Urbanismo Conde da Boa Vista: a avenida que pulsa no Recife Há 70 anos, uma das principais vias do Centro ganhava o formato que mantém até hoje. Endereço reúne a modernidade e o saudosismo à espera de melhorias.

Por: Alice de Souza - Diario de Pernambuco

Publicado em: 12/06/2016 15:20 Atualizado em: 19/07/2016 20:31

Trecho de duplicação foi entregue ao público em 1959. Crédito: Arquivo/DP/D.A Pres (Arquivo/DP/D.A Pres)
Trecho de duplicação foi entregue ao público em 1959. Crédito: Arquivo/DP/D.A Pres

Eixo patrimônio da memória da cidade, palco de diversidade social e cultural, a Avenida Conde da Boa Vista abraça sem distinção e preconceito qualquer recifense. Em seu 1,6 quilômetro de extensão, cabe a profusão comercial, a identidade arquitetônica moderna, a correria dos estudantes e o saudosismo dos moradores. São cerca de 260 anos desde o início do aterramento que levaria à construção da primeira parte da via, cujo formato atual foi desenhado há 70 anos. Anos de fervor, decadência e sobretudo mudanças. Às vésperas de receber mais uma intervenção, a implantação definitiva do BRT, a avenida se transformou em laboratório urbano de pesquisas acadêmicas com foco na sofisticação urbanística.

A Conde da Boa Vista foi erguida em uma área de mangue em três etapas. A primeira delas começou em 1840, recebendo o icônico nome de Rua Formosa, diante da beleza estonteante. Ia do Rio Capibaribe até a hoje Rua do Hospício. Foi no primeiro trecho onde se construiu o primeiro prédio, o atual Recife Plaza Hotel. O segundo pedaço seguiu até a Rua Gervásio Pires. O terceiro, concluído 59 anos depois do início, uma conexão com a hoje Rua Dom Bosco, recebeu o nome de Caminho Novo. Em 1946, na gestão do então prefeito Pelópidas Silveira, foi iniciada a duplicação da via.
Bairro da Boa Vista sempre foi polo do comércio no Recife. Auge foi na década de 1980. Há 10 anos, atividade comercial voltou a ganhar força no entorno da Avenida Conde da Boa Vista. Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press (Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press. )
Bairro da Boa Vista sempre foi polo do comércio no Recife. Auge foi na década de 1980. Há 10 anos, atividade comercial voltou a ganhar força no entorno da Avenida Conde da Boa Vista. Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press

“Ela passou a ter duas vezes e meia a largura em toda a extensão. Com isso, os três sobrados rosa onde funcionou o Instituto de Psiquiatria e o prédio do Colégio São José perderam o jardim, assim como uma série de outros prédios”, rememora o arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes. “A ideia era ela se tornar um grande eixo para as zonas Norte e Oeste da cidade, como continuação da Avenida Guararapes”, completa o conselheiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil em Pernambuco (CAU/BR) e professor da UFPE, Fernando Diniz.

Diferentemente da vizinha, cujos prédios foram erguidos respeitando um padrão arquiteônico, a Conde da Boa Vista tinha um caráter mais suburbano, com edificações sem unidade entre si e com predominância dos elementos do urbanismo moderno. Entre os anos de 1960 e 1970, era nela onde estavam os principais centros empresariais da cidade. Com o processo de deslocamento das atividades dinâmicas para outras partes da cidade, a região sofreu um processo de empobrecimento cuja repercussão pode ser percebida ainda hoje.

Ao longo desses anos, a avenida permaneceu dividida em três, uma divisão que respeita a antiga etapa da construção geográfica, mas é pautada mais na função. O primeiro trecho é de grande circulação de pessoas. O segundo é dos grandes equipamentos, como shopping e faculdade. “É um trecho de várias ocupações, mas sem uma via chegando direto. Há uma terceira área, a da Soledade até a Dom Bosco, com acesso de carros direto a edifícios residenciais. É uma via que, até pela importância, já passou por diferentes configurações. O uso do solo é diferente”, pontua o presidente do Instituto Pelópidas Silveira, João Domingos.

O desafio atual é tornar a Conde da Boa Vista e o raio de influência dela eficientes. A expectativa é de que o BRT inaugure uma época de requalificações na via, com melhoria das calçadas, ordenamento do comércio informal (dos 300 que antes atuavam na avenida, hoje restam 141) e otimização do tráfego de veículos.

 

Psicoterapeuta e jornalista Horácio Neto, 68 anos, vive há 10 anos no edifício Ambassador, um dos mais tradicionais da Boa Vista. Crédito: Rafael Martins/ Esp. DP (Rafael Martins/ Esp. DP)
Psicoterapeuta e jornalista Horácio Neto, 68 anos, vive há 10 anos no edifício Ambassador, um dos mais tradicionais da Boa Vista. Crédito: Rafael Martins/ Esp. DP
 

Tradição e modernidade para os moradores

Morar às margens da Avenida Conde da Boa Vista é um ato de bravura marcado pelo saudosismo. Cada imóvel por trás da soma de janelas ao longo da via espelha as memórias do Centro da cidade e guarda, em si, um relato pessoal sobre a região. O passar do tempo deixou marcas difíceis de corrigir nos edifícios mais antigos e o abandono das unidades por proprietários é entrave ao processo de conservação e encurrala quem resiste. Por outro lado, as restrições pela legislação para construir em bairros das zonas Norte e Sul fomentam a sobrevida do bairro de mesmo nome da avenida.


O psicoterapeuta e jornalista Horácio Barros Neto, 68, ainda era um adolescente quando começou a frequentar o edifício Ambassador, na esquina da avenida com a Rua José de Alencar. Naquela época, tinha um parente morando na edificação e costumava ir andando, com os amigos, pelas madrugadas da Boa Vista até o bairro de São José. O Ambassador tinha um amplo jardim, conectado à via. O fascínio gerado pelo prédio levou Horácio a comprar uma unidade, por anos alugada a terceiros.

Depois de uma entressafra no Rio de Janeiro, ele retornou à capital pernambucana com a certeza de onde iria morar. Não encontrou mais o jardim, tomado pelos gradis por questão de segurança, e foi surpreendido por uma situação de precariedade financeira e descuido do prédio. Recentemente, assumiu a função de “organizar a casa” com outros moradores. “Ter um imóvel aqui é privilégio. Você convive com as realidades do moderno e das tradições”, ressalta ele, para quem a Boa Vista está para o Recife assim como o Soho está para Nova Iorque.

Outro edifício sofrendo com a inadimplência é o Duarte Coelho, com 14 andares, três blocos e uso misto (comércio e residência). Mais conhecido por abrigar o Cinema São Luiz.  Na porta do elevador, o anúncio esclarece: são R$ 1 milhão em contas a receber. “É um prédio de estrutura invejável, mas a inadimplência gira em torno de 40%. Então dificulta a manutenção”, afirma o contador e síndico do Duarte Coelho, Amadeus Andrade, 62.

Há ainda o desafio de adequar as estruturas antigas à modernidade. “A grande demanda é tornar o prédio habitável. São necessárias reformas pra aterrar tomadas de computador, cabeamento para wifi e ar condicionado”, lembra o advogado e síndico do Tabira, Francisco Almeida, 54 anos.

Na Conde da Boa Vista há três Imóveis Especiais de Preservação (IEPs) municipais. O último deles classificado em 2014. Outros 96 estão no bairro, classificados em um plano especial para a região (Lei 18.046/2014). Há também terenos e espaço para novos emprendimentos, ressalta o Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado de Pernambuco. “É uma área que ganhou expressão nos últimos 10 anos, com a redução do potencial construtivo de outras zonas da cidade, tornando-se promissora. É a bola da vez”, garante o diretor de assuntos imobiliários do Sinduscon-PE, Antônio Carrilho.

BRT deverá parar na avenida em 2017. Para isso, estudos de matriz de origem e destino estão sendo concluídos. Crédito: Rafael Martins/ Esp. DP (Rafael Martins/ Esp. DP)
BRT deverá parar na avenida em 2017. Para isso, estudos de matriz de origem e destino estão sendo concluídos. Crédito: Rafael Martins/ Esp. DP

Diagnóstico para trazer vida nova

Principal corredor viário do Centro do Recife, a Avenida Conde da Boa Vista tem uma circulação diária de 35 mil veículos. Desde 2008, tem entre as seis faixas de rolamento um corredor exclusivo para o transporte coletivo. São quatro ônibus a cada minuto na via. A função de corredor para o transporte público será consolidada com a chegada do Bus Rapid Transit (BRT). Há dois meses, um diagnóstico das matrizes de origem e destino da avenida é realizado para operacionalizar a chegada do novo modal e sanar antigos problemas de mobilidade da avenida, inclusive os da controversa implantação das paradas nas faixas centrais. Os resultados da análise serão apresentados nesta semana.

Para o estudo, foram entrevistadas 30 mil pessoas. Entre os meses de abril e maio foram estudadas 340 matrizes de origem e destino, das 53 linhas regulares da avenida. A pesquisa dividiu o corredor em quatro segmentos: da ponte Duarte Coelho à Rua do Hospício; da Rua do Hospício à Gervásio Pires; da Rua Gervásio Pires até a Rua da Soledade; e da Rua da Soledade à Rua Dom Bosco.

Dados preliminares mostram que desde 2007 houve um incremento de 16% nas viagens de ônibus realizadas na via. São hoje 5803 viagens por dia contra 5 mil naquela época, a maioria delas (3065) no sentido cidade subúrbio. Há linhas cujo interesse na via chega a 70%. Os trechos com mais demanda para o transporte coletivo são da ponte Duarte Coelho até a Rua do Hospício e da Gervásio Pires até a Soledade.



“É uma avenida com poder de atração por conta do comércio e das faculdades. Ela também assume a característica de integração espontânea, pois muitas pessoas saltam lá para fazer a mudanças de ônibus”, detalha o assessor especial da Secretaria das Cidades e professor da UFPE e da Unicap, Maurício Pina. “O estudo tem apontado que é possível compatibilizar o funcionamento do BRT com as demais linhas a partir da melhoria da programação semafórica e racionalizar as linhas em um processo de troncalização”, adiantou o presidente do Instituto Pelópidas Silveira, João Domingos.

O levantamento será subsídio para a forma como os veículos de BRT entrarão e a definição da localização das estações (no projeto inicial seriam seis). A Conde da Boa Vista integra o corredor Leste-Oeste. Neste mês, a empresa de projetos “Policonsult”, contratada para fazer o “levantamento de serviços remanescentes e um novo orçamento de obras” após rescisão do contrato com o consórcio construtor “Mendes JR/Servix, entregará a análise. Depois disso, será efetuada uma nova licitação de obras para a finalização dos serviços. A previsão de conclusão é 2017.

Pelo BRT chegam dois em cada 10 passageiros do transporte coletivo. Os outros são dos veículos padrão. A ideia é compatibilizar esses dois modelos e também rever a circulação dos veículos particulares na avenida. Para isso, a Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano do Recife realizou uma série de simulações, finalizadas na semana passada.

“Estamos fazendo um novo plano de circulação para a Boa Vista, incluindo a reprogramação semafórica e a acessibilidade do pedestre. A ideia é reduzir ao máximo a necessidade do transporte individual, com acesso por quarteirão e não de ponta a ponta”, acrescentou o secretário de Mobilidade e Controle Urbano do Recife, João Braga. O plano será apresentado até o fim deste mês.

Crédito: Rafael Martins/ Esp. DP (Rafael Martins/ Esp. DP)
Crédito: Rafael Martins/ Esp. DP

História da via será respeitada

A avenida Conde da Boa Vista mudou de perfil nos últimos anos. A ampliação do shopping, assim como a instalação de centros acadêmicos no entorno e a multiplicação comercial, impulsionou a circulação de pessoas na região. As veias abertas expõem a necessidade de mudanças urbanísticas urgentes. Necessidade que transformou a avenida e o bairro em um grande laboratório urbano de pesquisas e projetos nos últimos três anos. É do respeito ao passado histórico e ao valor simbólico do Centro e da esperança de compatibilizar o interesse de todos os agentes urbanos que nascerá o novo desenho da via.

A imagem da avenida Conde da Boa Vista na memória de quem passa pela localidade é de uma via suja, poluída, sem conforto térmico e bastante desorganizada. A representação social foi apontada em levantamento realizado pelos pesquisadores do projeto Plano Centro Cidadão, conduzido pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) em parceria com o Instituto Pelópidas Silveira.

“É uma parte de articulação da cidade, mas com morfologia extremamente danificada. Por hora, há trechos de casas abandonadas e pequenos comércios. Depois, edifícios altos e zonas de preservação. Há inclusive uma tendência de perda de população residente”, mostra a coordenadora do plano e professora da Unicap, Andrea Câmara.

O diagnóstico mostrou ainda o mal dimensionamento das calçadas e das lixeiras. Em trechos de grande movimento, como a Ponte Duarte Coelho e a Rua do Hospício, por exemplo, há quatro lixeiras. Em agosto, será concluída e apresentada a esquematização dos dados. Com eles, serão apontadas diretrizes para investimentos urbanísticos para o chamado centro continental - do Shopping Tacaruna Aos Coelhos e da Avenida Agamenon Magalhães ao Rio Capibaribe.

 


Uma das conclusões é a necessidade de priorizar o pedestre. “O centro tem uma dinâmica de trânsito lento de pedestres, do comprador que entra e sai de lojas, olha a vitrine. É preciso cuidar do respeito à velocidade, da diminuição dela para os ônibus. Isso diminui o risco de acidentes. O transporte não pode se configurar como barreira”, defende a coordenadora da Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife (Ameciclo), Sabrina Marchy.

A entidade participa das discussões pelo Observatório do Recife, a Faculdade Joaquim Nabuco, a prefeitura e a Câmara de Dirigentes Lojistas do Recife (CDL) para estudar melhorias para o centro. O projeto "Recife, o centro que precisamos" começou pelos bairros de Santo Antônio e São José e chegará à Boa Vista até o próximo ano.


“Houve um momento de degradação da avenida. Mesmo assim há um comércio pujante resistente inclusive nesta época de crise. É preciso oferecer qualidade no espaço público do centro, limpando, cuidando das calçadas, da iluminação, para garantir a diversidade social”, reclama o coordenador do Centro de Apoio à Logística da CDL, Paulo Monteiro. Pelo centro, passam por dia 800 mil pessoas. Em época de festividade de fim de ano, o público sobe para 1,3 milhão diário. 



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