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Drogas Usuários de maconha podem ser presos? A lei brasileira estabelece diferenças entre usuário e traficante, mas deixa espaço para interpretações

Publicado em: 09/06/2015 13:11 Atualizado em: 09/06/2015 14:07

A lei das drogas não determina os critérios que configuram uso e tráfico, deixando na mão de policiais e delegados a interpretação de cada caso. Foto: wowowoee/Flickr
A lei das drogas não determina os critérios que configuram uso e tráfico, deixando na mão de policiais e delegados a interpretação de cada caso. Foto: wowowoee/Flickr

Era maio de 2013 e a empresária Olívia (nome fictício), 29 anos, lavava sua moto em frente ao sítio onde morava, na Cidade Tabajara, em Olinda. Seria uma cena corriqueira, não fosse por um detalhe: Olívia fumava um cigarro de maconha. A ousadia aborreceu o vizinho, um policial militar, que reclamou. Olívia diz que não discutiu, prontamente se desculpou e apagou o baseado. Sem saber, ela assinava ali o passaporte para o inferno - como resume os 23 dias em que passou na Colônia Penal Feminina, acusada de traficar drogas.

Uma semana depois do atrito, Olívia estava chegando em casa quando foi abordada por agentes da segunda sessão da Polícia Militar, à paisana. "Eu estava sem absolutamente nada. Nenhum baseado, nem um isqueiro, nem seda, nem nada. Botaram o revólver na minha cabeça e perguntaram, na maior pressão psicológica, onde estava a maconha, enquanto rodavam comigo por vários sítios. Burra, disse que tinha em casa. Eles entraram lá, sem mandado, sem nada. Eu tinha 300 gramas e entreguei para eles", conta a empresária, que chegou a ser ameaçada. "Tu pega essa maconha onde? Ou tu cabueta alguém ou tu vai rodar". Como se negou a entregar quem lhe fornecia, Olívia, que afirma nunca ter vendido maconha, foi enquadrada no artigo 33 da Lei 11.343/2006 e acusada de tráfico de drogas, que prevê pena de cinco a 15 anos de reclusão.

Para o produtor Wilson Maraca, 33, que foi pego pela polícia em 2002 com um baseado - sete gramas de maconha - o inferno durou três meses. Abordado pela Polícia Militar durante o São João, em Campina Grande, ele assinou um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) na Paraíba e em seguida foi liberado. "De 2004 para 2006 fui várias vezes me apresentar à justiça e assinar papeladas. O juiz me disse que estava resolvido. Eu estava tranquilo, porque nunca vi ninguém ser preso com um baseado e sempre fui trabalhador."

Seis anos depois, a surpresa. "No final de 2008 chegou uma carta me chamando. Já pensei que podia ser alguma bronca e quando cheguei no fórum estava tudo certo para eu ser preso. Fui algemado, me botaram na mala e fui direto para o Cotel. No dia seguinte, para o meu azar, o fórum entrou em recesso. Fiquei desesperado", lembra Wilson, que passou natal e revéillon encarcerado. "Passei uma semana chorando. Queria saber porque estava ali dentro. Eu não entendia. Um lugar que só tem gente mal", recorda Wilson, que teve todas as guias e adereços religiosos quebrados quando chegou ao Cotel.

"Jamais imaginei na minha vida passar por um lugar daqueles, por uma situação daquelas. Dormi do lado de gente que esfaqueou o filho de cinco anos. Eu nem conseguia dormir, foram 23 dias de pânico. Vi duas mulheres em trabalho de parto no corredor, pedindo um médico, sem ninguém ajudar. As pessoas lá são tratadas como bichos e não como pessoas. Essa conversa de ressocialização é um nome bonito que escolheram botar, porque ninguém sai dali ressocializado de jeito nenhum", critica Olívia.

Wilson concorda. "O presídio hoje é lotado por pura banalidade. Um quilo de macaxeira, uma discussão e a pessoa é transformada em bandido ali dentro. Parece mentira, mas os caras querem fazer bandido. Lá, droga não falta, arma não falta. Você está em uma arapuca. Não me formei bandido por conta do trabalho que eu tenho, das crianças que cuido", conta Wilson, que usou crack durante o tempo em que esteve na prisão. "Tinha uma tosse muito grande, acho que queria me matar. Eu nem acreditei que passei por aquilo, nunca tive coragem de contar a ninguém", desabafa.

Em 2008, Wilson Maraca passou três meses preso por ter ter sido pego fumando um baseado em 2002. Foto: João Velozo/Esp DP/D.A Press
Em 2008, Wilson Maraca passou três meses preso por ter ter sido pego fumando um baseado em 2002. Foto: João Velozo/Esp DP/D.A Press

Depois de liberados, Wilson e Olívia compartilham a mesma sensação de injustiça. "Não tinha nenhum mandado de prisão no meu nome, nem constava que eu estava preso. Ouvi de gente do Denarc que ninguém é preso por causa de um baseado. Disseram que eu devia ter mexido com alguém muito sério para estar ali", revolta-se Wilson, que apanhou inúmeras vezes na prisão.

"No artigo 33 a vítima é a sociedade, mas nunca peguei em uma arma na minha vida, nunca fiz mal a ninguém e fui parar em um lugar, viver uma situação que nenhum ser humano, por mais que tenha errado, merece" conta Olívia, que acredita que foi o preconceito a verdadeira causa de sua prisão. "Por ser homossexual, por fumar maconha. Isso para um homem, policial, machista é uma afronta", conta a empresária, que diz ainda sentir os reflexos do tempo que esteve encarcerada. "Minha mãe não tem saúde mental nenhuma depois disso. Até hoje toma remédio controlado. Às vezes chego em casa e minha vó me abraça morrendo de chorar. Isso é o mais difícil. Para eu voltar a ter uma relação com meu pai não foi fácil. Foi difícil ver a filha dele parar no presídio, sendo chamada de traficante. Minha família nunca mais vai ser a mesma", desabafa a empresária, que também precisou voltar a morar com os pais.

Apesar da repressão, ambos não mudaram sua relação com a maconha depois de soltos. "Continuo fumando todo dia. Não vou em boca de fumo buscar, pego em grande quantidade mesmo, nunca vendi maconha na minha vida, meu dinheiro sempre foi do meu trabalho, do meu esforço. Fumar não muda meu caráter e nem a profissional que eu sou", afirma Olívia, que chegou a encontrar com o vizinho depois de ser liberada. "Ele perguntou se estava tudo bem, falou 'há quanto tempo' e ainda perguntou se eu estava viajando", recorda.


Lei 11.343/2006
A lei de drogas vigente no Brasil entende que há diferenças entre o usuário e o traficante, tratados, respectivamente, nos artigos 28 e 33. O texto, modificado em 2006, no entanto, não determina os critérios que configuram cada situação e deixa na mão de policiais e delegados a interpretação de cada caso. No artigo que trata dos consumidores, por exemplo, determina-se que é proibido adquirir, guardar, transportar ou trazer consigo a maconha e a pena pode variar entre prestação de serviços à comunidade, advertência ou medida educativa. No artigo direcionado ao comércio, no entanto, proíbe-se, entre outras coisas, as mesmas ações, sob penas que podem chegar a 15 anos de prisão.

Na prática, isso significa que, Olívia e Wilson foram presos, independemente das circunstâncias, porque houve espaço para isso. Para o gestor do Departamento de Repressão ao Narcotráfico (Denarc), João Leonardo, é preciso que os legisladores desçam do muro. "Acredito que quando a legislação foi criada, faltou detalhar algumas coisas que ficaram em aberto. Eles quiseram manter a tipificação de crime, porém, sem ter uma pena de prisão. Se ela cometer mil vezes o delito do uso, ela vai passar na delegacia, assinar o termo de compromisso e ser liberada. No máximo, a pena pode dobrar, então, se ela ia prestar três meses de serviço comunitário, agora vão ser seis. No meu entendimento faltou o legislador escolher", aponta.

Para o delegado, essa brecha acaba levando inocentes à prisão. "Imagine você, delegado, está no seu plantão, não está acompanhando a ação policial, não conhece os policiais militares e de repete chega lá uma mulher, com 300 gramas de maconha dizendo que é usuária. Os PMs dizem que têm denúncia que ela estava traficando e você, como delegado, faz o que? Você tanto pode estar liberando um traficante, quanto levando um inocente para a cadeia. Você está definido a vida de uma pessoa e isso não fácil", explica o gestor e destaca que a atuação do Denarc não tem como foco os usuários. "Nosso foco são os grandes distribuidores de drogas do estado de Pernambuco, o que não quer dizer que a gente vendo uma pessoa consumindo entorpecente na rua, a gente vai deixar de realizar nosso trabalho", pondera o delegado, que acredita que a discussão precisa voltar à Brasília.




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