De Pernambuco para a Alesp: Travesti, negra e nordestina, Erica Malunguinho marca a história
Publicado: 02/10/2021 às 09:00

/Sandy James / esp. DP foto. (@sandyjamesfoto)
A primeira travesti a se eleger nominalmente como deputada no Brasil é pernambucana. Erica Malunguinho (PSOL) abriu as portas para a diversidade dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e de todo o Brasil. Eleita em 2018, Erica passou por um longo caminho dentro e fora da Casa, inclusive enfrentando dificuldades com outros parlamentares. Mulher, negra, trans e nordestina, a deputada fez história ao chegar na maior Assembleia Legislativa da América Latina.
Em entrevista exclusiva ao Diario, Erica revelou que sua candidatura não foi planejada. “Quando eu vi que a gente precisava eleger alguém com um discurso forte de gênero e raça, e eu não vi a possibilidade de eleger outra pessoa, eu me coloquei nesse lugar”, compartilhou. Desde sua entrada, a deputada relatou que a Alesp agora é uma Casa diferente. “A maior Assembleia Legislativa da América Latina foi reeducada para entender um corpo trans e preto”, cravou. “Entre mortos e feridos, houve um avanço”, completou.
Apesar de morar em São Paulo há 20 anos, a deputada afirmou que é no Leão do Norte que ela restabelece as energias. “Meu Axé está em Pernambuco”, disparou. Através do exemplo da família, a parlamentar desde pequena foi engajada em pautas políticas. “Eles [a família] sempre olhavam para a política como um lugar a ser engajado, sabiam que ali era onde as questões poderiam ser resolvidas. Por mais que fosse uma família com baixíssima escolarização, a política nunca foi algo distante”, explicou. Essa foi a primeira visita de Erica a sua terra desde a pandemia, a deputada não veio tratar de assuntos políticos, apesar de receber convites para agendas. "Eu preferi me cuidar e cuidar da minha mãe. Isso também é um ato político, uma mulher negra, trans e nordestina em São Paulo pensar na sua saúde mental”, comentou.
Entrevista com a deputada Erica Malunguinho
Como foi a sua entrada na política?
Criei em São Paulo um Quilombo Urbano, um espaço de arte, cultura e política negra, que se chama Parelha Luzia, é um dos espaços pretos mais importantes do Brasil. Isso me ajudou a sistematizar as ideias e colocar em prática tudo que eu já pensava sobre gênero e raça, uma mulher trans que pariu o quilombo, isso foi um marco. Chegou o momento em que, nas eleições de 2018, eu estava engajada para eleger duas pessoas, uma para federal e uma para estadual, como a política sempre teve próxima de mim, nunca foi distante, eu sempre pensei nisso. Quando eu vi que a gente precisava eleger alguém com um discurso forte de gênero e raça, e eu não vi a possibilidade de eleger outra pessoa, eu me coloquei nesse lugar, não foi planejado. Eu me candidatei porque sabia da credibilidade que tenho junto aos movimentos e fui levar para debates públicos temas que estavam latentes. Não diminui nem um milímetro tudo que eu sempre falei e meu discurso radical de gênero e raça.
Quais foram seus projetos favoritos neste primeiro mandato na Alesp?
A maior assembleia legislativa da América Latina foi reeducada para entender um corpo trans, preto, que traz essas pautas como um marco. Todo esse mandato foi baseado nessas pautas de gênero e raça. Em todo momento a gente fez diversos afrontamentos. Proteção dos povos de matrizes africanas, com a retomada da guarda da mãe que perdeu a criança por iniciá-la no candomblé. Outra conquista importante, mulheres trans agora podem ser atendidas pela delegacia da mulher. A gente equipou uma escola quilombola inteira com computadores e modernizou o local. Tem muitas situações bonitas. A gente conseguiu derrubar o PL que proibia pessoas LGBTQIA%2b de estarem na mídia, conseguimos apoio de mais 800 empresas multinacionais, foi uma grande união para a derrubada de um PL e nunca um mercado financeiro participou ativamente de uma pauta política. Diversas outras situações, acho que fizemos PLs bem vanguardistas.
Tem muitas situações legislativas, mas tambem de ordem da nossa presença, a formação de um gabinete 100% negro. Algo inimaginável até então para um espaço institucional como esse. Foi um processo político e pedagógico para a Alesp e a sociedade. Eu fui a primeira deputada trans nominalmente eleita no Brasil. Nas últimas eleições municipais conseguimos eleger mais de 20 pessoas trans, abri uma porteira e a gente educou as pessoas. A presença desse corpo no espaço político vem a reivindicar questões muito importantes. Tem muita coisa bonita nos nossos projetos, é até difícil de lembrar de tudo. Conseguimos fazer mais do que o governo do estado fez em um ano.
Houve resistência da sua presença na Câmara por parte dos Parlamentares?
Enfrentei sim diversas situações complicadas, até hoje enfrento. Eles vêem um projeto meu, já acham que é de raça e gênero e ficam empurrando falácias e ideias mentirosas de ideologia de gênero para tentar prejudicar meus projetos. Acontecem esses bloqueios, esse bloco ultraconservador, apoiadores desse presidente acidente da história e acabam fazendo essas intervenções. Tiveram outras situações mais explícitas, além de tentar me bloquear institucionalmente, por exemplo, em uma conversa sobre orçamento vieram me perguntar se eu era operada.
Já teve um deputado que disse que se uma pessoa trans entrasse no banheiro que a mãe dele estivesse, ele tiraria a trans a tapa e chamaria a polícia. Prontamente eu respondi institucionalmente e abri um processo contra ele por quebra de decoro parlamentar por incitação ao ódio e violência, era um recurso que não era muito usado na Alesp. Tem situações de acharem que o racismo não existe e esses discursos que não ajudam em nada a romper com algo tão sério e violento, arraigado nas profundezas na construção da sociedade brasileira.
Enfrentei isso sim, mas eles melhoraram, se educaram, hoje não são tão rasos. Aquela curiosidade e fetiche com meu corpo passou, estamos agora em outro ponto. Mas essas situações ocorreram bastante, inclusive fora da Alesp. Teve um dia que havia uma manifestação negacionista na porta da Alesp, e eles me viram pela janela do meu gabinete e começaram a gritar que Paulo Freire ensinava as crianças a se tornarem “aberrações transexuais”.
Teve alguém que você não esperava demonstrando apoio?
Sem dúvidas, nem tudo foi desabor. Os funcionários da casa sempre foram receptivos comigo e são entusiastas da minha presença ali dentro. São mensagens positivas em relação a minha presença. O corpo da PM que também fica ali dentro foram muito atenciosos e simpáticos comigo. Deputados, fora do campo progressista, também tiveram posicionamentos muito respeitosos comigo. Do campo da direita, muitos tiveram o respeito necessário e básico. Apesar de resistências, tem sim ponderações e pessoas que se relacionaram comigo de maneira muito positiva.
Entre mortos e feridos, houve um avanço. Eu fui nomeada para o conselho de Ética, acho que isso é um reconhecimento do meu posicionamento político e da coerência da minha atuação. Permaneço na Comissão de Direitos Humanos. Mesmo tendo essas questões de gênero, eu fui indicada para a Procuradoria da Mulher, pela presidência da casa. Então houve acenos positivos que mostram o processo de educação e evolução.
O que você gostaria de fechar até o seu mandato acabar?
Eu queria que a gente conseguisse destinar todos os recursos das emendas parlamentares que nós temos. Toda a oposição enfrenta essa dificuldade, por conta do governador [João Dória, PSDB], para liberar os nossos valores para os movimentos e organizações que a gente escolhe para nossas pautas. Quero conseguir entregar essas emendas. Quero construir mais projetos, como a cota para pessoas trans em serviços públicos. Quero que as pessoas olhem para a política como um lugar acessível, que qualquer pessoa pode e deve estar, se quiser. Tem esses legados que são mais institucionais e esse que é mais compreensão do mundo. As pessoas podem acessar seus parlamentares e devem entender que aquele lugar não é para os poucos de sempre, para os mesmos dedos dos mesmos anéis, é do povo.
Como estão os planos para 2022?
Estão em construção. A gente tem a responsabilidade com o projeto político de construir expansões. Precisa-se verificar onde o projeto político em torno do debate racial e de gênero, da defesa dessas populações, como esse projeto se expande. Então está em curso o planejamento para saber o melhor lugar para esse projeto. O PSOL, sem dúvida, hoje é o lugar onde as minorias políticas encontraram espaço para ecoar voz. Embora, no início, tenha tido alguns embaraços, abrir a porta significa garantir não só a entrada, mas também a permanência, então o investimento e o apoio do partido é fundamental para essas candidaturas. É algo prontamente em resolução, o PSOL não só acolhe, mas também trabalha para garantir políticas afirmativas na distribuição dos recursos partidários. Há o processo de investimento nas candidaturas, negras, femininas, LGBTQIA e indígenas.
Isso é pioneiro, esse compromisso que o partido assume junto aos reais problemas da sociedade. Até então a gente debatia os problemas sociais muito baseado em uma discussão de classe. A Classe é importante, mas só se a gente compreender o que causa as disparidades de classe, exatamente as questões identitárias. Entender classe no Brasil significa destrinchar isso, olhar para essas identidades é aprofundar a noção de desigualdade. O PSOL tem abarcado isso de forma muito positiva.
Em 2022, o PSOL vai apresentar mais candidaturas travestis e trans?
Sem dúvida. Não é o partido que apresenta, é a sociedade, grupos organizados e movimentos sociais, além de pessoas independentes, como eu, que se lançam nesse lugar para fazer voz a essas pautas. Se tem gente disposta a isso, se tem gente trans, pretas, dispostas e com vigor para enfrentar uma campanha e garantir seu projeto, sem dúvida o partido acolhe.
Em sua opinião, como o cenário de violência contra pessoas travestis e trans no Brasil poderia começar a mudar? Qual seria o caminho a ser tomado?
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e é o que mais consome pornografia de pessoas trans. Existe um abismo que é construído a partir dessa falsa moralidade, hipocrisia, que quer atacar os nossos corpos como se nós fossemos a perversão, quando na verdade a perversão está na mente de quem consome e maltrata e violenta nossos corpos, e qualquer pessoa, pelo fato de serem quem são. Isso é resultado do apagamento da nossa existência, dos processos de exclusão que começam em casa, perpassam pelas escolas e pelo mercado de trabalho. Uma vez colocadas à margem, a gente está a sorte de toda violência possível, intensificada pelo ódio. O ódio nos leva para as ruas, e esse ódio intensifica quando mesmo na sarjeta ainda estamos vivas. É um projeto muito parecido com outras formas de opressão com outros grupos, como a população negra, indígenas e etc. É um fato que precisa ser transformado. Não há violência que afete uma comunidade e não volte para a sociedade. A violência só alimenta mais violência e isso precisa ser mudado.
Eu vejo essa mudança acontecendo com a naturalização da nossa presença nos espaços de sociabilidade saudável. É importante que nós estejamos na política, nas universidades, em qualquer lugar que mostre que a nossa existência não está fadada àquilo que nos colocaram. Eu vejo a transformação por esse caminho, e isso perpassa por uma construção de políticas públicas afirmativas. Campanhas para acabar com a LGBTQUIA fobia nas escolas, conscientização das famílias, cotas para as poucas que conseguem chegar nas universidades, assim como a da população negra, extremamente relevante que mudou a cara das universidades brasileiras. Precisamos de políticas públicas, para a sociedade se organizar de maneira afirmativa.
Como figura de representatividade, que mensagem você passaria para as crianças LGBTQIA ?
Eu queria que elas soubessem que existem muitas pessoas iguais a elas, todos os adultos LGBTQIA já foram adolescentes e crianças. Embora a gente veja muita violência, é importante a gente se fortalecer quanto comunidade, encontrar nossos iguais para enfrentar a violência. Já foi pior, quer dizer que estamos caminhando, não estamos paradas, estamos em movimento e a luta das mulheres, LGBTQIA e do povo preto são importantissimas nao só para a gente mas para a sociedade como um todo, estamos humanizando a sociedade. A diversidade é a lei absoluta da humanidade.

