Opinião Luciana Grassano Melo: a alegria é um camurim "Os meus melhores dias eram aqueles quando os avistava de longe empunhando o peixe como um troféu ganho na pescaria"

Por: Diario de Pernambuco

Publicado em: 04/02/2016 07:03 Atualizado em:

Por Luciana Grassano Melo
Professora de direito da UFPE

Quando penso em Severino, lembro dele sentado à mesa esparramada à sombra da castanheira. Ele sempre escolhia aquela mesa, dentre as outras do bar. Era uma mesa comprida, de madeira gasta e manchada pelo tempo. Sentava-se esguio numa das cabeças da mesa, de onde via a estrada e a entrada do bar.   

Eu lhe dizia que precisava passar um verniz pelo menos no tampo da mesa, mas ele sempre deixava para outro dia. Me dizia: - Outro dia, Quininha! Outro dia, juro que passo. Mas acho que gostava mesmo era de ralar nela os cotovelos grossos, enquanto refletia segurando a cabeça. Fazia ali as suas contas e vigiava o movimento do bar. Um bar simples, puxado da nossa casa, à beira da estrada, no caminho para o mar e que sustenta até hoje a nossa família. 

Quando não estava no balcão, estava ali, sentado à mesa, com seus cadernos de anotações e uma caneta bic ora a punho, ora em descanso atrás da orelha. E quando nem vigiava o movimento do bar, nem fazia as contas, esquecia-se do mundo com um olhar que eu via fixo e absorto, mas que voltado para dentro fervia, acompanhando o movimento de todos aqueles pensamentos que sempre foram para mim tão alheios. 

Tivemos seis filhos, dos quais somente um homem, para tristeza de Severino. Ele era um bom pai, como podia, preocupado que estava com o sustento da família. Do homem se esperava isso, que sustentasse a família. Lembro das crianças tão pequenininhas, vestidas só de calcinhas por conta do calor e apertando nas bocas, distraídas, as chupetas de plástico rosa enquanto brincavam de correr no quintal atrás das galinhas.

O maior ajudava no bar. Eu achava engraçado quando algum cliente mais conversador me perguntava: - Aquele menino moreno é seu filho, dona Quininha? Isso porque Sebastião vivia grudado no Everaldo, neto da vizinha, que era pobre que nem nós, mas branco que nem uma lesma.

Moreno, nada! Sebastião é preto retinto, como era o seu pai Severino. Mas diziam isso por simpatia, como se falar preto fosse ofensa. Eu achava muita graça. 
E como os dois se pareciam!

Todas as manhãs, logo cedo, me sentava à mesa de Severino para ver os dois saírem para o mar. Saíam quando mal se via o sol. Era ainda meio noite meio dia, quando se iam. Levavam pendurados nos ombros um samburá de cipó com anzóis e linha, além da pesada tarrafa de pescaria. Às vezes, Sebastião carregava um pacote de pão doce debaixo do braço, para matar a fome da maresia.

Eu os via atravessar a estrada com a tranquilidade de quem conhece bem os caminhos. E logo desapareciam dentro do mato alto cuja trilha caminhava para o mar. Vez por outra demoravam mais a voltar. Mas quando chegavam tinham sempre nos olhos o lampejo que dá quando se vê o deslumbramento.

Eu hoje sei que os meus melhores dias eram aqueles quando os avistava de longe empunhando o peixe como um troféu ganho na pescaria. Eu os esperava de pé à porta do bar e mal despontava Severino do lado de cá da estrada, já ia gritando para mim as suas palavras de glória: - Mulher, espia só o tamanho desse camurim!


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