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Sylvia

Malala, eu e o direito das meninas à educação

Publicado: 23/03/2019 às 09:55

Foto: Arquivo Pessoal/

Foto: Arquivo Pessoal/

Única pernambucana a participar do Encontro Anual do Fundo Malala e da Rede  Gulmakai, Sylvia Siqueira Campos escreve com exclusidade para o Diario sobre sua participação no evento, iniciado na última sexta-feira e previsto para terminar neste domingo, em Dubai, nos Emirados Árabes.  E fala da reação de Malala, ganhadora do Prêmio Nobel, ao ouvir os relatos sobre as questões que dificultam a  permanência das crianças brasileiras  na escola. Entre os problemas descritos pela pernambucana, a gravidez na adolescência, o trabalho infantil, a falta de creche que leva as meninas, principalmente as da periferia, dos quilombos e das aldeias indígenas, a cuidarem dos irmãos e a se afastarem da sala de aula.
 
DUBAI - Ela produz esperança em tempos de angústia. Ela cria conexões com pessoas e instituições de forma intensa, com a naturalidade de quem reconhece a sua própria responsabilidade histórica. Também conecta muitas pessoas ao redor do mundo em torno de uma causa. De criança determinada a uma jovem madura e firme, às vezes risonha, sempre atenciosa. Essa é a Malala Yousafzai que eu conheci em julho de 2018, no Brasil, após um convite dela para nos encontrarmos na luta pelo direito das meninas à educação.

Nossa parada agora é em Dubai, nos Emirados Árabes, onde brotam do deserto prédios com arquitetura supermodernas e muitas negociações acontecem. Participamos do Encontro Anual do Fundo Malala e da Rede Gulmakai, que reúne ativistas pelo direito de meninas à educação pública e de qualidade. Hoje mais de 130 milhões de meninas estão fora da escola. A missão é desenhar uma estratégia que seja muito mais transformadora na vida de meninas e jovens, inicialmente, na Nigéria, Líbia, Turquia, Afeganistão, Paquistão, Índia e Brasil. A rede leva o nome Gulmakai porque foi o pseudônimo usado por Malala, aos 11 anos, para denunciar num blog a situação que vivia no Paquistão. Para mim, ser parte da Rede Gulmakai é sentir uma vibração que não para, é como se Malala estivesse falando com a gente o tempo todo.

“Para mim é muito importante saber de vocês o que eu e o Fundo Malala podemos fazer. Vocês são, na verdade, quem têm a experiência de atuação no território, mas também vivenciaram as mesmas dificuldades que essas meninas enfrentam hoje”, comentou Malala em uma das mesas de trabalho, após a minha apresentação sobre as questões que afetam o acesso e a permanência das meninas e das jovens na escola. 

Ziam Yousafzai, pai, protetor e incentivador de Malala, era professor no Paquistão e ainda carrega a emoção de um educador quando fala sobre a importância do ensino na libertação das mentes. Ele ficou muito chocado ao saber que no Brasil houve um crescimento de 83% de casos de abuso sexual, de 2011 a 2017. Para o MIRIM Brasil, organização da qual eu faço parte, o abuso sexual e qualquer outra violência baseada na relação de poder inibem o desenvolvimento emocional, cognitivo e social de crianças e adolescentes. E as escolas ainda não estão preparadas para perceber, acolher e cuidar delas.

Eu e outros membros da Rede Gulmakai no Brasil, Denise Carreiras e Ana Paula Ferreira, conversamos com Malala sobre a situação do trajeto casa - escola - casa. Muitas meninas andam quilômetros para ir e voltar da escola, debaixo de sol e chuva, sobem e descem ladeiras e escadarias. O transporte público é caro para a maioria da população brasileira. Muitas vezes, e foi a minha vivência, era o pão ou a passagem. 

Seguimos comentando com ela sobre outras questões que dificultam a permanência da criança na escola: a gravidez na adolescência, o trabalho infantil, a falta de creche que condiciona as meninas a cuidarem de irmãs/os menores e perdarem aula, e a falta de estrutura nas escolas para acolher as pessoas com mobilidades reduzidas. Também compartilhamos que a crescente presença de fundamentalistas e ultraconservadores na política, no Executivo e no Legislativo, está gerando mais violência contra pessoas negras, pobres e LGBTQI; e falamos sobre como o Projeto Escola sem Partido tenta proibir e perseguir professores que abordam gênero, diversidade e cidadania ativa. Malala ouvia atenta e respirava fundo a cada violência relatada e sua cabeça parecia ir longe em busca de formas de atuação para defender direitos.

O que eu gosto na parceria com Malala e o Fundo Malala é a capacidade de se afetar e se colocar à disposição na construção de respostas. Um dos ganhos desse encontro foi construir a compreensão de que precisamos reivindicar financiamento público para uma educação transformadora. Não pode haver desvinculação do financiamento da educação do orçamento geral do Brasil. Isso representaria um atraso civilizatório gigantesco com impacto real nas condições de vida das meninas e dos meninos das classes populares, que é ainda a maioria no país. Se é pela educação que a gente faz transformações estruturantes - romper ciclos de pobreza por décadas nas famílias -, como ficaria o sistema educacional sem o mínimo de garantia, uma vez que nem o Plano Nacional de Educação não está sendo considerado na gestão do desenvolvimento do país?

As conversas não pararam um minuto nos três dias consecutivos do Encontro Anual da Rede Gulmakai. Neste fim de semana, a Rede Gulmakai terá participações no Global Education & Skills Forum, promovido pela Varkey Foundation. Trata-se de um espaço de muita influência nas políticas e tecnologias para a educação. Estarei em algumas conversas bilaterais e numa mesa sobre a importância da sociedade civil no processo de mudanças sociais estruturantes. Vou de peito aberto e mente firme, fazendo como sempre fiz e com o apoio da Malala, dizer e demonstrar que não há futuro, se não cuidarmos das crianças, meninas e meninos, no presente. Não há políticos responsáveis sem o compromisso concreto de investimento amplo na educação, olhando primeiro quem precisa mais: no Brasil, são as meninas negras periféricas, quilombolas e indígenas. 
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