coisa da rua” é todo dia. “É a humilhação. Tanto das pessoas, quanto dos policiais também”, conta a jovem, que diz sonhar todo dia com uma casa para morar.
Membro do Fórum Metropolitano da População em Situação de Rua, da Articulação Nacional de Meninos e Meninas de Rua no Recife e do GT População em Situação de Rua do Conselhor Regional de Psicologia, Itamar Sousa avalia os mecanismos existentes como insuficientes, critica a falta de políticas públicas fortalecidas para tratar do assunto e acredita que a falta de vontade de política é o maior entrave para a busca de soluções.
Atualmente, no Recife, além do aluguel social – programa Federal –, as pessoas em situação de rua podem contar com três serviços: as Casas de Acolhida, que disponibilizam um total de 140 vagas e “um acolhimento institucional”, segundo a Prefeitura do Recife; o Serviço Especializado em Abordagem Social de Rua (SEAS), que mapeia os moradores de rua fazendo os devidos encaminhamentos; e os Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), que atendem a demandas emergenciais, oferecem alimentação, higiene pessoal, atendimento psicossocial e, caso seja do desejo da pessoa, acolhimento.
Em 2014, a atual gestão do município assinou o termo de adesão à Política Nacional da População em Situação de Rua. Com a assinatura, o Recife se comprometeu a adotar as diretrizes da Política Nacional, implementadas no decreto 7053, de 2009. Daí a prefeitura criou o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua, que tem quatro grupos de trabalho (subcomitês) para as áreas de saúde, trabalho e renda, habitação e segurança alimentar e nutricional.
Para Itamar Sousa, o plano municipal é uma boa ação, assim como o comitê que, segundo ele, são enfraquecidos porque “não têm aplicabilidade”. “O comitê é um espaço que a prefeitura abriu para tentar colocar em pauta a questão e, na minha opinião, é algo que surge das vontades de quem quer, de fato, mudar a realidade, mas chega na prefeitura, nas secretarias e não toma o rumo que poderia tomar”, critica. “Falta vontade política.”
Sousa ainda destaca o fato de não haver um levantamento real da quantidade de pessoas vivendo nas ruas de Pernambuco e do Recife. “Se a prefeitura não sabe quantas pessoas estão na rua, como vai investir pra reverter isso?”, questiona. “É preciso instituir uma política estadual e depois as municipais. Existem estados mais organizados, que têm conseguido fazer com que a política nacional saia do papel, mas é algo que de fato só será aplicado se houver essa vontade política”, avalia. “É preciso ter uma intersetorialidade, como a própria política nacional prevê, agregando áreas como saúde e trabalho”, diz Sousa, que acredita que os moradores de rua, negligenciados, “são vistos como super-pessoas”, como se estivessem acostumados e não precisassem de atenção. “Mas não são”, conclui.
Reunião pública para discutir criação de abrigo noturno
Neste domingo, às 17h, a Praça do Derby recebe uma reunião para debater a criação de um abrigo público noturno para a população que vive nas ruas do Recife. O evento é organizado pelo Projeto Dragão, que surgiu há dois anos, em Arcoverde, e atua distribuindo comida, roupas e materiais de higiene, além de promover ações educativas.
“Não há um abrigo noturno e o ideal era criar um lugar para pernoite, janta. Tem muita gente que trabalha na rua, mas não tem condições de pagar um aluguel”, explica Gabriel Battinga, porta-voz do Projeto Dragão no Recife. “É também uma oportunidade de as pessoas darem suas ideias para que a gente crie a melhor proposta e possa ir atrás de viabilizá-la”, disse.
Através de uma nota, a Prefeitura do Recife esclareceu que a criação de um albergue noturno não é responsabilidade do município mas garantiu que, pela identificação da demanda, incorporou a criação no plano municipal. Ainda de acordo com a prefeitura, “ainda não foi viabilizado um imóvel que atenda às exigências, entre as quais, acessibilidade”.
Para o período do inverno que se aproxima, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos informou que os moradores de rua podem ser acolhidos nos programas já existem, listados abaixo.
Recife possui:
Assistência
Casas de Acolhida
A rede de acolhimento institucional para a população adulta em situação de rua do município é composta por 3 abrigos (sendo 2 masculinos e um feminino) e uma Casa de Passagem que atende público misto, casais com ou sem filhos, disponibilizando um total de 140 vagas.
SEAS
Serviço Especializado em Abordagem Social de Rua (SEAS), que dispõe de sete equipes nos três turnos (cinco diurnas e duas noturnas) e mapeia as pessoas em situação de rua. O serviço monitora as áreas das seis RPAs e trabalha com a sensibilização das pessoas, visando o resgate da cidadania e a retirada consensual dessas pessoas das ruas. As equipes conversam, conhecem as pessoas e suas histórias, orientam e, sempre que aceito, fazem os encaminhamentos, seja para acolhimento, retirada de documentos, acesso à rede de saúde, inclusão no aluguel social, em programas sociais e até mediação dos laços familiares interrompidos.
Centro POP
Os Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) atendem uma demanda mais emergencial do usuário. É o local onde as pessoas podem ser incluídas no Cadastro Único, ter acesso à alimentação, higiene pessoal, atendimento psicossocial e, se manifestar interesse no acolhimento, é encaminhado. As unidades ficam nos bairros da Boa Vista (Centro POP Glória) e Torreão (Neuza Gomes) e oferecem atendimento e atividades direcionadas à sociabilidade, na perspectiva de fortalecimento de vínculos interpessoais e/ou familiares. Parte do usuário a procura, diferente do SEAS, em que o serviço vai até o usuário.
Saúde
Consultório na Rua
Profissionais de saúde identificam as necessidades dessas pessoas que estão em condição de vulnerabilidade e as encaminha para a unidade de saúde da rede municipal. A proposta é ofertar atenção integral à saúde, com acompanhamento social, serviços de atenção à mulher, a usuários de álcool e outras drogas, a idosos, entre outros grupos.
As equipes do CnaR do Recife são compostas por um psicólogo, um assistente social e dois técnicos sociais. A proposta é lidar com os diferentes problemas e necessidades de saúde da população em situação de rua, prestando atenção integral à saúde de forma itinerante e in loco. Sempre que necessário, as equipes compartilham o cuidado com as Unidades de Saúde da Família, com os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), serviços de urgência e emergência e outros pontos de atenção da rede municipal.
O Programa atende, inicialmente, as pessoas em vulnerabilidade dos Distritos Sanitários 1 (nos bairros do Recife, Santo Amaro, Boa Vista, Cabanga, Ilha do Leite, Paissandu, Santo Antônio, São José, Coelhos, Soledade e Ilha Joana Bezerra) e Distrito Sanitário 6 (Pina, Boa Viagem, Brasília Teimosa, Imbiribeira, Ipsep, Jordão, Ibura, Cohab).
Consultório de Rua
O Programa Consultório de Rua trabalha na com a linha de cuidado e orientações ao usuário para reduzir danos associados ao consumo de álcool e outras drogas, contribuindo para redução significativa de outros riscos, à medida que aumenta o acesso à informação para a adoção de hábitos de vida saudáveis e para a melhoria das condições de vida. Dessa forma, o programa também contribui para evitar ou minimizar patologias, a exemplo da tuberculose, DST/AIDS e hepatites, que são doenças muito presentes nesse grupo populacional.
Atualmente seis equipes de Consultório de Rua - 1 supervisão de território, 3 profissionais de nível superior e 31 agentes de redução de danos - atuam nos 8 Distritos Sanitários, vinculadas a um Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS Ad). Inicialmente, o foco era dirigido apenas a abordagens em cenas de uso. Aos poucos também foram agregadas as abordagens às pessoas que se encontravam em situação de rua e são usuárias de álcool, crack e outras drogas. A média de atendimento mensal varia de 80 a 100 pessoas.
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