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Pesadelo Muribeca: luta e resistência em cenário de guerra Cerca de 15 famílias ainda resistem morando nos apartamentos "condenados" do residencial

Por: Rosália Vasconcelos

Publicado em: 22/11/2015 08:15 Atualizado em: 22/11/2015 17:43


 (Rafael Martins)

Em 2015 são 20 anos do começo do pesadelo dos moradores do Conjunto Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes. Duas décadas em que a população viu esfacelar aos poucos o sonho da casa própria e da vivência em comunidade. Era 1995 quando os primeiros problemas apareceram em um dos 69 prédios. Naquele momento, nenhuma das 2.208 famílias imaginaria que algumas rachaduras seria o começo de uma diáspora. Na época, o edifício que ficou conhecido como “balança, mas não cai” precisou ser interditado às pressas e desocupado pela Defesa Civil do município para a demolição, que só viria a acontecer em junho deste ano. Nos anos seguintes, cada um dos outros 68 prédios foi sendo paulatinamente avaliado como “de risco”, expulsando seus moradores e dando ares de Sarajevo ao residencial.

Mesmo sendo obrigadas a sair, cerca de 15 famílias ainda resistem morando nos apartamentos “condenados” do Conjunto Muribeca. Segundo elas, até hoje nenhuma instituição deu uma perspectiva real de reconstrução do residencial. “Nesses 20 anos que os prédios foram sendo desocupados um a um, ano a ano, já recebemos várias sentenças judiciais que prometiam a reconstrução em curto prazo. Até agora, como se pode ver, nada foi feito. As famílias que saíram recebem o valor do aluguel pela Caixa Seguradora. Eu não fiz o cadastro porque só saio quando eu vir que vão começar a reconstruir os prédios. Não é só o dinheiro que queremos. Queremos nossa vida de volta e queremos preservar a história e a memória de Muribeca”, desabafou a moradora Carmen Lúcia de Araújo, 57 anos.


Apesar da sensação de abandono, o sentimento de comunidade e pertencimento ainda permeiam o lugar. Muribeca tem identidade própria. Até os moradores que seguiram as recomendações da Defesa Civil e saíram de lá, optaram pelos residenciais e vilas do entorno. Muitos vão quase diariamente à Muribeca averiguar a situação do imóvel na esperança de boas notícias. “Moro de aluguel pago pela Caixa no Portal dos Prazeres, ao lado do Conjunto Muribeca, para poder acompanhar de perto o andamento do processo, participar das assembleias e sentir que ainda vivo nesse lugar. A gente sai de Muribeca, mas Muribeca não sai da gente”, diz, emocionada, a contadora Fabiana Cynthia, 37 anos.

Fabiana chegou ao residencial no ano de sua inauguração, em 1982, quando tinha quatro anos de idade. Além de vivenciar a infância e a adolescência, foi lá onde Fabiana também constituiu sua família. No ano que reformou o quarto do seu primeiro filho, há três anos e meio, recebeu a notificação de que todos os moradores deveriam desocupar o prédio 72. A sentença previa a volta dos moradores em 60 dias, mas até hoje Fabiana está sem previsão de retorno ao seu lar. “Para não perdermos o laço de comunidade, nesses anos de espera, nos reunimos no Natal, no São João e no Carnaval, em frente ao prédio 72, e fazemos um encontro entre antigos moradores”, lembra.

 (Rafael Martins)

O revés de uma política habitacional inabitável
Para falar do Conjunto Muribeca, um dos maiores da Região Metropolitana do Recife, é preciso entender a sua constução nesses resistentes 33 anos. “Minha família morava numa casa de taipa e as políticas de habitação social nos trouxeram até Muribeca para ter uma casa com  tijolo. Quando chegamos aqui, apenas existia saneamento. Mas iluminação pública era escassa e também não existia transporte público. Também não exista comércio e serviços. A gente precisava se deslocar, como dava, até Prazeres, para comprar comida. Foi quando após alguns meses, um senhor começou a vender pão numa Kombi. Com o tempo, outras kombis surgiram, comercializando frutas, verduras e outras necessidades”, lembra o serralheiro, Charles Henrique do Nascimento, que chegou ao Conjunto Muribeca aos sete anos e aos 41 anos continua vivendo lá.

Distante dos serviços essenciais e abandonadas pelo poder público, aos poucos, o que deveria ser apenas um residencial com seus prédios, foi virando uma mini cidade. Surgiram escolas e diversas igrejas dentro dos limites do conjunto. Também foram sendo erguidos “caixas de tijolo”, onde seriam abertos mercadinhos, padarias, bares, lanchonetes, farmácias, salões de beleza, serralharia e comércio de antenas de televisão.

Quase tudo foi erguido pelos próprios moradores, numa força-tarefa de anos, para servir e dar melhor qualidade de vida às 2.208 famílias que ali viviam. “Não queremos condomínio fechado porque viramos comunidade. Quando falam em derrubar, com certeza não sabem da nossa história e do nosso esforço para construir isso. Apesar da diáspora, a comunidade continua muito unida”, define o cerzidor de 84 anos, Antônio Pereira. Assim como outros, ele mantém a sua loja de conserto de roupas em Muribeca.

O residencial também não foi planejado, no início da década de 1980, para receber automóveis. Com a popularização dos carros particulares, na década de 1990, se espalhou de vez a construção dos “puxadinhos” para fazer as garagens. “As famílias foram crescendo e precisando de mais espaços. Quem não tinha garagem, fez puxadinho para ampliar o espaço das casas”, justifica o ex-morador, Flávio Valdevino, 46 anos.

A Muribeca “2ª geração”, formada pelos jovens que chegaram lá crianças, foi surgindo a necessidade de moradia e muitas casas foram sendo construídas, tanto dentro do terreno do residencial, como no entorno. “Muita gente acha, principalmente por parte do poder público, que aquelas construções foram invasões de pessoas de fora da comunidade. Mas não. Cerca de 90% dessa população, que agora também vive à sombra da demolição, é o resultado do crescimento e expansão das famílias. Por isso não podem ser tratados como casos diferenciados, isolados”, resume Flávio.



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