O corpo: campo de batalha da transexual Isabella
O Diario conta a história da pernambucana Isabella e de outras anônimas que lutam pelos mesmos direitos na quarta matéria da série A porta dos invisíveis, que retrata a vida de pessoas que não são enxergadas pelo poder público e que precisaram recorrer à
Publicado: 21/10/2017 às 09:00

Isabella conseguiu, em tempo recorde, uma sentança favorável para obter um novo registro civil através de ação movida pela Defensoria na 12ª Vara de Família da capital. Foto: Nando Chiappetta/DP/
Os dias estão sendo contados um a um pela operadora de telemarketing Isabella Borges da Silva, 26 anos. Em menos de um mês, a transexual vai tirar uma nova identidade, uma garantia de que não vai ser mais barrada para entrar em determinados lugares e de que está acobertada pelo novo documento para buscar a felicidade. Ela mesmo escolheu o nome, aos 19 anos, quando recebeu o apoio de uma amiga trans para começar a se libertar de um corpo masculino que não lhe pertencia. A sentença favorável para obtenção de um novo registro civil foi conseguida em tempo recorde – dois meses - com apoio do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública. Ela faz parte de um segmento que, segundo a instituição, é formado por carentes organizacionais e apresentam vulnerabilidade nas relações sócio-jurídicas da sociedade de massa contemporânea.
Isabella procurou a Defensoria no limite da exaustão, com medo de nunca poder ser vista pelos outros como ela mesma se vê. Estava cansada de se sentir humilhada do ponto de vista econômico, social e cultural. De ouvir soar o nome masculino pelo qual ela foi registrada, o qual vamos chamar aqui apenas de “R”, já que está prestes a fazer parte do passado.
A história de Isabella e de tantas outras transexuais anônimas que lutam pelos mesmos direitos é contada na quarta matéria da série A porta dos invisíveis, que retrata a vida de pessoas que não são enxergadas pelo poder público e que precisaram recorrer à Defensoria Pública de Pernambuco para ter dignidade. Não existem dados oficiais, mas, segundo o movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT), a expectativa de vida das trans é de 35 anos, metade da média do brasileiro (a), essa última catalogada pelo IBGE (75,5 anos).
No Brasil, existem cerca de 3 milhões de transexuais e travestis, sendo 500 mil na Região Metropolitana do Recife. Os números são estimativas, de acordo com a coordenadora Choppely Glaudyston, da ONG Amotrans, criada há mais de 10 anos e filiada à Associação Nacional de Travestis e Transexuais, que tem 25 anos. Segundo Choppely, nas pesquisas do IBGE, uma trans que age como mulher e tem os mesmos desejos sexuais do sexo feminino é descrita como homem na coleta de dados. Isabella e tantas outras como ela são ignoradas pelos levantamentos governamentais. Imagine que, nesse momento de crise econômica e política, toda a população trans é invisível nas pesquisas do governo, fundamentais para a construção de políticas sociais e de inclusão no mercado de trabalho.
Políticas públicas, como lançamento de campanhas educativas, por exemplo, praticamente minimizam um leque de pessoas que sofre violência, precisa de orientações e tratamento médico. Se um transexual for assassinado por um crime de ódio, quem vai pesquisar, catalogar e buscar as causas são as organizações ligadas ao movimento LGBT, muitas vezes desprezadas pelo governo. O Brasil é o líder mundial de violência contra trans, segundo a organização não governamental Transgender Europe, rede europeia de organizações que apoia os direitos das pessoas trans. Mas nada tem sido feito pelo governo para trabalhar a intolerância dos brasileiros.
De cabelos longos e iluminados por reflexos, olhos verdes, roupas coloridas e maquiagem, Isabella se identifica como mulher e é assim que ela gostaria de ser tratada na rua, nos hospitais ou ao falar com os clientes no emprego. A trans - que mede 1,83 m e anda ligeiro -, olha as horas no relógio para deixar de ser invisível, e ter o poder se defender, com os respaldo do novo registro civil e da identidade. Na infância e na adolescência, Isabella não aceitava se olhar no espelho e ver a imagem refletida de um menino. Agora ela tem orgulho.
Isabella conseguiu uma sentença favorável da Justiça em setembro, sem passar por exames psiquiátricos ou apresentar inúmeras testemunhas. Ela recebeu apenas o laudo de uma psicóloga da Defensoria e toda manifestação da instituição defendeu sua autonomia como ser humano.
Em busca da felicidade
A manifestação apresentada à Justiça, assinada pelo defensor Henrique da Fonte, explicava que o ato de conceder o registro civil só após exames psiquiátricos era resquício de uma ultrapassada psiquiatria, que ainda trata a transexualidade como patologia denominada de “transtorno de identidade de gênero”. “O sofrimento e o dano emocional nas pessoas trans são causados pelas expectativas e pressões que a sociedade exige de certos corpos marcados como femininos e masculinos”, escreveu Henrique da Fonte na defesa, estendida em 20 páginas.
A sentença favorável da 12ª Vara da Família da Capital ainda corre em segredo de Justiça, mas falta pouco para acabar o tempo dos mistérios. Isabella não vê a hora de poder atender ao telefone do trabalho, o qual ela é muito agradecida, sem dizer o nome masculino.
Isabella começou a mudar a aparência com 17 anos, quando decidiu comprar medicamentos de forma clandestina, por não haver o suporte devido dos médicos e dos serviços públicos. Ela nasceu com a genitália masculina, mas desde criança queria ser menina. Na adolescência, sonhava com um emprego sem precisar cair na prostituição - destino de muitas trans que são expulsas de casa e não recebem apoio.
Ao longo da infância e adolescência, Isabella perdeu as contas de quantas vezes saiu da escola chorando por sofrer bullying - o que atinge qualquer aprendizado - apanhou do pai para aprender a ser homem e já foi colocada de joelhos em caroço de milho. Demorou anos para seu pai entender que bem ali, à sua frente, estava apenas sua filha, com amor para dar e receber, independentemente da identidadee de gênero. “Ele agora me entende e aceita”, conta Isabella, orgulhosa, com os olhos sorridentes e mãos que sabem conversar.
Isabella vive com a mãe Ana Cláudia Borges, 47 anos, e o padastro (de quem preferiu não dizer o nome). Com o apoio da mãe, hoje ela tem um teto e um emprego. Diferentemente de outras 90%, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que após serem expulsas de casa, ficaram fora do mercado e precisam recorrer à prostituição pelo menos uma vez para sobreviver. “Quando descobri, pensei que ela fosse gay, mas ela me disse que queria ser uma mulher. Tive um choque muito grande, medo da violência da sociedade, do preconceito, mas, depois, percebi que não tinha como mudar a situação. É minha única filha”, falou a mãe, que fala em Isabella com carinho.
Segundo Henrique da Fonte escreveu, citando Roxana Cardoso, doutora em Direitos Sociais pela PUC, os objetos de direitos de personalidade são os bens e valores considerados essenciais para o ser humano. São inerentes à busca da felicidade.

