Entrevista especial: Thiago Santa Rosa
Pesquisador estuda o universo da pichação e da grafitagem no Recife
Por: Marcionila Teixeira - Diário de Pernambuco
Publicado em: 19/10/2015 07:00 Atualizado em: 19/10/2015 08:53
Como você aborda o tema pichação na sua dissertação?
Foi um esforço de pesquisa na área da geografia na busca de construir conhecimentos sobre as diferentes relações e dinâmicas de apropriação do espaço urbano entre pichadores e grafiteiros para a produção de seus territórios e territorialidades na cidade do Recife. Para isso, busquei as origens dessas manifestações em diferentes momentos históricos e em diferentes partes do mundo, compreendendo, assim, as ações de pichadores e grafiteiros de Recife como criações que, além da criatividade individual de cada artista, é uma herança dessas manifestações em diferentes tempos e espaços.
O que caracteriza pichadores e grafiteiros?
Se pensarmos nas características que dão identidade ao ato de pichar e o de grafitar, veremos que ambos os segmentos se comunicam muito mais do que se imagina ou que, intencionalmente, por meio de alguns veículos de comunicação e poder (parte da mídia e estado), se faz acreditar. A prática de pintar e escrever em paredes está presente na história da humanidade desde a chamada pré-história. De lá para cá, essa prática esteve inserida e foi influenciada por diferentes contextos históricos, culturais e geográficos. Vivemos ainda hoje num contexto de uma sociedade capitalista que impõe a uma grande parcela da população a situação de carência em diferentes aspectos. Muito nos chama a atenção a carência de recursos econômicos, mas, atrelada a ela, está a carência de bens simbólicos, de produção de representações e cultura. Os graffites e pichações atuais nascem da necessidade humana da produção de representações que lhes é negada. Essa é uma característica comum a ambos e que leva a outras inevitáveis. São elas a transgressão - o grafite e as pichações devem transgredir o espaço urbano em sua estética e forma de organização e, assim, devem ser realizados sem autorização. Serem públicos - as pichações e os grafites têm que estar em público, por isso são feitos nas ruas, apropriando-se de qualquer suporte que a cidade ofereça. Isso ocorre pelo objetivo de proporcionar o acesso à arte ao maior número de pessoas, independentemente de etnia, gênero ou classe social. Também pela necessidade que os pichadores e os grafiteiros têm de serem vistos, serem reconhecidos pelo seu meio social e pela sociedade como um todo, ainda que, em alguns casos, de forma negativa, sanando assim, em partes, a invisibilidade a que muitas vezes estão submetidos por pertencerem, em geral, às camadas economicamente mais pobres da sociedade. Efemeridade - grafite e pichações, por ocuparem as ruas, os muros, estão sujeitos a todos os tipos de intervenção que se faça no mesmo espaço. Assim, são manifestações que tendem a permanecer pouco tempo onde estão. Para além disso, se nos aproximarmos ainda mais dos pichadores e grafiteiros, se nos dermos o trabalho de conversar com eles, veremos que muitos grafiteiros são também pichadores e vice-versa. Veremos que a própria estética dos grafites em muitos casos é semelhante a das pichações como no caso das categorias de grafite em que se pintam letras, como é o caso dos Bomb, Throw up e Wild Style, ou no caso do Grapixo, categoria que é a mescla das letras da pichação com os sombreamentos e outras técnicas de grafite. Veremos também que a assinatura de quase todo grafiteiro é uma tag, ou seja, tem a mesma estética das letras da pichação. Sendo assim, acreditar que grafite e pichação ou que a ação de pichadores e grafiteiros é algo muito diferente ou totalmente dicotômico significa observar esses atores e suas ações com superficialidade. O que em geral os próprios pichadores e grafiteiros explicam como diferença entre pichação e grafite é que no primeiro a criação estética se dá apenas com letras, na maioria das vezes feitas com apenas uma cor. E no segundo a expressão se dá também através de desenhos que podem representar o que o artista quiser, um rosto, um animal, um robô, uma palavra e etc. Mas os objetivos, em geral, são praticamente os mesmos: transgredir o espaço urbano em sua estética, em suas normas e em sua organização. Proporcionar acesso a uma criação artística a todos e todas e ser visto e reconhecido pelo seu meio social e pela sociedade. Apropriar-se da cidade e empoderar-se de representações e identidade. Existe uma regra sim que é seguida por todos os que fazem pichação e/ou grafite. Uma vez o espaço apropriado por um pichador ou por um grafiteiro com sua tag ou seu trampo, nenhum pichador ou grafiteiro pode queimar (passar por cima, riscar) aquele trampo ou aquela tag. Os trampos de grafite ou as tags da pichação, além de uma forma de expressão, são a manifestação da apropriação dos espaços da cidade por grafiteiros e pichadores, ou seja, uma vez pintado ou assinado um muro, aquele se torna o espaço do pichador ou do grafiteiro. Pintar, riscar ou assinar por cima é considerado uma grande ofensa entre eles. No contexto dos bailes funk dos anos 90 e início dos anos 2000, muitos pichadores chegaram a ser mortos por conta dessas disputas por territórios, por ter queimado o nome de alguém.
Como você percebe ambos os movimentos? A sociedade os criminaliza. E você?
A pichação e os grafites em Recife, salvo algumas divergências internas, são movimentos que caminham juntos, que se respeitam. Diferentemente do que pensa a maioria da população, em muito influenciada por informações equivocadas ou manipuladas pela grande mídia e pelo governo, os grafiteiros reconhecem a importância que os pichadores têm para a sua expressão como artistas e os pichadores fazem o mesmo com os grafiteiros. Na verdade, o que chamamos de pichação hoje no Brasil em muito foi influenciada pelas tags provenientes dos subúrbios de Nova York. Foi incrementando com mais cores, sombreamentos, tamanho e formas essas letras que surgiu esse tipo de grafite que é mais presente nas ruas de Recife hoje, o chamado estilo americano, como afirma o artista Celso Gitahy em seu livro O que é graffiti. Então, a pichação é irmã do grafite. São manifestações que se comunicam, que se inter-relacionam, que não existem separadamente como muitos acreditam ou querem acreditar. No início do mês passado, por exemplo, estive num evento maravilhoso no bairro do Pina chamado Pão e tinta que, inclusive, teve o apoio da Secretaria de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas da Prefeitura do Recife, onde os organizadores do evento disponibilizaram muros para a expressão dos pichadores. Durante minha pesquisa, pude acompanhar os chamados Encontros das tintas, eventos promovidos pela Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura do Recife na gestão anterior onde, tanto grafiteiros como pichadores, tinham espaço para se expressar. Como eu também já disse, muitos pichadores são grafiteiros e talentosíssimos em ambos os segmentos de expressão urbana. Conheço inclusive um ex-pichador que hoje é um artista reconhecido internacionalmente: Galo de Souza. A discussão sobre a criminalização ou não é algo que deve ser alvo de uma discussão aprofundada, não só sobre as pichações, mas sobre como a própria sociedade e o espaço por ela produzido se organizam. Acho que é importante lembrar que vivemos numa sociedade capitalista e que ainda reproduz o racismo em muitas de suas práticas sociais. Uma expressão estética praticada principalmente por jovens pobres e, em sua maioria, pardos e negros, dificilmente será bem-vinda nesta sociedade. Um interessante comparativo que podemos fazer aqui é com o caso da capoeira que, durante muito tempo, tinha a sua prática como crime, sendo fortemente reprimida neste período pelo estado e seu aparelho repressor, a polícia. Tomando a cidade do Recife como exemplo, posso citar duas ações que modificaram profundamente a configuração espacial da cidade e mais uma que certamente fará o mesmo. Uma delas foi a Liga Social Contra o Mucambo, seguida do Serviço Social Contra o Mucambo, organizações que nas décadas de 1930 e 1940 uniam agentes públicos e privados para a destruição das habitações, mocambos, e construção de casas populares para seus moradores seguindo alguns critérios como a atividade profissional, estado civil, dentre outros. Parte dos moradores dos mocambos foi beneficiada com casas, mas a maioria, os que não se enquadravam nesses critérios, foi desalojada sem direito a moradia. Os espaços ocupados antes por esses mocambos são os mesmos onde hoje se encontram muitos dos prédios do Centro do Recife que são alvo dos pichadores que são provenientes das áreas mais pobres da cidade. Nos últimos anos, temos acompanhado o processo de disputa entre o poder público local junto a grandes empreiteiras e movimentos sociais pela área do Cais José Estelita. Numa cidade com um enorme déficit habitacional e pobre em áreas de uso comum como é a cidade do Recife, a opção de uso daquele espaço que vem prevalecendo, inclusive passando por cima de trâmites legais necessários à sua implementação, é a da construção de torres de luxo para uma pequena parcela da população que pode pagar por elas. Mas se um garoto pega um spray e coloca uma assinatura ou um desenho num muro do Cais, está sujeito a ser detido e punido pela lei.
O perfil dos pichadores mudou?
Aqui é importante se fazer um parênteses sobre o tipo de pichação de que estamos falando. Isso porque existem diferentes formas de se expressar em público nas paredes da cidade com o uso de tinta e letras. Falo aqui do tipo de pichação onde um indivíduo se apropria do espaço urbano com uma assinatura que o identifica, identifica sua galera e faz ele se identificar com este espaço. A principal mudança na prática da pichação no Recife nos últimos anos foi o fim dos bailes funk e dos confrontos violentos entre as galeras ou comandos que representavam as diferentes comunidades do Recife. Algumas dessas comunidades colavam com outras formando alianças e não colavam com outras. As disputas entre elas se davam através das invasões, quando integrantes de uma galera rival invadiam a ré (bairro, comunidade) de outra galera usando a pichação como arma simbólica, demonstrando que tomaram território inimigo com suas tags. As divergências eram levadas pros bailes funk, onde essas galeras se batiam separadas por um corredor de seguranças. Muitas vezes essas divergências resultavam em assassinatos. Esse contexto teve fim e hoje, principalmente organizados em torno da Relíquias da Pixação (RDP), organizada pelo pichador Sola, os pichadores de maior destaque da época, alguns inclusive antigos rivais, se encontram pra se divertir, beber, falar sobre o picho e dar conselhos aos mais jovens, tudo num clima de muita tranquilidade. Quanto à idade, geralmente começam muito jovens e isso já ocorria antes. Existem pichadores de todas as idades. Os mais antigos, por terem formado família, terem trabalho e outros motivos, geralmente são mais cuidadosos e não saem com a mesma frequência de antes. Outros preferem parar. A grande maioria dos pichadores vem das camadas mais pobres da sociedade. As ações buscam os espaços de maior visibilidade na cidade, como o Centro da cidade e as principais avenidas.
O que é considerado conquista para um pichador? O que o torna destaque entre os demais? Pintar em pontos altos e praticamente inacessíveis seria ponto a favor?
Existem muitas características que fazem um pichador ser considerado, respeitado no meio da pichação. O primeiro deles é a humildade: por mais que um pichador se destaque ele tem que se mostrar humilde, não deve menosprezar nenhum outro, saber se comunicar, ensinar aos mais novos sobre como agir e botar os nomes. O pichador tem que ter muitos nomes pela cidade: quanto mais um pichador for visto mais ele vai ser respeitado e isso inclui o grau de dificuldade que apresenta algum suporte da cidade e o quão visto pode ser o nome desse pichador neste suporte. Assim, se um prédio é muito alto e pode ser visto de longe e o nome do pichador está no topo deste prédio, esse cara ganha respeito. O pichador tem que ser original e para isso ele precisa se esforçar durante muito tempo num processo de criação de sua assinatura que envolve a observação das paisagens pichadas da cidade, o contato com pichadores mais experientes e a observação de suas tags bem como seu esforço individual para criar uma assinatura com letras que tenham uma estética só sua. Este processo, por envolver esforço criativo dentro de um contexto sociocultural e histórico, na minha interpretação pode definir a pichação como uma manifestação artística.
Você contabiliza pelo menos quantos pichadores no Recife e Região Metropolitana do Recife? O movimento tem aumentado? Quem são os nomes de destaque hoje no cenário?
Não me arrisco a contabilizar quantos. O movimento tem sim aumentado. Posso citar alguns nomes que se destacaram no passado e são ainda lembrados pelos pichadores e alguns que são mais jovens e estão na ativa. Antigos: Cano e Well (trouxeram a pichação do Rio de Janeiro pra cá), Danger, Galo (Galo de Souza), o Líder Pus, Anêmico, Danadão, Duende, A Morte, Tiné, Skate or Die. Mais Recentes: Sola, Bidu, Menor, Shell, Stilo, Bidu, Fiel, Bubu, Lerdo, China, Net. Esses são alguns... mas tem muitos outros que se destacam, mas que não lembro agora.
Como se dá a participação das meninas?
Da mesma forma que a dos meninos. Seguem as mesmas regras de comportamento e de apropriação do espaço urbano. A diferença é que elas são minoria, o que é um campo muito interessante para pesquisas sobre gênero e sexualidade, o que não é o meu campo de estudos.
Como eles conseguem atingir pontos praticamente inacessíveis?
Subindo... rsrsrs... Olha... eles encontram um jeito. Depende do local. Na maioria das vezes eles escalam os prédios por fora mesmo, é o que eles chamam de escalada. Essa prática é muito mais realizada em São Paulo e foi trazida pra cá pelo ex-pichador e hoje empresário e rapper na Sem peneira pra suco sujo, Anêmico. Outras vezes, conseguem ter acesso ao prédio por dentro mesmo, sobem as escadas até ter acesso à parte exterior em um ponto alto. Mas geralmente eles escalam o prédio por fora mesmo.
Quanto um pichador investe por mês na atividade?
Muito dificil de responder essa pergunta, pois isso depende do pichador e de sua disposição. Essa pergunta é mais adequada a eles e aconselho que acrescente à mesma mais uma pergunta: Quanto tempo da semana você dedica à pichação e em quais horários vc sai?
Por que a sociedade sente tanta repulsa por eles?
A resposta desta pergunta é parte da resposta da pergunta três. Você pode mesclar ambas. Principalmente porque questiona um dos pilares de sustentação da sociedade e do espaço capitalistas: a propriedade privada. O conjunto de valores e práticas que constroem a moral dominante perpassa diretamente pelo consenso socialmente construído e reforçado pelos principais agentes de poder e seus porta-vozes, a grande mídia, de que ela, a propriedade privada, não pode ser tocada, ameaçada, pintada. Assim, do grande empresário ao morador de um bairro pobre do Recife que não teve contato com outra forma de compreensão destas manifestações, nunca aceitará ver seu muro, que protege sua propriedade, que é seu, modificado por outra pessoa que ele nem conhece. Para os pichadores, a pichação só é pichação quando não é autorizada. É, assim, em sua essência, um enfrentamento à produção do espaço urbano sob o domínio de quem pode possuir este espaço.
Qual o crime previsto no caso de flagrante deles? Você acha que essa punição deveria mudar?
A pichação é considerada crime ambiental pelo artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais. O mesmo artigo considera também os grafites como crime, pois proibe o grafite que não seja autorizado por proprietário ou órgão responsável pelo suporte que será pintado. Existem pinturas com técnicas de grafite em várias partes da cidade e em galerias de arte. Mas, segundo os próprios grafiteiros, o grafite tem como uma de suas principais características o ser feito sem autorização. Visto por este ponto, pichações e grafites se igualam para a lei e em sua aplicação nas ruas. Pouco importa se é uma assinatura ou um painel multicolorido que está sendo pintado. Se não foi autorizado pelo proprietário, se está transgredindo a propriedade privada, quem o faz está passível a pena de detenção de três meses a um ano e multa. Durante a pesquisa, fui detido com mais um grupo de cerca de 12 pichadores que faziam, não uma pichação, mas um grafite em homenagem a um amigo, também pichador, que morreu em um acidente de trabalho, o Torre. Era um grafite e estava sendo feito em plena luz do dia, no bairro de Boa Viagem, ao lado do Dona Lindu. Uma viatura parou, os policiais mandaram que parassem de pintar e perguntaram se a pintura estava autorizada. Os meninos disseram que sim e a viatura foi verificar na portaria do prédio, que confirmou o contrário. Em menos de cinco minutos, mais três viaturas pararam e levaram as quase quinze pessoas para a Delegacia de Boa Viagem, todos detidos para averiguação. Depois de algumas horas, todos foram liberados, eu um pouco mais cedo, mas não sem antes e só na delegacia, ser solicitado para mostrar meus registros fotográficos a um dos policiais para que ele constatasse: isso é grafite! Entretanto, registrei nas entrevistas que fiz pra minha pesquisa relatos de grafiteiros que afirmaram que o tratamento com eles é mais brando que com os pichadores. Entre esses últimos, dificilmente se encontra algum que não tenha passado por alguma situação de violência proporcionada pela polícia nas ruas. Mas ambos contam sobre serem encaminhados a delegacias, responderem TCO's ou pagarem penas alternativas por conta de suas ações. Acredito que o que deve mudar é a forma como essas ações são vistas e interpretadas. A punição pelas vias da lei já se mostrou uma solução falida visto que as ações não pararam por conta dela. Na verdade, a proibição só contribuiu para reforçar o caráter transgressor dessas ações. O momento agora é deve ser o de promover uma maior disposição da sociedade para expandir sua compreensão sobre o assunto e se colocar disposta a dialogar sobre ele e com os próprios pichadores. Ainda assim, acredito que estaremos longe de um consenso. Uma convivência tranquila entre os pichadores e demais parcelas da sociedade, na minha opinião, só seria possível na existência de uma outra sociedade, menos monetária e mais humana.
Mais notícias
Mais lidas
ÚLTIMAS