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Saúde População LGBT: nome social ainda não é respeitado em algumas unidades de saúde Travestis e transexuais encontram resistência de muitos profissionais e frequentemente passam constrangimento

Por: Alice de Souza - Diario de Pernambuco

Publicado em: 01/08/2015 16:30 Atualizado em: 28/09/2015 19:13

Cristiane Araújo precisou conversar com assistente social da UPA para que o nome social dela fosse respeitado e aparecesse no telão de chamada. (Rafael Martins/Esp.DP/D.A Press)
Cristiane Araújo precisou conversar com assistente social da UPA para que o nome social dela fosse respeitado e aparecesse no telão de chamada.
Ser chamada pelo nome social não é só um desejo ou capricho da auxiliar administrativa Cristiane Falcão, 43 anos. É um direito assegurado desde 2009, por meio da portaria federal 1820, do Ministério da Saúde, e reafirmado em documentos posteriores, como a portaria 233 de 2010, do mesmo órgão. O cartão do Sistema Único de Saúde (SUS) de Cristiane já consta a identidade de gênero dela. Mesmo assim, com todos os instrumentos legais lado a lado, a travesti é vítima da realidade. Na prática, na recepção de muitas unidades de saúde de Pernambuco, a legislação ainda é descumprida.

Cristiane descobriu isso de maneira constrangedora. Havia chegado à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro dos Torrões, no início deste ano, atordoada pelos sintomas da hipertensão. Entregou a documentação e aguardou, como todo paciente, ansiosa para ser chamada ao consultório. De repente, o nome de batismo, masculino, aparece no visor. Cristiane levanta, uma criança que estava ao lado reclama: “moça, não é você. Apareceu o nome de um homem na tela”. Todos os outros pacientes e acompanhantes olham.

Cristiane dá uma desculpa para a criança e vai para o atendimento. Ao sair, procura o serviço de assistência social da UPA para reclamar. “Você já está passando mal, então não tem muito tempo de reagir. Minha pressão subiu ainda mais”, lembra ela. Meses depois, Cristiane voltou ao serviço e o problema já havia sido corrigido. O drama dela, entretanto, ainda se repente com muitas amigas.

“A gente tem esses ganhos na saúde, mas em compensação não há cursos de formação. Muita gente não conhece, não sabe a importância de chamar pelo nome social. Muitas amigas minhas deixam de procurar médicos para evitar o constrangimento”, pontua.

Além do nome social, as travestis e transexuais enfrentam outras barreiras. São constrangidas ou impedidas de usar o banheiro feminino, não podem acompanhar alguns pacientes e, vez ou outra, são internadas em enfermarias masculinas. “Infelizmente, a sociedade tem preconceito e estereótipos. É mais fácil dizer que não aceita do que começar a refletir sobre identidade de gênero. É fundamental haver capacitação dos agentes de saúde”, comentou a transexual Dandara Alves.

 (Rafael Martins/Esp.DP/D.A Press)
Mudança


Diante do contexto social do Brasil, as portarias implementadas pelo Ministério da Saúde ainda não são suficientes. A opinião é do coordenador do Centro Estadual de Combate à Homofobia de Pernambuco, Hugo Felipe Lima. “O contexto é de discriminação, as pessoas ficam dependendo da humanidade das outras. Ninguém admite ser preconceituoso, mas desde o médico até o profissional da limpeza que solta uma gracinha, o preconceito acontece. Mesmo assim, os documentos existem para que se possa cobrar”, afirma.

O centro iniciou, desde 2012, um trabalho prioritário de capacitação na saúde. Mais de 400 pessoas já passaram pelas oficinas de conscientização. Neste semestre, as aulas deverão ser retomadas, percorrendo as 12 gerências regionais de saúde.

 

Entrevista especial

Ana Brito, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Pernambuco


A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, editada há três anos, é alvo de uma pesquisa nacional da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em Pernambuco, gestores, servidores e usuários das Unidades de Saúde da Família do Recife e Caruaru estão sendo entrevistados para atestar como a política está sendo implantada. Em entrevista ao Diario, a pesquisadora Ana Brito detalha o cenário encontrado até agora e explica a importância da política.

Qual o objetivo da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais?
A política é resultado de um esforço de militantes e profissionais para melhorar a qualidade e a assistência à população LGBT no país. Ela traz orientações para as gestões estaduais e municipais de ações que não sejam pautadas no estigma e na discriminação. Duas questões de centralidade no debate. As pessoas não só são discriminadas nos serviços de saúde pela orientação sexual, mas são especificamente discriminadas por isso. O padrão normatizado da sociedade é baseado nas relações heterossexuais, brancas, urbanas e centrado na fidelidade. Na saúde, é onde vamos encontrar talvez a expressão mais visível do que seja o estigma e a discriminação para as populações que não estão dentro do padrão normatizador.

Com base nas entrevistas já realizadas para a pesquisa até agora, é possível dizer de que maneira ocorre o preconceito contra a população LGBT nos serviços de saúde?

A pesquisa percorre 27 municípios de 16 estados. Em Pernambuco, realizamos 61 entrevistas. O que temos visto nesses grupos é que, primeiramente, eles são ignorados em sua diversidade. E, no segundo momento, os profissionais dizem que não têm preconceito, mas começam a tecer questionamentos com relação ao histórico familiar daqueles pacientes. Toda vez que você tenta fazer uma análise etiológica de uma condição, você já está imprimindo preconceito. Quando a pessoa é hetero, ninguém questiona se o pai era ausente ou a mãe opressora. Os profissisonais de saúde da atenção básica, temos visto, também desconhecem a existência da política.

O que as populações LGBT tem relatado de situações reais de preconceito enfrentadas?
Ainda existe um nível de intolerância muito grande, por parte do acolhimento dessas populações nos serviços de saúde. Essa expressão de não acolhimento muitas vezes é determinada não por um atendimento hostil. A discriminação se faz muito mais hoje pela indiferença e invisibilidade. É mais fácil o serviço ignorar ou fazer de conta que ignora a condição de orientação e identidade de gênero diferente e tratar o indivíduo com base no aspecto clínico que o levou ao hospital. Isso é uma forma velada de discriminação. Há também outras formas de discriminação, como uma transexual que não pode ficar com a avó porque a acompanhante tinha que ser “do sexo feminino”. A questão de uso de banheiro também é muito recorrente.



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