Momo, adeus

Manoel Bione
Médico psiquiatra e jornalista

Publicado em: 07/02/2024 03:00 Atualizado em: 07/02/2024 05:58

Recordo com uma lembrança viva os carnavais que vivi. E tome a subir e descer as poéticas ladeiras de Olinda. Nos quatro dias dedicados a Momo, não arredava pé da folia. Já na semana “pré”, me batia uma euforia que já não tenho. Não escrevo essas linhas como mais um saudosista a falar dos “velhos carnavais”, “de um tempo que não volta mais”, ou coisas parecidas. Mas procuro registrar algo que acontece em mim e em mais ninguém.

No chamado sábado de Zé Pereira, lá estávamos nós na rua Sete de Setembro, em frente à saudosa livraria Livro 7, a nos divertir com o irreverente desfile de fantasias promovido por Tarcísio Pereira, na concentração do “Nois sofre mas nois goza”, uma troça de resistência democrática, criada, em plena ditadura, por um grupo de frequentadores da Livro 7 e de seu anexo, o Bar 7. Tudo sob a batuta de Tarcísio, o grande mentor de tudo isso. A história conta que esse pessoal se juntou com a ideia comum de formar um bloco. E deu de mão ao material disponível, ou seja, um vassourão e uma toalha de mesa a servir de estandarte.

Esse grupelho saiu às ruas, a batucar em baldes e panelas vazias. Ao passar em frente ao bar Savoy, na avenida Guararapes, um bêbado, meio caído na calçada, teria gritado: “É isso aí, doutor! Nois sofre, mas nois goza.” Bingo! Estava batizado o furdunço. Desse dia até a data da morte de Tarcísio - vítima da Covid bolsonarista -, o “Nois sofre” era o programa favorito daquele pessoal de esquerda que os milicos taxavam de subversivos e comunistas. Naquele tempo, o Galo da Madrugada desfilava “de madrugada”, como seu nome sugere. E, por volta das dez, onze horas, seus foliões já estavam de volta ao sagrado reduto de seu lar. E nosso trajeto em direção ao Pátio de São Pedro era totalmente desimpedido.

Antes de chegar para o “Nois sofre”, eu sempre estacionava o carro em frente à Faculdade de Direito, onde o pegava após o desfile. Na época, ainda não existia a draconiana “Lei Seca”. Em um certo sábado, ao voltar do desfile, pela rua Sete de Setembro, testemunhei um tragicômico episódio envolvendo o poeta Ângelo Monteiro. Para quem não o conhece, Ângelo é uma figura pequena e muito magra. Daqueles cujo pijama só tem uma lista (risos da claque). Pois bem, me deparei com Ângelo caído na calçada do bar Calabouço e sendo chutado por um brutamontes “marombado”. Imediatamente eu gritei:

- Ei, cara, para com isso! Esse rapaz é meu amigo!

E o agressor, babando de ódio parou e respondeu:

- Eu fui ao banheiro e na volta vi esse safado dando cantada em minha noiva e a chamando de “gostosa”!

Eu levantei o poeta e saí com ele, que teimava em querer voltar à briga - se é que podemos chamar assim aquele massacre. E, quase o arrastando em direção à rua do Riachuelo, o salvei do espancamento. Antes de dobrar a esquina, no entanto, Ângelo ainda olha para trás e grita para seu agressor:

- Mas que é gostosa, é!

E disparou na carreira, enquanto eu me dirigia ao carro, me esbaldando de rir.  

Naquela “euforia carnavalesca”, cheguei a criar dois blocos em Olinda. Um foi batizado com o antropofágico nome de Troça Canibalesca Mística Papa-Figo. Teve até um hino, de autoria de Maciel Melo e Manoel Bione (este locutor que vos tecla). O frevo “Hino do Papa-Figo” chegou a ser gravado por Maciel, sendo incluído em seu disco “Retinas”. Uma amostra grátis da letra: “Alô, cambada, chegou o Papa-Figo agora/ Cuidado com Ivan Pé-de-Mesa/ Senão ele te devora(...) Onde ele passa/ tudo é riso, tudo é graça/ No Planalto tudo é traça/ No planeta tudo é troça/ Alô, alô, cambada, olha o Papa-Figo/ Corra senão a coisa engrossa!”

Tempos depois, fiquei sabendo da criação de um bloco que desfilaria em Porto de Galinhas. Fora idealizado por um conhecido político de extrema direita, cujo nome evitarei citar. Sei que ele chegou a ser apontado como o criador do famigerado CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que, entre outras “façanhas”, chegou a metralhar a residência de Dom Hélder Câmara. Esse “Comando” também foi acusado de assassinar o padre Henrique Pereira, assessor pessoal do chamado “Dom da Paz”. A citada troça se chamava “Desculpe Qualquer Coisa”.

Revoltados com a desfaçatez do indivíduo, eu e um grupo de amigos e amigas resolvemos dar uma resposta à altura. E criamos o “Desculpe uma Po**”. Esse cortejo saiu em um domingo de Carnaval. Sua concentração foi no Bar do Forte, o famoso Maconhão, em Olinda. Também teve até um hino, composto por Clodoaldo Torres e o grande violonista Nuca. Sua letra nunca saiu de minha memória: “Vejam só quem está falando/ De direito de corrução/ Esqueceu que seu Comando/ Caçou palavras/ Ideias, razão/Eu sofri no pau-de-arara/ Perdi ovo e dentadura/ E você muito à vontade/ Chaleirando a ditadura/ Agora que está por baixo/ Que a vida é uma gangorra/ Vem pedir minhas desculpas/ Nem com cuspe/ Desculpe uma po**”.

Hoje, navegando nesse mar de lembranças, me despeço de Momo e me recolho a meu “cantinho ecológico”, na bucólica Serra Negra. Deixo a todos desejos de boa folia. E faço uma atualização das palavras do grande Luiz Gonzaga: “Já não sei se eu mudei ou mudou o carnaval”.

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