Livro

As memórias de um guerrilheiro

Maranhense Dagoberto Alves Costa relembra em livro a história dos universitários que foram para o Araguaia com intuito de derrubar o regime militar

Publicado em: 05/05/2018 11:10 | Atualizado em: 05/05/2018 13:24

Ex-guerrilheiro, Dagoberto escreveu um livro sobre a Guerra do Araguaia. Foto: Paulo Paiva / DP

Eles eram jovens idealistas universitários que foram em busca de um sonho, o de implantar no início dos anos 1970 o socialismo no país por meio do movimento armado. Estavam convencidos que teriam êxito com base na experiência vitoriosa da Revolução Chinesa. O plano consistia em derrubar o regime militar vigente, implantar o comunismo no Brasil a partir do campo e oferecer uma sociedade mais justa e igualitária. Mas ao se descolarem para uma região de floresta de difícil acesso, ao sul do Pará, o que encontraram foi um ambiente hostil, doenças, fome e morte na Guerrilha do Araguaia (1972-1975).

Passados quase 50 anos, o ex-guerrilheiro Dagoberto Alves Costa, 74 anos, um dos personagens vivos dessa história decidiu transportar suas lembranças e experiências dos anos de chumbo para algo que não se perdesse nas páginas da memória. Optou então por escrever seu primeiro livro: Memórias do Araguaia – Depoimento de um Guerrilheiro. A obra será lançada terça-feira, às 19h, pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), na Livraria Cultura do Paço Alfândega, no Recife Antigo.

Dos 70 jovens universitários transformados em guerrilheiros do PCdoB, pouco mais de uma dezena sobreviveu, dentre eles, o ex-deputado federal do PT José Genoíno. “Sobreviveram eu, Dower, Danilo Carneiro, Luíza e Regilena. Houve outras pessoas que escaparam, cerca de 10 a 12. De lá para cá quase 50 anos se passaram e com o tempo as pessoas morreram”, comentou.

O ex-guerrilheiro conta que foi um dos últimos a ir para o Araguaia e que ao chegar na região não havia estrutura, a comunicação era precária, não havia sequer rádios de comunicação e os estudantes não tinham experiência de sobrevivência na floresta. “Eu me vi jogado em plena floresta Amazônica, pronto para derrubar a ditadura militar e implantar o comunismo no Brasil, juntamente com um punhado de estudantes e militantes mal armados e pior treinados ainda”, conta o autor no livro.

Dos 70 jovens guerrilheiros da década de 1970, cerca de 10 sobreviveram. Foto: Paulo Paiva / DP
Ao entrar para o movimento, Dagoberto recebeu o codinome Miguel e foi apelidado de “Bigode” pelos camponeses do Araguaia. Por muito tempo evitou revelar seu passado até mesmo para a família. Seus dois filhos só vieram saber detalhes da trajetória de militante político do pai mais de 20 anos depois. O ex-guerrilheiro é casado com a deputada estadual Terezinha Nunes, uma das maiores incentivadoras da publicação do livro. Em entrevista ao Diario de Pernambuco, ele contou que a tensão na floresta era permanente. Revelou também como os guerrilheiros foram cercados, perseguidos, presos e muitos mortos pelos militares. A aventura inconsequente, como classificou, lhe rendeu dois meses e meio de atuação na guerrilha, além de dois anos na prisão, após ser capturado pelas Forças Armadas.

Na obra, o ex-guerrilheiro detalha como entrou na luta armada a convite de seu primo Douglas, que integrava o PCdoB. Também aborda sobre sua infância no Maranhão e adolescência no Rio de Janeiro, quando os movimentos estudantis estavam em efervescência. Com riqueza de detalhes, o autor narra como ele e seus companheiros enfrentaram as intempéries da região, conhecida como Bico do Papagaio.

O campo de batalha ocupava uma área de 15 mil quilômetros quadrados entre os estados de Goiás, Maranhão e Pará, no meio da selva. “Fomos atrás de um sonho, de implantar o socialismo e encontramos a fome e balas. Tudo lá era hostil. A fome era terrível e os mosquitos, inimigos implacáveis”, conta Dagoberto.

O autor abre espaço para dizer que um dos erros da direção do PCdoB – o de acreditar que os guerrilheiros teriam apoio dos camponeses na investida – ajudou na derrocada do movimento. “A história de que os camponeses nos auxiliariam com a doação de alimentação era pura fantasia. Ameaçados e cooptados pelas Forças Armadas, os camponeses não sabiam nem o que era o comunismo e não se envolveram na questão política”.

Dagoberto revela, ainda, que o Exército Brasileiro desconhecia o inimigo e teve medo inicialmente. Mas à medida que estudaram a região, fecharam a área e perceberam que os guerrilheiros, sem experiência na selva, praticamente desarmados e famintos, seriam presas fáceis. “Eu tinha um revólver 38, outro uma 45 e outro com uma 12, enquanto que os militares tinham fuzis, que têm um poder de fogo terrível, além de metralhadoras”, afirmou.

Dagoberto não esconde a mágoa com o PCdoB pelo abandono e a decepção após sua libertação da prisão. De acordo com ele, os poucos guerrilheiros que sobreviveram não receberam nenhum apoio psicológico nem ajuda para se reintegrarem ao mercado de trabalho. “Durante um bom tempo senti a sensação de que vinha sendo perseguido. Estava sem documentos e sem emprego, tinha deixado a faculdade. Fiquei meio perdido…. Até hoje nunca fui procurado por algum dirigente, mesmo intermediário, para essa conversa”, destaca o autor ao lamentar a ausência do partido.

Análise da notícia

Ayrton Maciel // Jornalista

Na clandestinidade, foi Miguel para os companheiros e Bigode para os camponeses. Na legalidade, era Dagoberto Alves Costa, um estudante maranhense. Durante 22 anos, os três silenciaram sobre um episódio político histórico da vida brasileira, do qual foram um personagem: a Guerrilha do Araguaia (1970-1974), o movimento armado desencadeado pelo PCdoB no sul do Pará. Em 1996, descoberto e entrevistado pelo Diario de Pernambuco, Dagoberto - atualmente com 74 anos - revelou as duas faces de um revolucionário e historiou os momentos vividos antes, durante e após a prisão no Araguaia.

O pontapé da entrevista do DP, que abriu uma série sobre o episódio, foi dado por uma reportagem especial do jornal O Globo, do Rio de Janeiro. O Brasil discutia, então, o direito à verdade e a reparação às vítimas. A reportagem do jornal carioca abordava dados de mortos e sobreviventes, alguns destes com falas, da Guerrilha do Araguaia. Porém, sobre Dagoberto - preso e solto em 1974 - só havia uma cópia de foto do dossiê do Exército sobre a guerrilha e a informação de estava morando no Recife. O Globo não tinha localizado ou se interessado pelo personagem.

Com a pauta aberta, o DP foi a campo. A dedução mais lógica facilitou a busca por Dagoberto, Miguel e Bigode, três personagens em um dos poucos sobreviventes da guerrilha. A primeira dedução se confirmou: qualquer informe sobre o paradeiro do ex-guerrilheiro só seria conseguido com quem combateu - no Araguaia - ou com algum dos aparelhos de repressão do Estado brasileiro. E uma das instituições mais atuantes tinha sido a Polícia Federal.

A impressão inicial era de que teria pouca chance de sucesso. A obrigação era tentar,  insistir até que o “não” fosse convincente. Como se consolidava, gradualmente, a democracia - o país já tinha eleito dois presidentes, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso - e havia uma vontade nacional de conhecer os fatos e reparar os crimes da ditadura de 64, a pequena chance poderia se tornar realidade. Mas, estava preparado para ouvir um não e conselhos do tipo “melhor não meter o nariz em vespeiro”.

O primeiro contato foi com o setor mais próximo do público. No contato, em vez de um retumbante “não”, o agente apresentado surpreende: “Vamos ver se temos a informação, o que pode ser feito para ajudar (a reportagem)”. No dia seguinte, no segundo contato, o agente foi objetivo: “Dagoberto mora na rua tal, número tal e edifício tal. Procure o resto. Agora, se revelar a fonte vai se ver com a gente”. Aviso dado, ajuda agradecida.

Com o endereço em mãos, rápido encontramos o fone na lista telefônica. Na primeira ligação, uma mulher atende. A voz não era estranha. Perguntando se era da residência de Dagoberto Alves Costa, a resposta foi sim. Identificados o DP, o repórter e a reportagem, a resposta também foi clara: “aqui é a jornalista Teresinha Nunes”. A surpresa inicial foi de imediato substituída pelos esclarecimentos. Casada com Dagoberto, a jornalista - que viria a ser secretária de imprensa do governo Jarbas Vasconcelos - tinha escondido, por 22 anos, até dos filhos, o passado de militante estudantil e guerrilheiro do companheiro. A entrevista estava marcada.

* Ayrton Maciel foi o primeiro jornalista a revelar a história de Dagoberto ao Brasil, através de uma reportagem publicada no Diario de Pernambuco,
em 2 de junho de 1996.

Serviço

Lançamento do livro Memórias do Araguaia – Depoimento de um ex-guerrilheiro (Cepe Editora)
Quando: 8 de maio, às 19h
Onde: Livraria Cultura, no Recife Antigo
Preço: R$ 30,00 (livro físico) e R$ 12,00 (E-book)

 

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