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Luciana Grassano Melo: O sonho da aposentadoria

Acho que quem sempre trabalhou na vida tem dificuldade de largar o serviço, na aposentadoria. E daí vai fazer o trabalho que sempre sonhou fazer, mas que nunca pôde

Publicado: 11/10/2016 às 07:10

Por Luciana Grassano Melo
Professora de direito da UFPE

Conheci uma senhora holandesa no aeroporto de Frankfurt. Sentamos lado a lado na sala de espera do portão de embarque. O voo para Lisboa atrasou, daí a conversa correu solta. De cara, vi que ela não era uma nórdica pura, do contrário não teria puxado conversa tão fácil comigo.

Ela me disse que quando o seu marido alemão se aposentou há mais de vinte anos, decidiram ir morar em Carcavelos, na costa de Portugal, entre Lisboa e Cascais, e que todos os anos ela volta à Alemanha para visitar duas amigas queridas que moram no subúrbio de Frankfurt.

- Trabalhamos tanto... Ela me disse. - É natural que na velhice queiramos estar mais perto do sol e do mar. E como são cordiais os portugueses, ela falou. Eu quis logo saber qual era a “língua do amor”, ou seja, qual a língua falada pelo casal. Ela riu e me disse que hoje já é o português.

Nessa mesma viagem, visitei uma amiga brasileira que namora um alemão. A “língua do amor” deles é o francês, porque se conheceram em um intercâmbio de estudos no sul da França. Fiquei imaginando o alto nível de fluência em uma nova língua e também de intimidade do casal necessários para alterar esse acordo linguístico originário.

A senhora holandesa me disse ser proprietária de um gatil. Adora gatos e tem dois em casa, ambos deficientes. Ela me falou que hoje sua principal atividade é recolher os gatos da rua, tratá-los e colocá-los no gatil para adoção. E que sempre viaja sozinha porque a única filha do casal trabalha muito e o seu marido fica em casa a cuidar dos gatos.

Enquanto ela falava, lembrei-me de minha mãe e de sua tristeza quando não vai a Gravatá, cuidar do seu jardim. Já o meu pai passou a trabalhar no computador. Parece que está escrevendo um livro de sonetos.

Acho que quem sempre trabalhou na vida tem dificuldade de largar o serviço, na aposentadoria. E daí vai fazer o trabalho que sempre sonhou fazer, mas que nunca pôde fazer porque não ia dar para pagar as contas e os impostos.

Andei refletindo sobre isso e acho que deve ser mesmo esse o sonho da aposentadoria: a possibilidade do gozo da liberdade de escolha do que fazer, ou seja, poder dedicar o máximo de tempo possível a atividades que dão sentido à vida, com satisfação e prazer. Mas para isso é necessário energia e vigor.

Pensei em mim, que comecei a trabalhar e a contribuir para a minha aposentadoria aos dezessete anos. Se tiver que esperar até os sessenta e cinco ou setenta anos, como o cenário atual desenha, talvez não tenha nunca na vida um gatil, ou um jardim, nem venha a escrever um livro de sonetos.

Parece mais fácil decidir o destino dos outros, quando quem vai fazê-lo já tem o seu futuro garantido. Mas não é justo que gerações de brasileiros mais jovens paguem um preço tão alto por essa crise do país. Menos ainda quando se vê que só se apertam os cintos dos que mais precisam dos direitos e garantias sociais, como o SUS, o ensino público gratuito e a seguridade social.

A senhora holandesa que eu encontrei no aeroporto goza há mais de vinte anos a sua aposentadoria, depois de contribuir para o Estado social alemão. E minha amiga brasileira, se tiver um filho com o namorado alemão, vai receber duzentos euros por mês, para cuidar da criança.

Eu queria mesmo é que me explicassem para que eu pago meus impostos no Brasil. Se até para exercer o meu direito liberal de ir e vir sem ser estuprada, como recomendado pelo governador, só posso tomar o meu vinho em casa. E se quiser sair à noite, só se for acompanhada. Nem imagino o que a senhora holandesa pensaria disso...
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