Coluna

Foto: Shilton Araújo/ Arquivo DP/
Diz-se que os pernambucanos temos mania de grandeza. Aqui nasce o Oceano Atlântico. A de Duarte Coelho foi a capitania que mais deu certo. Temos a primeira ponte do continente – a Maurício de Nassau, de 1644. Nova York é o que é porque fundada por judeus-pernambucanos. Que antes aqui construíram a primeira sinagoga das Américas. A primeira faculdade do país, a de Direito. A abolição, por causa de Joaquim Nabuco e José Mariano, foi decidida no teatro Santa Isabel. Temos o jornal mais antigo da América Latina, o Diario de Pernambuco, onde se escreve pernambucanês, um idioma próprio. Nossos críticos têm razão quanto ao nosso orgulho. Quase uma bem-humorada resposta ao fato histórico de que fomos ficando para trás. Desde quando os lucros do açúcar foram para o Caribe e a mineração, a borracha e o café desenvolveram outras regiões. Nossa sociedade patriarcal da monocultura açucareira deixou o legado da escravidão que o presciente Nabuco sabia ser o maior desafio a enfrentar depois da abolição formal. Parte desse legado, como demonstra Alexandre Rands, em Raízes das Desigualdades Regionais no Brasil (2019), deve-se ao nível educacional da nossa gente. Que desde o fim do ciclo do açúcar foi ficando abaixo do dos estados do Sudeste. Com modelos econométricos que cancelam os outros fatores (como a suposta não industrialização), esses estudos demonstram que nosso declínio relativo é explicado pelos fatores educação e qualificação.
Nosso bairrismo, todavia, começa a ser suplantado por obras que reinterpretam a história. Como São Paulo e Minas Gerais foram vitoriosos na peleja do desenvolvimento, seus historiadores começam a contar a versão dos vencedores. Como fazem Lilia Schwarcz (USP) e Heloísa Starling (UFMG) em Brasil: uma Biografia. Em 600 páginas, elas amplificam o significado de alguns eventos, como o da Conjuração Mineira de 1789. E diminuem o significado de outros, como os ocorridos em Pernambuco, sobretudo a Revolução de 1817. Sabe-se que a primeira não passou de uma conspiração desbaratada, com a prisão de alguns poucos barões e a morte de um único mártir. Mera recusa a pagar os tributos da derrama. A segunda implantou uma república que durou 75 dias. Tinha formulação teórica iluminista e senso estratégico. República, liberdade religiosa, separação de poderes, sinalização da abolição, medidas para a economia popular. Legou-nos a primeira constituição republicana da história brasileira. Teve até política externa, com o Cruz Cabugá se apresentando como o primeiro embaixador brasileiro. Nos Estados Unidos. Como bem mostra Evado Cabral de Melo (A Outra Independência), os pernambucanos tinham uma outra concepção de emancipação. Preferiam relações com a corte portuguesa que, ao menos pela distância, lhe daria mais autonomia que a corte do Rio de Janeiro. Impressiona que as autoras da Biografia dediquem apenas duas páginas à Revolução de 1817. E à Conjuração Mineira, o dobro do espaço, chegando a qualificá-la como ‘o mais importante movimento anticolonial da América portuguesa e o primeiro a adaptar um projeto claramente republicano para a colônia’. Afirmações que não resistem aos fatos. Sejam os da Revolução Pernambucana de 1817, sejam os da Guerra dos Mascates de 1710. Quando, em oposição aos mascates portugueses do Recife, o líder de um Pernambuco independente e republicano.
A obra não consegue bem analisar o patriarcado do açúcar no Nordeste, embora faça rápida citação de Gilberto Freyre. Nem a presença holandesa. Nem as Revoluções de 1817 e 1824. O livro é testemunha do velho vício de reescrever a história. Talvez as autoras desconheçam a advertência do historiador Eric Hobbsbawun, em seu Echoes of the Marseillaise (1990). Para quem o entendimento do passado exige indagar como os contemporâneos enxergaram o evento histórico analisado. Custa crer que os portugueses, brasileiros e viajantes europeus que começaram a registrar o que se passava no Brasil deixassem de reconhecer o peso do que acontecia em Pernambuco. Os contemporâneos daquela época dificilmente chancelariam essa versão das duas historiadoras. Que distorcem a história e diminuem o significado de fatos tão relevantes aqui passados. Elas estão sendo bairristas ou apenas desconhecedoras do objeto do seu débil compêndio?
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