Opinião Giovanni Mastroianni: Bacamarteiros, uma tradição sesquicentenária Giovanni Mastroianni é advogado, administrador e jornalista

Publicado em: 21/06/2017 07:29 Atualizado em:

24 de junho, dia que se comemora o São João, em todo o país, também é data consagrada ao bacamarteiro ou bacamartista, indivíduo que homenageia o santo, dando tiros de bacamarte - arma de fogo de cano curto e largo, reforçada na coronha - conhecida como bacamarte, que realiza tiros de pólvora seca dirigidos para o chão, sem utilização de balas, motivo pelo qual tal tradicional arte folclórica é mais conhecida como uma animação, enriquecida com desfile, música e dança, cujo espetáculo pirotécnico causa muito barulho e bastante fumaça. Embora aos incautos possa até causar algum receio, essa manifestação popular é considerada inofensiva e bastante admirada pelos nordestinos.

Os bacamartistas vestem-se a caráter, utilizando uniformes na cor azul, à moda militar, sandálias, lenços vermelhos no pescoço e chapéus de palha ou couro, além de carregarem um embornal com munição. As pesquisas indicam que a origem do bacamarte remonta à Guerra do Paraguai, que eclodiu em 1864, tendo seu epílogo em 1870, em que o país vizinho enfrentou a tríplice aliança, formada pelo Brasil, Argentina e Uruguai, cujos instrumentos bélicos, utilizados à época, hoje em dia são obsoletos. Entre as mais conhecidas armas da época estão especificadas a carabina ou clavina Spencer, o fuzil ou mosquete Enfield, o revólver Gèrard, o mosquetão Minié, de origem francesa, o sabre-baioneta e a granadeira, como era denominado então o bacamarte. Curiosamente, muitas dessas armas, a exemplo do que já ocorrera na guerra civil americana, eram de propriedade particular do próprio combatente. Dizem os pesquisadores que com o passar dos anos o aparato belicoso passou por uma modificação e se transformou em folguedo e brincadeira junina, embora seja também um acontecimento festivo, em outras efemérides, especialmente em homenagens, também, a outros santos patronos.

As apresentações dessa manifestação popular nordestina, acredito, ocorrem geralmente ao ar-livre, raramente em ambientes fechados, por motivos óbvios, entre outros: os efeitos sonoros causados pelas explosões, cujo barulho se torna ensurdecedor; o forte cheiro resultante, proveniente da pólvora, que exala odor característico, em face do enxofre fazer parte de sua constituição, tornando-se, assim, insuportável, principalmente em locais ditos cerrados, com presença de público.

Presenciei, em passado um pouco distante, muitas dessas apresentações, fazendo, inclusive, cobertura para a imprensa da época, principalmente do batalhão caruaruense comandado pelo “major” Emídio do Ouro, pois é sabido que os bacamarteiros se regem por falsas patentes de uso dos militares. A ele cabia a missão de controlar a cadência dos disparos oriundos dos bacamartes e a quem os bacamarteiros deviam obediência.

Desempenhava suas funções com tanta seriedade que era, também, respeitado nos meios populares como se militar realmente fosse, embora não passasse de um modesto feirante. Às quartas-feiras e sábados, armava sua barraca na famosa Rua do Comércio, onde expunha suas bijuterias, reluzentes como ouro, de onde lhe adveio o título distintivo, que o credenciava como uma “imponente” figura nos meios sociais, apesar de não passar de um simples atirador.

Pretendo, após a realização desta pesquisa e registro de fatos vividos no Agreste pernambucano, identificar um pouco quem são os bacamarteiros e o que eles representam para o folclore nordestino, a fim de que os leitores compreendam o verdadeiro significado dessa manifestação cultural, ao tempo em que mostro, num exame antropológico, quem são, o que fazem, quais suas características e seus principais instrumentos de trabalho, no desempenho dessa tradição mais que centenária, e que vem, ao longo dos tempos, se constituindo em uma arte e, porque não afirmar, até numa religiosidade popular para muitos. Confesso que poderia melhor haver enriquecido este artigo se houvesse lido as obras Bacamarteiro, povo e pólvora e Os bacamarteiros, editadas pelo acadêmico Olímpio Bonald Neto, que, sem dúvida, mergulhou, profundamente, na pesquisa de tão curioso, mas pouco difundido tema.


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