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Editorial: o tesouro na cozinha

Um país se faz com homens, mulheres e livros, inclusive - ou principalmente - os de receita

Publicado: 04/02/2016 às 06:57

Um país se faz com homens, mulheres e livros, inclusive - ou principalmente - os de receita. Somente nos últimos anos, com o cruzamento de outros saberes, como a antropologia e a etnografia, os historiadores vêm ressaltando a necessidade de se mapear, a fundo, a gastronomia nacional, destacando as especificidades de cada região e, dentro delas, de suas comunidades diversas. Esta tarefa se torna cada vez mais urgente, uma vez que o processo de globalização, que se reflete no maior consumo de alimentos de outras partes do mundo, acelera o fim de tradições e instrumentos que podem definir a identidade de um povo.

No aspecto histórico, o Brasil deve muito aos viajantes estrangeiros que passaram pelo país nos séculos passados, porque eles se preocuparam em descrever o que e como os habitantes comiam. Mais tarde, pesquisadores nacionais começaram a sistematizar estas informações, valorando o que antes era considerado de pouca importância. Mais afeito ao Nordeste açucarado, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, colaborador do Diario de Pernambuco, já se preocupava, em 1926, com o fim da cozinha típica regional, incluindo a sertaneja, tema principal do seu Manifesto Regionalista.

Uma boa notícia surge para saciar a gula de conhecimento dos amantes deste ramo da ciência. Livros de culinária publicados a partir do século 17, em Portugal e depois no Brasil, estão disponíveis na internet para pesquisadores e também para aventureiros de forno e fogão. Todos liberados para download no site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Midlin, abrigada na Universidade de São Paulo (USP). 

Uma das obras mais antigas é Arte de cozinha : primeira parte. Trata do modo de cozinhar vários manjares, e diversas iguarias de todo o gênero de carnes, tortas, empadas, e pastéis, & etc., escrito por Domingos Rodrigues. Trata-se do primeiro livro de culinária editado em Portugal em 1680. Veio a bordo de muitos navios com destino ao Brasil, onde os ingredientes originais tiveram que ser adaptados aos produtos da terra e de outras etnias.

Já o Cozinheiro imperial ou nova arte do cozimento e do copeiro em todos os seus ramos, publicado no Rio de Janeiro em 1887, traz recomendações que devem ser seguidas, principalmente em relação a como se comportar à mesa: “Devemos observar as coisas repugnantes nos outros para evitá-las. Tais são o comermos apressada ou vagarosamente. O primeiro modo indica miséria, fome, gula e só vontade de comer. O segundo designa não gostarmos das iguarias, ou que, se mastigamos, é para encher tempo. Nem devemos estar sempre calados à mesa, mas alegrá-la com chistes ou práticas festivas, visto não ser essa hora ou sítio em que tratemos assuntos graves. 

Também não façamos de bobo ou chocarreiro, pois aliás daríamos a pensar aos comensais que vinosos fumos nos toldam a cabeça”. Se escrevesse para os leitores de hoje, o chef de cozinha R. C. M. criticaria, de forma dura, o hábito da troca de talheres pelo celular.

O cozinheiro dos cozinheiros, editado em Portugal, em 1905, de autoria coletiva, reunia mais de 1.500 receitas e era praticamente uma internet de bolso. Tudo o que se precisava saber sobre cocção de alimentos, preparo de animais, molhos, guisados, frituras, embutidos, guarnições, caldos, saladas e massas estava ao alcance da mão. 

A ciência do lar moderno, de Eulália Vaz, estava na quarta edição em 1912. Professora da Escola Profissional de São Paulo, ela defendia que uma boa economia doméstica era uma necessidade em tempos de crise. Naquela época, a baixa do café fazia estragos nas contas públicas nacionais. Ter a família bem alimentada era um desafio, assim como ocorre nos dias de hoje. Qual era a receita de Eulália Vaz, que pode ser usada mais de cem anos depois? “Quando o casal tem poucos recursos é preciso um certo equilíbrio em manter a ordem. Não podendo ter uma despensa ou ir uma vez por mês ao mercado comprar gêneros para o gasto, a esposa deve ter seu caderno com uma receita da despesa de cada dia - ainda que seja maçante a economia doméstica”.

Lançado em 1929, o Livro das noivas de receitas e conselhos domésticos, de Júlia Lopes de Almeida,  já não se limitava apenas a dicas úteis para as cozinheiras e donas de casa de primeira viagem. Também se vê na obra ecos de um feminismo que ganhava força com o acesso à instrução. “Não te resignes a ser em tua casa um objeto de luxo. A mulher não nasceu só para adorno, nasceu para a luta, para o amor e para o triunfo do mundo inteiro”, recomendava a autora. Entre uma batata caramelada e a melhor maneira de tirar a ferrugem, uma nova sociedade surgia aos poucos.
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