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Vida Urbana
Catástrofe

Dor, perdas e superação marcam relatos dos que enfrentaram a cheia de 1975

Publicado: 20/07/2015 às 23:21

Seu Vital perdeu todas as mercadorias de sua mercearia na época. Fotos: Rafael Martins/ Esp. DP/ D. A. Press/

Seu Vital perdeu todas as mercadorias de sua mercearia na época. Fotos: Rafael Martins/ Esp. DP/ D. A. Press/

Seis dias de dor, 107 mortos e 80 desabrigados. A cheia de 1975 deixou cicatrizes nas pessoas que viveram um dos períodos mais difíceis da história recente de Pernambuco. O ciclo de destruição e medo terminou no dia 21 de julho, com o pânico gerado por um boato criminoso de que a barragem de Tapacurá havia “estourado”. Mais três pessoas mjorreram, de ataque cardíaco. A seguir, confira relatos de quem perdeu tudo na catástrofe há 40 anos.

Seu Vital perdeu todas as mercadorias de sua mercearia na época. Fotos: Rafael Martins/ Esp. DP/ D. A. Press

“Só fiquei com a minha vida e a roupa do corpo”
Vital José de Barros (conhecido como Seu Vital), 75 anos, comerciante do Poço da Panela

“Naquela época, eu tinha 35 anos e já tinha a mercearia. Eu e minha família perdemos tudo. Só fiquei com a minha vida e com a roupa do corpo. Quando a água começou a subir no dia 17, eu peguei toda a mercadoria que estava no térreo e subi para o primeiro andar, que tinha 2,45 metros. A gente jamais imaginou que a água subisse até lá. Mas aos poucos o primeiro andar também começou a ser inundado e chegou a mais de meio metro acima. Nessa hora, a água já estava a 2,95 metros. Tínhamos muito mercadoria, muitas sacarias de arroz e feijão, era a metade do mês e não deu para salvar nada. Quando percebemos que não tinha mais jeito, fui para uma casa em frente à venda, que é muito alta. De lá, fiquei apreciando a água subir e acabar com tudo. No fim da sexta, dia 18, quando a água começou a baixar, já saí da casa do vizinho para tirar a água do primeiro. Não podia deixar a lama assentar. Até hoje, quando chove muito, fico apreensivo. Tenho medo que as barragens não suportem e a gente viva aquilo de novo. Fico com medo também quando o rio Capibaribe enche, para quem passou pelo que eu passei.”

Luzilá teve sua casa destruída pela enchente, no Poço da Panela
“Perdi um quadro de Cícero Dias”
Luzilá Gonçalves, escritora e moradora do Poço da Panela

“Era início da tarde do dia 17 de julho de 1975. Um carro de som da Codecipe passa avisando que uma enchente estava para chegar. Ninguém acreditou. Só depois de meia hora, quando a água começou a subir sem parar. Eu estava em casa e vi o muro da minha casa desabar, junto com algumas bananeiras. Na correria, salvei algumas poucas coisas, mas perdi algumas obras de arte, um quadro de Cícero Dias, uma máquina fotográfica alemã, os meus cachorros, livros, discos de vinil, roupa, fotos de casamento. Foi horrível. Muitas pessoas começaram a correr para a Igreja da Nossa Senhora da Saúde e subiram até o coro, que começou a estalar, como se fosse desabar. Foi uma gritaria só. Um barco começou a passar em frente à minha casa. Dentro de casa, a água subiu a 1,60 metros. Eu e meu marido conseguimos sair e chegar até a casa do meu pai, em Campo Grande. Depois de três dias, veio o boato de que Tapacurá tinha estourado. Quando conseguimos, retornamos ao Poço da Panela. O cenário era desolador. Não existia muro, portão, árvores. O sofá estava agarrado em alguma coisa. Uma mesa enorme de mármore estava virada de cabeça para baixo. E veio a lama e o barro agarrado a tudo. Era um cheiro podre”.

Maria José Chacon conseguiu reconstruir a casa onde vivia
“Só consegui salvar meu cachorro”
Maria José Chacon, 96 anos, aposentada, moradora de Campo Grande

“A cheia veio pela rua de trás, perto do Canal do Arruda, onde os meninos gostavam de brincar. Eu tinha 56 anos. A gente, eu e minha família, não tinha para onde ir. E media a altura da água com um pedaço de graveto, para saber se a água continuava a subir ou se estava descendo. Passei mais de meia hora parada, só olhando a água subir. Eu perdi tudo, inclusive a casa, porque era de taipa. Lembro de ver minha mesinha de protético e meu guarda-roupa indo embora carregada pelas águas. Só consegui salvar meu cachorro. Como não tinha para onde ir, meu genro veio me buscar, mas não sei como ele conseguiu chegar aqui. Depois de um tempo, minha filha arrumou um apartamento para eu morar. Mas eu queria voltar pra cá, voltar para minha casa. Passei tanto tempo sem voltar… porque não tinha dinheiro para reconstruir a minha casa. Demorou muitos anos mas aos poucos fui conseguindo reconstruir e consegui voltar, onde estou até hoje”

Marilena lembra que, sem muros, as casas foram invadidas com facilidade pelas águas
“Pegamos uma galinha na correnteza para comer”
Marilena Dourado, 69 anos, aposentada, moradora de Campo Grande

“Quando veio a primeira grande chuva, nós já começamos a ficar apreensivos, porque a gente já tinha vivido outras cheias. A rua começou a ficar alagada. Eu tinha 29 anos e como falavam muito de Tapacurá, ninguém imaginava que pudesse ter uma enchente de grandes proporções de novo. Aqui em Campo Grande, a maioria das casas não tinham muros e quando a água entrou nas casas com força, sem barreiras. No meio da rua, uma enorme cratera começou a se formar, causada pelas águas. Meu pai já tinha uma idade avançada, era deficiente e foi carregado por várias pessoas em cima de uma cadeira de balanço. No prédio em frente à nossa casa, tinha um apartamento que estava fechado pois estava sendo reformado por um rapaz que ia casar. Mas estávamos no desespero. Dentro da nossa casa, a água já tinha subido um metro. Só meu irmão que ficou em cima do telhado da nossa casa por um bom tempo. Outras famílias começaram a chegar e durante dois dias umas 15 pessoas se abrigaram neste apartamento. Sem água, sem energia, sem comida. Quando a chuva parou e a água começou a descer, meu irmão viu uma galinha boiando na correnteza e pegamos ela para comer, porque toda a nossa comida tinha apodrecido. Quando conseguimos voltar para casa, era hora de reconstruir a vida, tira a lama de cheiro podre. Poucas coisas foram recuperadas”.
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