° / °

DP +Saúde

Uma luta diária contra o capacitismo

Publicado: 30/08/2021 às 09:05

/Foto: Rômulo Chico/Esp.DP

/Foto: Rômulo Chico/Esp.DP


"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". O emblemático trecho do Artigo 5° da Constituição Federal é, na teoria, um dos ditos mais bem sucedidos da legislação brasileira e representa o modelo de sociedade ideal. Na prática, no entanto, milhões de brasileiros encaram uma realidade que vai de encontro às garantias previstas nas entrelinhas da Carta. 

Jornalista, maquiadora, confeiteira, artesã e estudante de direito, esses são apenas alguns substantivos que ajudaram na formação da identidade e consciência de Pamela Melo, de 24 anos. Mas nenhum deles, isoladamente, é suficiente para explicar a complexidade de um ser humano. Ainda no pré-natal, no sétimo mês de gestação, a mãe, Aparecida Melo, descobriu que Pamela nasceria com Osteogênese Imperfeita, popularmente conhecida como "doença dos ossos de vidro". Essa é uma patologia genética, que ocorre pela ausência da produção de colágeno e, por isso, ocasiona a fragilidade dos ossos. De acordo com a Associação Brasileira de Osteogênese Imperfeita (Aboi), cerca de 12 mil pessoas convivem com a doença no Brasil. 

Ao todo, Pamela já teve 24 fraturas pelo corpo por conta da fragilidade dos ossos. Mas, diferente do que muitos equivocadamente pensam, a deficiência não a condicionou a ser uma pessoa sem autonomia. Pelo contrário. A jornalista realiza suas atividades cotidianas assim como qualquer outra pessoa. E, segundo ela mesma, não precisa ser enxergada como super-heroína por isso. Até porque, as maiores dificuldades do dia a dia nada têm a ver com a condição física. É o capacitismo - discriminação e desumanização da pessoa com deficiência - seu maior entrave. 

"Na Grécia e na Roma Antiga, pessoas com deficiência eram mortas. Não existe relato histórico sobre nós por conta disso. Na Era Medieval, começaram a nos ver como coitadinhos. Nunca fomos introduzidos na sociedade, sempre como algo à parte. Uma vez fui pagar umas contas e na fila uma mulher perguntou à minha mãe: 'por que você não a interdita para fazer as coisas para ela?'. Respondi que não precisava ser interditada, eram as minhas contas. Já ouvi também que pessoas com deficiência não gostam de trabalhar. Esse capacitismo está enraizado desde muito tempo", diz. 

A antropóloga Anahi Guedes de Mello descreve no artigo Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC, que a manifestação da deficiência lesiona o ideário eugênico de corporeidade grega tão intimamente enraizado em nós. No caso do capacitismo, ele alude a uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade (um corpo visto/aceito como padrão/normal). É uma categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações sexuais, etc.

Conforme a pesquisadora, essa postura vem de um julgamento moral que associa a capacidade unicamente à funcionalidade do corpo e se mobiliza para avaliar o que as pessoas com deficiência são capazes de ser e fazer para serem consideradas plenamente humanas.

Pamela sentiu isso na pele no mercado de trabalho. Quando ainda estudava jornalismo na universidade, teve quatro candidaturas a vagas de estágio negadas exclusivamente por conta de sua condição, com as justificativas de que "não se encaixava no perfil". Em 2019, se tornou a primeira estagiária com deficiência da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Para ela, o comportamento capacitista tem um impacto ainda maior sobre as mulheres com deficiência quando atrelado a outro problema social, o sexismo. "O capacitismo está muito mais atrelado à mulher com deficiência. A mulher 'tem que saber cuidar da casa’, saber ‘cozinhar’ ‘cuidar do marido’ quando casa. Quando olhamos para isso, a mulher com deficiência é ainda mais atingida, porque surgem questionamentos, por exemplo, de como ela vai cuidar dos filhos", explica. 

"Se vê a pessoa com deficiência como alguém que está sempre perto de alcançar, mas nunca alcança. A gente muitas vezes não tem o direito de ficar triste, tem que ser sempre aquela pessoa de superação. Mas nossa vida é normal, como a de qualquer outra pessoa", continua. 

Uma das alternativas para que os estigmas sejam quebrados é através da representatividade. "Ensinar à sociedade sempre será a melhor forma. Dizer ao filho desde criança que o aluno com deficiência é normal como qualquer outra criança. As pessoas nunca vão saber da realidade da pessoa com deficiência se não falarem sobre isso. O que acho que muda essa situação é termos representatividade. Ver na Câmara dos Deputados uma pessoa com deficiência, um vereador com deficiência que fale sobre pessoas com deficiência e lute por nós”. 

"Não nos vêm como seres humanos"

Aos 17 anos de idade, Petreson Eloy, também conhecido como Petinho, deu início à sua trajetória no teatro. “Comecei minha carreira na igreja. Depois comecei a fazer testes em teatros”. Em um dos testes, conseguiu uma das 60 vagas entre mais de 300 atores e atrizes que pleitearam a oportunidade. "Depois comecei a entrar em espetáculos grandes, de diretores e produtores grandes, como Roberto Costa, Jason Wallace", conta.  

O ator e humorista, de 42 anos, é um dos protagonistas do programa de humor e entretenimento Papeiro da Cinderela. Mas o caminho até conseguir o feito não foi fácil. Também no caso dele, não devido à condição de anão, mas à ausência de debates sobre os direitos das pessoas com nanismo. Os contratempos geralmente aparecem nas atividades consideradas rotineiras na vida sem pandemia, como ir a shows. Petinho explica que não existem locais reservados para pessoas com nanismo nesses locais e isso acaba provocando o distanciamento delas desses espaços. A utilização do transporte público e as idas às lojas de roupas e calçados também são um problema. "A gente sente dificuldade no transporte público, por conta da catraca que é alta ou ao chegar numa loja e não ter um tênis do tamanho do pé, a mesma coisa acontece com roupa". 

A infantilização dos corpos de pessoas com deficiência se configura como outra prática do capacitismo. Tal comportamento, mesmo que reproduzido de forma inconsciente, afeta na autonomia da pessoa com deficiência e alimenta a ideia de que elas são mais vulneráveis somente por conta das suas condições. “As pessoas acham que a gente é um bobo da corte, nos acham engraçados. Não nos vêm como seres humanos, profissionais, como um advogado, uma médica e uma cabeleireira", lamenta Petinho.  

"Já me abordaram na rua pedindo para eu dizer à criança que eu não comi verdura e fruta e por isso fiquei anão. Algumas crianças têm medo de anões, porque as famílias pintam nossa imagem como bichos”, acrescenta. Para o humorista, a sociedade deixará de ser capacitista quando houver mais empatia entre as pessoas. “As pessoas deveriam deixar de ser um pouco mais egoístas, de pensar só em si e pensar mais no outro. Acho que esse é o caminho para a gente melhorar".
Mais de DP +Saúde