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O direito de existir Tereza, a mulher que nasceu aos 62 anos de idade A segunda matéria da série A porta dos invisíveis mostra como sofrem as pessoas que não têm registro civil

Por: Aline Moura - Diario de Pernambuco

Publicado em: 07/10/2017 16:50 Atualizado em: 07/10/2017 16:48

 (Tereza Josefa foi entregue a um senhor quando era criança, mas não sabe o motivo de ter sido abandonada pelos pais. Ela nasceu em Machados e só conseguiu tirar a certidão de nascimento em abril deste ano. Foto: Peu Ricardo/DP)

Tereza Josefa Freitas nasceu em Machados, no Agreste pernambucano, em 11 de abril de 1955. Foi uma criança do interior que não teve infância, não sabia o que era brincar. Ela não conheceu os pais e vivia de casa em casa para conseguir um prato de comida ou dormir. A então menina era vista pelas pessoas, fazia uns bicos para ganhar algo em troca, mas não existia para a sociedade. Ela passou mais de 60 anos sem certidão de nascimento, benefícios sociais ou cartão do SUS. O quadro só mudou no início do ano, quando ela pulou de alegria e agradeceu a Deus por ter, em suas mãos, o documento que resgataria a sua dignidade, o papel que nenhum adulto deveria negar a uma criança ao nascer: o registro civil. A segunda vida de Teresa Josefa começou poucos dias depois de ela completar 62 anos. Seu nascimento aconteceu em 11 abril de 1955. Sua existência jurídica, em 18 de abril de 2017.  

A segunda matéria da série A porta dos invisíveis mostrará o “abril” de Tereza, que passou a ter inclusão social pelo empenho da Defensoria Pública de Pernambuco e das duas irmãs da casa onde trabalhou por 14 anos: a aposentada Evanise Alves dos Santos, 68 anos, e a costureira e artesã Teresinha de Jesus, 59 anos. Tereza chama as duas pelo primeiro nome, com carinho. Ela e dois de seus quatro netos também moram com Evanise e Teresinha, mas a pressão para Tereza tirar os documentos veio da irmã caçula.

Depois de tantos anos de convivência, Teresinha começou a ficar preocupada quando Tereza pedia sua carteira de identidade para ir ao SUS, onde ninguém nunca olhava a foto, o que terminou sendo uma sorte. “Eu pensei: meu Deus, se acontecesse alguma coisa com Tereza na rua, ou ela morresse no hospital? Vão pensar que sou eu”, contou Teresinha, que finalmente descobriu que a Defensoria poderia resgatar a identidade de quem tanto lhe ajudava. Antes, Tereza procurou apoio de vários políticos, mas eles não se sensibilizaram. Lideranças que se propuseram a representar o povo, mas que nunca acolheram Tereza para orientá-la.

 (Depois de tirar a certidão, maior sonho de Tereza é conseguir se aposentar. Foto: Peu Ricardo/DP)
Com vergonha de admitir que não tinha qualquer documento que a identificasse, a retirada da certidão de Tereza demorou cerca de três anos. A defensora Lêda Pessoa sugeriu que as três fossem a todos os cartórios do Recife, 15 ao todo, e três do interior, o de Machados, o de Bom Jardim e de Orobó para ver se havia algum registro antigo. As irmãs e Tereza fizeram inúmeras viagens até descobrir que teriam de começar do zero.

Quando era pequena, seus pais deixaram um pequeno pedaço de papel com os nomes dela e deles escritos - Luís Francisco de Freitas e Josefa Rita Rodrigues - e o entregaram a um homem que se chamava Manoel, para que cuidasse da filha deles. Ninguém sabe o motivo. Mas os cuidados de Manoel não foram como o esperado. Não houve preocupação em registrar Tereza, em Machados, ou mesmo quando ela foi trazida para o Recife, aos 10 anos de idade. Ela trabalhava para Manoel (cujo sobrenome não lembra), porém não teve direito à educação, à cidadania. Tereza, contudo, manteve o coração agradecido a Manoel, que era dono de farmácia.

Na infância de Tereza, durante a ditadura militar, o Estatuto da Criança não vigorava e muitas trabalhavam como adultos para se alimentar. Tereza estava entre elas, recebendo trabalhos árduos, como dar lavagem a porcos. Foram baques atrás de baques na vida dessa mulher forte, por falta do registro civil, que só se tornou gratuito em 1997, 24 anos após o fim do regime militar, por meio da Lei 9.534/1997.

Ela teve uma união estável com Juliano Valfrido da Silva por cerca de 20 anos, mas, quando ele morreu, ela e sua filha ficaram sem nada porque Tereza não tinha documentos.

[FOTO4]A senhora contou sobre essa perda com a mão no queixo, olhando para o alto, porém garante não se prender ao passado depois de ter perdido a casa para a sogra e nunca ter recebido pensão do marido. A expectativa de Tereza agora, e maior esperança, é que o INSS reconheça o direito de sua aposentadoria por idade. “Agora me acho uma pessoa feliz”, falou, pegando os documentos dentro de uma pastinha para mostrá-los. Tereza sorriu, orgulhosa. Uma porta se abriu para a segunda vida de Tereza. E como dizia o poeta Vinicius de Moraes, “não há coisa mais viva no mundo do que uma porta”.

“Estou muito feliz. Quero terminar minha casinha agora, para poder descansar minha cabeça quando estiver mais velha. Tenho fé. Sou muito agradecida às pessoas que me ajudaram”, disse Tereza.


Onde nascem novos homens e mulheres

Lêda Pessoa é a defensora pública que trata de registros tardios. Para ela, a maior alegria é ver uma pessoa nascer juridicamente, nascer para ser respeitada na sociedade. Foto: @JHPAPARAZZO
Lêda Pessoa é a defensora pública que trata de registros tardios. Para ela, a maior alegria é ver uma pessoa nascer juridicamente, nascer para ser respeitada na sociedade. Foto: @JHPAPARAZZO

Tereza Josefa estava entre as estatísticas que passaram a ser ignoradas pelo poder público desde 2014, como se esse quadro não existisse mais. Contudo, segundo a defensora Lêda Pessoa, integrante da Subdefensoria das Causas Coletivas, somente  neste ano, há quase 80 registros tardios para serem trabalhados, todos de pessoas muito vulneráveis, desde jovens a idosos. Tereza fez parte da lista de sucesso do ano para a Defensoria, que precisa realizar parcerias com a Corregedoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco, com a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais, com o Instituto Tavares Buril, com o Tribunal Regional Eleitoral e com os cartórios para reverter a situação dos que estão excluídos socialmente. “Eu sinto como se estivesse vendo uma pessoa nascendo e que, a partir dali, ela vai ser mais feliz”, disse a defensora.

Segundo Lêda, o que mais lhe marcou na história da assistida Tereza foi o sofrimento que ela passou ao longo da vida, sempre exercendo trabalhos informais, até encontrar o apoio de suas empregadoras. Somente no ano passado, Lêda resolveu 89 casos de registros tardios. “Essas pessoas eram inexistentes para a sociedade. Algumas estavam em residências terapêuticas, foram resgatadas da sarjeta, estavam surtadas e outras internadas no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Itamaracá” explicou

Lêda, que se orgulha de uma nova ação que está prestes a entrar na agulha. Na próxima semana, a defensora contou que vai começar a trabalhar em 40 casos do Hospital Colônia Vicente Gomes de Matos, em  Barreiros, porque os pacientes precisam ser transferidos para residências terapêuticas e não têm registro.  A pesquisa sobre sub-registros deixou de ser feita desde 2014. Mas o problema continua, principalmente nas regiões mais pobres.                                           


Quadro
Os sub-registros só foram contemplados em estatísticas do IBGE até 2014, último ano do primeiro governo Dilma Rousseff (PT), presidente que se reelegeu e sofreu impeachment em 2016.

Durante as décadas de 1980 e 1990, o sub-registro variou de 30,3% a 17,8%, delineando uma tendência de queda a partir de 1991.

Na década de 2000, apesar de nos anos de 2001 e 2002 os percentuais de sub-registro terem sido superiores a 20%, a tendência de queda foi mantida até 2014, quando atingiu o percentual de 1% no Brasil.

Em 2014, contudo, os diferenciais de sub-registro de nascimento ainda persistiam nas regiões mais pobres do país, no Norte e no Nordeste.

No Norte, a quantidade de pessoas registradas foi de 296,101. A expectativa era de 333.252, o que gerou a estimativa de sub-registro de 12,5%. Já no Nordeste, a estimativa de nascimentos era de 899.566 e a percentagem de sub-registro ficou em 11,9%                                                                                          



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