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Moralistas não praticam o que exigem dos outros

O dia em que Carlos Lacerda, o maior moralista da República, acusou Josué de Castro de corrupção

Publicado em: 06/02/2018 07:21

Foto: Pedro Ladeira/AFP
 (Foto: Pedro Ladeira/AFP
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Foto: Pedro Ladeira/AFP (Foto: Pedro Ladeira/AFP )

O problema dos moralistas é que, apesar da fachada de pureza que gostam de ostentar, costumam esconder cadáveres no porão. 

Ou, como disse de forma mais sofisticada e com muito mais autoridade o ministro do Supremo Ricardo Lewandowski (foto), em artigo recente: “Paradoxalmente, quase sempre os moralistas deixam de praticar aquilo que exigem dos demais”.  Severos com os outros; indulgentes com si próprio.   

Não se trata de um fenômeno novo na história. Manifesta-se em diversas áreas: no jornalismo, na religião, nos esportes, nas artes, na política, no direito etc. A área do direito é que é abordada por Lewandowski em seu artigo (“Moral, moralismo e direito”, FSP, 24/10/17). O moralismo representaria, conforme sua definição, “uma espécie de patologia da moral”.  Textualmente, diz ele:

 “No campo do direito, os moralistas expandem ou restringem esse conceito conforme lhes convém, interpretando as regras jurídicas segundo sua visão particular de mundo. Sobrevalorizam a “letra” da lei, necessariamente voltada ao passado, em detrimento do “espírito” da lei, que abriga interesses perenes.

Aplicam as normas legais fria e burocraticamente, trivializando a violência simbólica que elas encerram. Não hesitam em incorrer, proposital ou inconscientemente, no risco da “banalização do mal” de que nos falava a filósofa Hannah Arendt (1906-1975).”

 Peço vênia aos senhores e senhoras para ressaltar que não estou citando um mero observador da realidade, que está a falar sobre algo que só conhece superficialmente - trata-se de um ministro do Supremo. Estou aqui como simples mensageiro; quem tem autoridade para falar sobre isso é ele. 

É possível, no entanto, emitir opinião se falarmos de política ou história, temas que costumam ser abordados nesta coluna. Podemos falar, por exemplo, no maior moralista da República, Carlos Lacerda (1914-1977). “Não gosto de política, gosto é de poder”, dizia ele, que fez do moralismo o trampolim com o qual almejava chegar lá. Na política de acusações em que era mestre, até Josué de Castro virou alvo dele, em 1956. Foi acusado da prática de corrupção na criação de uma empresa de fornecimento de alimentos de emergência para a Marinha, na II Guerra Mundial. 

Então deputado federal, e já autor do clássico Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, Josué respondeu em discurso na Câmara afirmando que “não havia companhia fornecendo à Marinha, po rque foram experiências de laboratório e dali não passaram, pois nunca foi industrializado”. E acrescentou: “Desafio o senhor Carlos Lacerda ou qualquer outro que verifique qual o nome da firma de que fui sócio, que verifique se no Banco do Brasil consta algum  empréstimo, alguma transação comercial com meu nome. Sou um homem pobre que nunca teve empréstimo do Banco do Brasil”.  Lacerda, neste caso, ensarilhou as armas e partiu rumo a novos alvos. Até onde eu sei, esta foi a  única vez em que alguém levantou suspeitas sobre a honestidade de Josué.

Um detalhe interessante a mencionar é que Lacerda acabou como um político derrotado - perdeu até quando ganhou: veio o golpe civil-militar de 1964, do qual foi um dos maiores entusiastas, e no ano seguinte ele foi cassado… 

Agora, voltemos ao ministro Lewandowski. Sem citar nomes, nem fazer qualquer menção a fatos do Brasil no passado ou no presente, ele diz em seu artigo:  “A crônica da humanidade é pródiga em desvelar o trágico fim de moralistas que empolgaram o poder e exercitaram aquilo que consideravam direito a seu talante”. Pensei no inspetor Javert,  que acaba jogando-se nas águas mais agitadas do Sena, mas este é um personagem de ficção. O ministro Lewandowski traz exemplos da história, para tratar do infortúnio dos moralistas: “Basta lembrar a funesta saga do monge Girolamo Savonarola (1452-1498), o qual, com pregações apocalípticas, extinguiu o virtuoso capítulo do Renascimento florentino. Acabou seus dias ardendo numa fogueira. Ou a do deputado jacobino Maximilien de Robespierre (1758-1794) que, durante a libertária Revolução Francesa, mandou executar arbitrariamente centenas de opositores reais ou imaginários. Terminou guilhotinado, abrindo caminho para Napoleão Bonaparte (1769-1821)”.

As últimas linhas do artigo do ministro, que deixo aqui também como o encerramento do presente texto, soam como um epitáfio: “Quer tenham sobrevivido por mais tempo ou deixado a vida precocemente, os moralistas jamais foram absolvidos pela posteridade”.
 
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