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Serviço público de saúde bucal só atende cerca de 30% dos recifenses

Sete em cada dez moradores do Recife não têm acesso a dentistas na rede pública de saúde. A demanda abre brechas a serviços de baixa qualidade

Publicado: 10/03/2015 às 08:00

Há três meses, população da comunidade de Lagoa Encantada, no bairro do Ibura, não consegue marcar consultas odontológicas. Foto: Teresa Maia/DP/D.A Press/Crédito: Teresa Maia/DP/D.A Press

Há três meses, população da comunidade de Lagoa Encantada, no bairro do Ibura, não consegue marcar consultas odontológicas. Foto: Teresa Maia/DP/D.A Press(Crédito: Teresa Maia/DP/D.A Press)

Há três meses, população da comunidade de Lagoa Encantada, no bairro do Ibura, não consegue marcar consultas odontológicas. Foto: Teresa Maia/DP/D.A Press Os dentes são a vitrine do rosto. Demonstram não só o status de felicidade da pessoa como a qualidade do atendimento de saúde prestado a ela. Por anos, o Brasil foi considerado o país dos desdentados. Apesar dessa realidade estar mudando, algumas regiões permanecem em situação precária. Em Pernambuco, menos da metade da população procurou um odontologista há menos de um ano. Situação explicada não pela ausência de vontade ou conhecimento, mas de rede de atendimento. No Recife, a capital, só cerca de 30% dos moradores são cobertos pelo serviço municipal de saúde bucal. É na atenção básica o primeiro contato da maioria da população carente com o dentista. O “doutor” é o responsável por dar as orientações gerais de higiene e também por sanar aquela interminável dor de dente. É função dele, ainda, identificar problemas de média complexidade, como a realização de um canal, para encaminhamento aos Centros Especializados de Odontologia (CEOs). No Recife, são 154 equipes de saúde bucal. Número que, além de deixar sete em cada 10 pessoas desassistidas pela rede pública, não se equipara nem ao quantitativo de equipes de saúde da família, 269. Caso o percentual fosse igual, a cobertura populacional do serviço só chegaria a 50%. O resultado é PSF sem profissional e muita reclamação. No bairro de Campina do Barreto, na Zona Norte, a comunidade dependente da unidade de saúde da família Irmã Terezinha está há cinco meses sem dentista. Quando o profissional atuava, era responsável sozinho pela assistência de 9 mil pessoas. Há locais, como a Vila das Aeromoças, no Ibura, em situação ainda pior. Lá, um dentista atua sozinho para cobrir 5 mil famílias, ou seja, pelo menos 20 mil pessoas, seguindo o parâmetro de família do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Comecei tratamento e tirei dois dentes, mas o dentista parou de atender. Não tenho condições de pagar particular”, lamenta a dona de casa Marileide Lemos, 52 anos, cinco dentes na boca e com sonho de colocar “uma chapa”. Em várias outras áreas carentes da cidade, o drama se repete. Na comunidade Lagoa Encantada, no bairro do Ibura, uma única dentista é responsável por atender 12 mil pessoas. Ano passado, ela precisou tirar duas licenças. Neste ano, está atuando. Ainda assim, a placa do posto de saúde esclarece: as marcações estão suspensas. “Falta água destilada, a mangueira estourou e também não tem gases. Há mais de três meses está assim”, denuncia o presidente da associação de moradores do local, Silvio Lucena. O Sorriso de Fofão Jair Ramos, 44 anos, o Fofão, é o sorriso modelo do sistema de atenção bucal  da cidade do Recife. Com pouco mais de seis dentes na boca, ele sofre frequentemente com dores. Na comunidade onde mora, Lagoa Encantada, é conhecido como desdentado. O sonho dele é retirar os dentes restantes e, como ele mesmo diz, colocar uma chapa. O sistema público anda na contramão. Há meses ele não consegue sequer marcar uma visita ao consultório para profilaxia. Atualmente, Fofão espera com muito mais esperança pela solidariedade da irmã para resolver o problema. “Tenho até dente que entrou na gengiva depois de uma queda, mas nem lembro a data da minha última consulta”, disse, balançando a cabeça positivamente quando questionado se queria ter um sorriso bonito. Município ainda tem concurso vigente Posto Irmã Terezinha, em Campina do Barreto, passou cerca de cinco meses sem dentistaA ausência de profissionais suficientes para suprir as comunidades nas quais estão instaladas as unidades de PSF desemboca em um velho problema da saúde pública: as filas para conseguir uma marcação de consulta. Para visitar o dentista, muitos recifenses precisam sair de casa ainda de madrugada e esperar algumas horas em frente ao posto. Depois, conseguem agendamento para meses à frente. “Nas reuniões, a população sempre reclamava da dificuldade de acesso. Não existia um quadro reserva e muitas vezes ficávamos impossibilitados de trabalhar porque a auxiliar estava de férias”, contou um profissional que atuou durante sete anos no serviço municipal. O Recife tem um concurso vigente, realizado em 2012 e com validade prorrogada até o próximo ano. Segundo o Sindicato dos Odontologistas de Pernambuco (Soepe), foram aprovadas 582 pessoas. “Nas duas últimas conferências municipais ficou pactuado a equiparação das equipes de saúde bucal e de saúde da família, mas não aconteceu. É por isso que a saúde bucal é ruim”, pontua o presidente do Soepe, Ailton Coelho. O órgão irá solicitar os dados de outros municípios da Região Metropolitana para fazer comparativo. “Podemos ter condições bem piores, se for considerado que a prefeitura do Recife tem o maior orçamento do estado”, acrescenta ainda o presidente do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE), Rogério Zimmermann. Falta de dentista na rede favorece surgimento de serviços ilegais Profissionais também denunciam a estrutura geral da USF Irmã Terezinha. Foto: denúncia anônimaA ausência de profissionais dentistas na atenção básica de saúde e a precariedade dos consultórios, com cadeiras enferrujadas e sem material, abre caminho para práticas ilegais da profissão. Corre na boca da população de baixa renda de qualquer comunidade o endereço de um serviço de baixo custo próximo. Por valores de R$ 25 a R$ 30, é possível fazer uma obturação. Para extrair um dente, os valores sobem para R$ 40 a R$ 50, dependendo do bairro. Apesar do valor de uma clínica popular ser mais em conta, o preço pode ser um indicativo de serviço de baixa qualidade. No ano passado, o Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE) aumentou em mais de quatro vezes o número de fiscais para tentar frear a prática ilegal da profissão no estado. Atualmente, são 13 fiscais, sendo três na área de coordenação. Cada um deles faz, em média, 35 visitas por mês. Entre 2013 e 2014, as fiscalizações aumentaram 200%. No ano passado, foram 2 mil fiscalizações, resultantes em 60 interdições éticas e 49 denúncias à polícia de exercício ilegal da profissão (cuja pena é de detenção de 6 meses a 2 anos). Para se ter uma ideia, no ano anterior as estatísticas eram de 8 interdições éticas e duas denúncias de exercício ilegal. Por mês, o órgão recebe cerca de 40 denúncias da população. Em caso de interdição, é dado um prazo de 30 dias para o consultório se adequar às normas. “É importante a população confirmar o número de registro do profissional no conselho”, alerta o presidente do CRO-PE, Rogério Zimmermann. O Conselho tem registrados em Pernambuco cerca de 10 mil profissionais, dos quais pelo menos 8 mil estão em atuação. Desses, cerca de 40 a 50% atuam no Recife. Nos últimos 10 anos, quatro novos cursos de graduação foram abertos em Pernambuco, totalizando sete hoje disponíveis para ingresso de alunos. O que significa um acréscimo anual estimado de 300 profissionais no mercado. Poderia ser a solução para o déficit da rede municipal, mas os órgãos de odontologia apontam pelo menos duas ponderações. A primeira delas é com relação à qualidade da educação oferecida aos estudantes. “Alunos de um curso em Arcoverde, por exemplo, estavam no quinto período e ainda não tinham nenhuma aula prática. Se você tem profissionais formados em condições ruins isso vai se refletir em atendimentos de péssima qualidade”, pondera Zimmermann. Consultório do Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) do Pina, na Zona Sul, interditado eticamente pelo Conselho Regional de Odontologia (CRO-PE). Local já se regularizou. Foto: CRO-PE/divulgação

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ENTREVISTA ESPECIAL A coordenadora de Saúde Bucal do Recife, Ana Beatriz Vasconcelos, detalha o que a gestão está fazendo para sanar o déficit de profissionais. Por que o Recife não tem equipes de saúde bucal suficientes para cobrir a população? O Ministério da Saúde determinou, em portaria de dezembro do ano 2000, que deveria ser criada uma equipe de saúde bucal para cada duas equipes de saúde da família e assim foi feito na época. Inclusive, as unidades foram construídas levando em consideração essa quantidade de profissionais. Hoje, o órgão já reconhece a desproporção. Ainda assim, o Recife tem a maior cobertura da Região Metropolitana. Como o município pretende sanar esse déficit? Estamos em um movimento de implantar novas equipes, pois entendemos que há uma real necessidade e também sabemos da importância da saúde bucal. Estamos reformando as unidades para comportar mais equipes, só que as reformas precisam seguir um padrão de higiene, segurança e acessibilidade, além dos equipamentos. Vinte e duas unidades já foram entregues e outras 18 estão com obras em andamento. Discutimos previamente para onde serão transferidos os atendimentos enquanto a obra acontece. Temos quatro urgências. Entregamos as unidades fazendo a equiparação das equipes de saúde bucal com saúde da família. Também licitamos, em 2013, 150 cadeiras odontológicas, com investimento de R$ 1 milhão, e estamos esperando as reformas para cada unidade recebê-las. As Upinhas, por sua vez, têm três equipes de saúde bucal cada. Vamos entregar mais duas Upinhas ainda neste semestre. O que podemos estamos fazendo, inclusive buscando materiais de melhor qualidade, para ter tratamentos resolutivos. Muitos equipamentos estão vindo de São Paulo, por isso demoram mais, só que ainda assim estamos pactuando a substituição por modelos temporários. Vocês pretendem chamar os profissionais aprovados no concurso? Desde 2013, quando a gestão assumiu, já foram chamados 70 profissionais. Pretendemos chamar em torno de mais 40, até o fim deste ano. Tanto para a atenção básica quanto para os CEOs. Algumas unidades que reivindicavam há tempos, como a Macaxeira, irão receber uma equipe de saúde bucal em breve. Não podemos chamar um dentista do concurso e simplesmente colocá-lo em uma unidade sem equipamentos adequados.

 

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