Memorial da Rua Sete

Manoel Bione
Médico psiquiatra e jornalista

Publicado em: 28/02/2024 03:00 Atualizado em: 28/02/2024 06:10

Até meados da década de 1970, o chamado centro comercial do Recife compreendia o corredor formado pela rua da Imperatriz, atravessando a ponte da Boa Vista, e se espraiando pelas ruas Nova, da Palma e Concórdia. Dali, ganhava os bairros de Santo Antônio e São José. A rua Sete de Setembro, apesar de se situar no centro, tinha pouco movimento. E foi nessa rua tranquila que Tarcísio Pereira, antigo funcionário da Livraria Imperatriz, resolveu instalar uma modesta livraria numa salinha térrea. E, em homenagem à rua, a batizou de “Livro 7”.

Aos poucos, o público leitor começou a frequentar a lojinha, principalmente aos sábados, quando chegavam os exemplares “fresquinhos” d’O Pasquim. Como cortesia, era colocado um garrafão contendo batida de limão, feita pela mãe do próprio Tarcísio.  

Com o tempo, o movimento da Livro 7 foi aumentando. E a acanhada livraria se mudou para um casarão situado em frente ao endereço original. No espaço também se instalou a loja Disco 7 e o amplo Bar 7, administrado por seu Cícero, pai de Tarcísio. Aos poucos, o local foi-se tornando um grande point democrático. Vivíamos sob as esporas dos generais da ditadura. No entanto, naqueles tempos bicudos, a resistência andava de braços dados com o medo. Às vezes, até incorporávamos o personagem de Henfil, Ubaldo o paranoico. Desconfiávamos de alguns frequentadores “suspeitos” e, algumas vezes, tínhamos razão. Eu próprio já havia passado por uma experiência desse tipo. Cheguei a ser reprovado, perseguido por um professor. Só depois fiquei sabendo que se tratava de um tenente da Aeronáutica infiltrado como docente.

Certo dia, surgiu um frequentador novo no Bar 7. Era um cara alto, cabeludo e vestido de branco. Sentava sozinho, mas observando o que se passava ao redor. Logo começou o bochicho de que podia ser mais um agente da ditadura. O general Ernesto Geisel (toc, toc, toc) acabara de tomar posse. Foi, então, que o poeta Orley Mesquita - desconfiando, como nós, do novo personagem - resolveu armar uma esparrela para ele. Combinou com Carlos, o garçom, o passo a passo da “empreitada”. Ocultamente, passou a enviar bilhetinhos para o cara. Carlos entregava, mas se recusava a identificar o autor. O sujeito lia, dobrava e guardava no bolso. O primeiro torpedo apenas dizia, laconicamente: “O homem assumiu. Aguarde instruções”. No segundo, escreveu: “Sábado, reunião na granja Alegria do Galo”. E no último e fatal dia: “Não deixe de comparecer amanhã, na granja Alegria do Galo”. O garçom, sonso, entregou e falou baixinho: “O homem mandou perguntar se o senhor tem alguma dúvida”. E já entregou lápis e papel. O cara escreveu: “Onde é a granja Alegria do Galo?”. Carlos entrou na livraria. E, da porta lateral, surge Orley e grita alto, dirigindo-se ao tal sujeito: “É no c* da galinha, idiota!”. Todos que estavam próximos, já sabendo da história, vaiaram o tal “infiltrado” em uníssono. Desde esse fatídico dia, o tipo nunca mais foi visto pelas bandas da Sete de Setembro.   

Com o passar dos anos, a cidade foi mudando, e, com ela, a rua Sete de Setembro. A Livro 7 mudou-se do antigo casarão para um galpão vizinho. Chegou a constar no Guiness como a maior livraria do Brasil. Seus antigos frequentadores, agora, misturavam-se a estudantes e a um público mais jovem. A rua Sete já não lembrava a ruazinha acanhada de uma década atrás. Ao lado da Livro 7, passou a funcionar o “Calabouço”, bar de calçada onde nos reuníamos, noite após noite. Faziam parte daquela confraria, além do locutor que vos tecla, o poeta Domingos Alexandre, o jornalista José Teles, o escritor Paulo Caldas, as professoras Clélia Barqueta e Suzana Cavani, o saudoso pintor Montez Magno, e outros agregados.

Em frente ao Calabouço havia um amplo terreno que fora comprado pela Igreja Universal para a instalação de um templo. Toda noitinha, chegavam fiéis e pastores para se reunir no local. Os pastores passavam grandes sacos pretos onde o pessoal depositava suas “contribuições” para a construção da tal igreja. O que, aliás, nunca se concretizou. Certa noite, um pastor começo a pregar, apontando para nós: “Irmãos, deixai essa vida de álcool, maconha e pederastia!...”.  Nesse exato momento, uma “irmã” caiu em plena via pública e começou e se debater em convulsões. O pastor acorreu e passou a encenar uma sessão de “exorcismo”:

- Sai daí, demônio! Deixa esse corpo que não te pertence!

De pronto, eu pulei da cadeira e passei a fazer, digamos, um anti-exorcismo:

- Não sai, demônio! Fica aí que deve estar quentinho. Fica aí para sempre, demônio!

A rua parou. Os populares se acotovelavam para assistir àquele duelo surreal. Então a “possessa” começou a piscar, sentou e levantou-se com a ajuda do pastor, sob sonoras vaias. E eu voltei para minha mesa, devidamente aplaudido pelos presentes.

O ocaso daquela Sete de Setembro de outrora se aproximava, inexoravelmente. A querida Livro 7 encerrou suas atividades. O amplo galpão onde funcionava foi ocupado por uma igreja evangélica. Aquele público rarefeito de antes, aos poucos, foi sendo substituído por uma massa apressada, camelôs e pedintes. Enfim, foi contaminada pelas mazelas de uma cidade que pede socorro. Ou morre lentamente, como o velho rio Capibaribe que se arrasta ali perto.

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